segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A Flor.

Apaixonei-me primeiro pelo teu vulto apontando na esquina. Depois por teu sorriso caído de lado. Aí então vi teus cabelos ao vento, e quis também poder tocá-los. Fui quando olhei-te mais de perto e percebi algumas manchas de sol. Tentava escondê-las, sei bem, mas não pude evitar uma análise de tuas falhas. Diziam-me algo em segredo. Quem um dia fostes para um dia tê-las? Quem agora eu era para enfim percebê-las? Era a forma como tu tornavas-me fraco, e ao olhar-te, tornava-te imortal em minha existência. Era a forma como teu sorriso caía como o véu de uma noite de céu limpo. Era aquela tua cara tímida de quem não sabia o que fazia no mundo. E minha coragem inventada de dar-te motivos.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Temporariamente Fechado.

Título bem claro, não? Deixarei isso aqui por uns tempos, estou tentando fazer algo maior.
P.s.: torçam para que dê certo.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Capítulo VI

Falava em casamento. Minhas primaveras estavam prestes a ganhar mais uma. Vinte e dus primaveras e um casamento. Casaria-me no outono, quando mais primaveras tivessem passado. Seu amor era uma borboleta, não tinha medo de vê-la voar perto, mas tinha medo de segurá-la na mão. Não tinha medo de que outra borboleta passasse e levasse a dele embora. Cabia ao destino. E, ainda, presa em um casulo, eu não teria como impedir. Gostava sim da forma como ele me olhava, e me julgava desnecessária de julgamentos. Gostava de sua voz lendo um poema, comemorando um gol, dizendo que me amava. Mas meu amor por ele era uma borboleta que ainda não tinha aprendido a voar.
[...]
Seus olhos mal eram vistos entre as lágrimas. Agradeceu-me por estar ali com ele, por só estar com ele. Disse-me que não tinha medo de perder a vida, mas de me perder. Eu quis quebrar meu casulo, não sabia se para que a borboleta aprendesse assim a voar, ou para que caísse no chão e desmanchasse-se. Não queria perder sua borboleta, mas não queria que ela apoiasse-se na minha dessa forma.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Juro.

Nada em ti me era mais admirável que tua tristeza. Havia beleza em teu olhar repousado sob o chão, nas tuas sujeiras fazendo volume por debaixo do tapete. Fostes sempre o humor depois de um abraço interrompido, de um beijo por tanto esperado, cujo gosto fez-se amargo e depois insípido. Mais chamava-me a atenção tuas escalas de cinza do que qualquer arco-íris prevendo chuva. As madrugadas tornavam-se poesia quando presenteadas com tua embriaguez de melancolia. Tuas dedilhadas nas cordas de um velho violão eram mais doídas que um choro, que um grito de desespero ecoando por entre os prédios de uma cidade escura. Tuas lágrimas faziam até com que o céu chorasse, pois escorriam pelo peito direto do coração. Coração que batia sempre fraco, quase implorando para que parasse. Teus lábios eram secos, quase imóveis, pálidos, fúnebres, porém, sempre muito convidativos, convidavam os meus para que beijassem tua morte em vida.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Passaporte.

Escreverei-te uma carta, esperando não ser de definitiva despedida. Falarei sobre os campos cobertos de girassóis pelos quais passei, e de como quis vê-los contigo, de como imaginei seus olhos atados àquela paisagem intimidadora. Reparando naquela mescla de cores, visualizei seu sorriso infantil ao vê-la. Comentarei sobre o tempo frio, que tornou-se de impossível convivência. Direi o quão bobo pareço coberto de inúmeras camadas de lã e algodão, e imaginarei-te imaginando-me desta forma, sei que há de gargalhar ininterruptamente por alguns segundos, e depois encerrará as gargalhadas com um suspiro, voltando seus olhos para minha letra descuidada. Levará um susto quando minhas letras anunciarem a proximidade de meu corpo a outro, e esperarei que saibas que, no fundo, foi apenas uma maneira de fazer-te preocupada. Direi estar, no momento em que escrevo, bebendo uma taça de um belo vinho, cujo aroma frutado lembra-me de seu perfume, mas nas entrelinhas deixarei claro que tal perfume nunca escapou-me da lembrança. Contarei como a foto tua que carrego, traz-me saudade, escondendo outras sensações. Terminarei dizendo-te que em breve estarei de volta, que sinto saudades de casa. Esperarei que lembre-se de que não tenho uma, e ofereça-me a tua. Aí então eu largaria a máscara por detrás do envelope selado, compraria uma passagem, e apareceria na tua porta, ajoelhado.

Pés.

Buraco.
Mais buraco.
Um rasgo.
Outro rasgo.
Perfura.
Perdura.
Os anos.
Usamos
desculpas,
palavras,
esparadrapos.
E para dá-los
doamos,
vendemos,
trocamos.
Buracos,
só mais
buracos.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Café da Manhã.

Passaria para visitar-te de manhã cedo. Sentaríamos no balcão da padaria, eu pediria um pingado, e você um suco de laranja natural. Você olharia-me nos olhos, puxaria-me para perto, riria quando minha cadeira cambaleasse, lamberia os lábios, respiraria fundo e diria que amava-me. Eu diria que amava-te mais. Tu olharia-me com aquela cara de quem não entendia como, e então eu diria-te os porquês. Tu acrescentaria os portantos, e por pouco não deixaria escapar os entretantos. Eu queimaria minha língua com o pingado, tu dirias que o acontecido só se dera por eu ser tão boba. Jogaria em ti a culpa de minha bobeira. Tu olharia-me com aquela cara de quem não entendia como, e então eu diria-te quando. Tu pediria pela data, mas minha memória mostraria-se fraca. Teu suco viria com gelo, e então eu exaltaria-me como se deixassem-te morrer na maca do hospital. Tu dirias não ter visto problema, e passaria a mão por minha perna. Eu então acalmaria-me, beijaria teus lábios, que já molhados narrariam teu amor por mim. Eu olharia-te com aquela cara de quem não entendia como, faltariam-te os porquês. Diria-te os portantos, os para quê, e o para sempre.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Estações.

Poderíamos ter seguido, mas preferimos sentar-nos para o tempo. Fizemos sala para a vida. Fizemos quarto para o amor. Montamos uma casa, um jardim, um quebra-cabeça. Montamos um ao outro. Esperamos a Primavera, ela veio. Passeamos com o verão. Permanecemos calados junto ao Outono. Escondemo-nos do Inverno que nos encontrou. Foi quando te levantastes e fiquei perplexa. Despediu-se da vida. Deu às costas para o amor. Demolimos a casa, fizemos do jardim um cemitério, perdemos as peças. Demolimos um ao outro. Esperamos as estações, não vieram. Ficamos na mesma estação indefinida. O trem chegou. Você partiu. E partiu-nos em cada pedaço que reescrevo aqui.

http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

Despedi-me sim. Apertei-lhe a mão e o peito. Incomodou-se sim. Acomodou o incômodo até tornar-se imperceptível. Parti pela janela, pulei. Fui notada, louvada, levada para nunca mais e nunca menos. Não sentes pois nunca sentiu. Por meio desta, tento lembrar-te, tendo fazer-te acordar. No entanto, não consigo. Fui apenas uma miragem, cujo frescor e o vento, esqueceram-te de avisar, nunca existiu, nem nunca existirá.

Do blog: http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

Defunto.

Assustei-me. Assustei-me quando enxerguei-te de pé. Parecia uma linha perpendincular ao horizonte. Quando foi que tornou-se tão magro? Assustei-me ainda mais quando enxerguei-te de perto. Nem uma máscara esconderia os buracos abaixo de teus olhos. Quando foi que tornou-se tão mórbido? Desde que lembro-me - e minha memória, sabes bem, nunca foi pouca -, seu corpo escandalizava em carne e vida. Diga-me, o que aconteceu? Caístes de um prédio ou caístes em si? O que mostras agora por fora, parece-me exatamente o que vi quando entrei um pouco em ti. Esquelético, ossos, só ossos, nada que batesse, nada que pulsasse, nada que valesse, ou que vivesse, ou que tentasse. Morto, é isso que sempre fora, é isso que sempre será. Levou bastante tempo para que percebesse. Tirou algum tempo para tentar levar-me contigo. O que levou foi um pouco de vida, de minha vida, em forma de tempo, em forma de coração.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Quereres.

Queria, sem confessar, que a vida fosse feito um conto de fadas. Porém até os vagalumes perdiam suas asas. Queria, no meio da tarde, passar para fazer-lhe uma visita, roubar-lhe um beijo, dar-lhe, em troca, mais um pedaço de seu coração. Queria que saíssem para caminhar na areia, mas o mais próximo que tinham eram calçadas e cascalho. Queria segurar sua mão com força, mas a força que tinha era para manter-se de pé.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Veja Bem.

Com os olhos nos olhos e as lágrimas em seus cantos, relembrávamos de quando fizemos um passeio pela praia no fim da tarde, como se a memória deste pudesse salvar-nos. Relembrávamos dos cafés na cama, dos Domingos esparramados nela. Citávamos velhos amigos e histórias que faziam-nos rir. Eu comentava sobre seus cabelos longos no fim da década de 80, enquanto você criticava minha velha mania de criticar-te. Falávamos sobre quando ficamos sem dinheiro e foi preciso abrir mão das saídas de fins de semana, e de como isso tornou-nos mais próximos. Riu relembrando de minhas juras de amor, tão desconcertadas e ingênuas. Ri do seu sorriso, e de como um dia acreditei que ele fora tudo que eu sempre busquei. Falamos de quando nossa paixão tornou-se fora de moda. Falamos de quando nosso amor tornou-se fim de tarde assistindo televisão. De quando o vício tornou-se apenas um vício, e fomos buscar outros - em outros.

Carta ao Passado.

Começamos com um cumprimento.
Como estás? Por onde andas? Sumistes dos meus sonhos, quero dizer, pesadelos. Um dia desses veio-me à memória a tua lembrança. Veio feito um filme antigo, repleto de cortes, sem sequência temporal. Rebobinei-o, assisti-o ao avesso, mas permaneceu sem imagens nítidas. Vi-me sentada ao seu lado, sem contraste. Assisti, nos meus lábios, o surgimento de um sorriso forçado. E nos teus, a permanência de um sorriso gélido. No enfoque que deram em nossas mãos, vi-as separadas pelo espaço - de tempo. Enganávamos a quem? Pois nem nós mesmos acreditávamos em nós, nem muito menos fitas, nem muito menos laços. Éramos um par de cordas desatadas que, sozinhas, romperam-se. Lembro-me do choro. Chorávamos como se nossas cordas tivessem sido separadas. Sabendo, no fundo, que chorávamos por elas nunca terem unido-se. Não era minha corda com a sua, ou sua corda com a minha. Era corda com corda e a esperança de uma concordância nominal. "Nós amamos, nos amamos". Mas não amávamos não. Eu amei de um lado, e você amou de um outro. As cordas, não nós.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Sóis.

Quando o sol olhou-me pela primeira vez, não enxergou-me como enxerguei-o. Quando olhei-o pela primeira vez, olhei-o de relance, foi preciso olhá-lo de novo para reconhecê-lo. Não queimou-me a retina, ou deixou-me agoniada, seu olhar prendeu-me. Quando o sol olhou-me pela primeira vez, olhou-me pelos teus olhos.

Ctrl C.

Enxergou-me.
Enxerguei-te.
Procurou-me.
Encontrou-me
Viu.
Invadiu.
Abriu a porta.
A janela.
As cortinas.
As pernas.
Deleitou-se.
Deletou-me.
Deletamo-nos.

domingo, 22 de novembro de 2009

Podemos sim.

Sentados à mesa para falar de saudade.
- Poderíamos amar-nos de novo.
Sentados à mesa para falar da vida.
- Poderíamos viver-nos de novo.
Sentados à mesa para falar do passado.
- Poderíamos conhecermo-nos de novo.
Sentados à mesa para falar do futuro.
- Poderíamos um dia sentar-nos à mesa.

Desculpas...

Chuvisco.
Chuva.
Tempestade.
Gota.
O(u)t(r)a.
Tá.
A(h).
Gota.
Tempestade.
Chuva.
Chuvisco.
Gota.
(D'água)
Tá.
(Última).
Já?

Dois de Costas.

O que passava-se por detrás daqueles verdes olhos era uma caixa de Pandora. Eram olhos curiosos, intrigantes, mas seus segredos, quando descobertos, poderiam fugir do controle. Era possuidora de um bom gosto homérico. Degustava dos melhores vinhos, punha para tocar os maiores clássicos, conhecia de cor as mais aclamadas obras literárias. Exibia-se ao público com aquele velho ar esnobe, desprezava qualquer quase todo o tipo de companhia. Quando em festas, checava seu relógio de pulso a cada dois minutos, até que somassem-se dez e ela sentisse-se no direito de retirar-se. Seguia até sua casa, com uma calma irritante, como se estivesse rumo a uma cadeira elétrica.
O que passava-se por detrás daqueles dourados olhos era como um artigo de jornal. Eram olhos explicativos, claros, mas seus erros, quando descobertos, poderiam fugir dos padrões. Era possuidora de um mau gosto mixo. Engolia as piores cachaças, punha para tocar as "melhores da semana", conhecia de cor a programação da televisão. Escandalizava-se para o público com aquele velho ar efusivo, aceitava qualquer tipo de companhia. Quando em festas, dava seu telefone a cada dois rapazes que pediam, até que somassem-se dez e ela sentisse no direito de entregar-se. Seguia até a casa dele, com um ânimo contagiante, como se estivesse rumo ao berçário.

Filme.

Culparia o cansaço de suas pernas finas, ou a vida, ou a falta de apetite. Quisera poder segurar tudo em suas mãos, mas cada uma das coisas dava um jeito de escapar-lhe pelos dedos. Talvez fossem como passarinhos, e a força com a qual segurava-as ia além daquela pretendida. Apertava-as de coração apertado. Quisera que sua vida fosse uma coleção de colares de pérolas e belos penteados, acompanhados de sorrisos imóveis e acenos repetititivos. Uma vida na qual os cordões não rompessem e os fios de cabelo não prendessem-se nos lábios. A vida que tinha era-lhe indigesta, exaustiva. Vivia a tropeçar nas contas que escapoliam de seus colares, a cegar-se com os fios de cabelo nos olhos. A vida dos outros era soma de momentos. A sua fora, até então, a soma de acidentes. No encontro de um acidente seu com o momento de outro, perdeu as raspas de fôlego que entravam por sua boca. Julgou aquela sensação como um momento. Sua vida era, agora, a soma de trilhões de acidentes com um momento só, que valia por toda a cegueira e as cascas de ferida. De cabelos despenteados e com um colar sem contas, entregou-se a aquele momento na esperança de virem outros. Prendeu aquele momento em suas mãos. Mastigou-o até os próximos. Um encontro, um momento. Mais encontros, mais momentos. Sentia como se segurasse uma constelação em suas mãos pequeninas. Em um novo encontro, em um novo momento percebeu que apertou-o com muita força, o bastante para prendê-lo antes de escapar, o bastante para que esse aperto parecesse um erro. Apertava-o de coração solto. Quis libertá-lo, mas não sabia como, já que estava tão grudado em suas palmas que, deixaria-o sem rumo, ficaria sem jeito. Culparia o cansaço de suas pernas finas, a vida, a falta de apetite. Cansou-de mastigá-lo. A vida de antigos acidentes e novos momentos era bem digesta, sem tempero. Cansou-se dela. Queria as contas no chão e novos tropeços.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Pimenta.

O gosto de pimenta fazia seus olhos lacrimejarem e seus lábios tomarem para si um vermelho gritante. Gostava de sentir-se queimar enquanto gotas de suor escapoliam fazendo caminho entre seus seios. Era um pouco do calor que faltava-lhe. O calor barato que viria dos abraços fortes que não receberia. Fazia sol, fazendo a cidade irritar-se. Eram inúmeras as reclamações saindo da boca do povo, queriam um guarda-sol para protegerem-se. Pudera ela guardar o sol todinho dentro de si. Queria deitar-se no asfalto, sentir sua pele queimar até reviver sua carne. Carne viva era vida menos morta. A pimenta tinha a mesma cor de seus lábios e a mesma cor de sangue. Era cor do calor, e da vida que estava procurando.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Tempo.

A bateria de seu relogio de pulso acabou, mas continuou a usá-lo. Acreditando que, no momento em que ele parou de funcionar, o tempo parou junto. Precisava de algo no qual acreditar então, com toda a inocência que restou de sua infância, acreditou no fim do tempo. Enquanto os relógios alheios corriam junto a suas pernas, ela sentava-se no meio-fia e assistia o tempo dos outros passar. Via-os conquistarem novas rugas, enquanto ela havia conquistado um pouco de paz. Por não ter mais o tempo, tinha todo o tempo do mundo, e usava-o para minimizar os minutos, e como consequência, os estragos. A vida iria passar, mas ela não passaria por ela. Tinha o tempo e a vida em suas mãos. Tinha o mundo. Os que viviam sem tempo, não viviam, corriam, tropeçavam, enrolavam-se e caíam. Ela vivia sem tempo porque o tempo não existia, então tinha calma, alma, e sua vida nunca acabaria, pois sem tempo, seu tempo não poderia esgotar.

Maria.

Miúda, cabelos grisalhos. Sorriso estampado no rosto, lágrimas escondida nos olhos. Sua pequineza guarda peso maior do que poderia-se, um dia, imaginar. Veio do Mar, com seus arranhões, veio do Maranhão. Casou-se pouco depois de trocar as fraldas por um vestido feito à mão. Apaixonou-se por seu rádio, pelas vozes que saíam, felizes, dele. Eram vozes de esperança, eram as canções que ela queria cantar em cima de um palco, mas cantava debruçada sobre o tanque. Ainda vivendo o encantamento por bonecas, desencantou-se com a que vinha sendo fabricada em sua barriga, mas que escapoliu por suas pernas abertas antes da data de expedição. Morreu um pouco ali, mas manteve-se de pé, a cantar as canções de esperança. Na espera das vozes saírem do velho rádio, saiu dela uma voz aguda, chorosa. Que precisava de leite, que precisava de tempo, que precisava de calma. Pouco leite, muito tempo, muita calma. Agora cantava a esperança como canções de ninar. E as vozes continuavam a não sair do rádio. Mas outras três vozes agudas, chorosas, saíram dela. Pouco tempo para o leite, muita calma para o tempo. Das quatro vozes, uma chorava mais baixo. Tinha saído pelas pernas no momento errado. Era a mais carente de leite, de tempo, de calma. Voz que vinha de pouco corpo, mas muita alma. Ela continuava a debruçar-se sobre o tanque, o fogão, o berço, cantando as vozes de esperança. O tempo foi tornando-se pouco, a calma foi tornando-se necessária, o leite foi ficando para o café. A esperança, inibida, permaneceu a mesma. As vozes não saíam mais do rádio. E ela esquecia-se da voz, e a voz esquecia-se que sabia cantar. As canções tornaram-se esquecidas, não por ela, pelo tempo. A pouca memória tornou-as vagas melodias que, quando debruçada sobre o tanque, dava-lhe a vontade de cantar. Tinha esquecido as letras. Tinha esquecido o leite. Não esquecia-se do tempo, e a calma havia tornado-se medo da pressa que esse tempo tem de passar - e acabar.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

1996.

Ele amava a delicadeza com a qual ela depilava as pernas, a delicadeza com a qual roçava suas pernas na dele. Ele amava dormir abraçado em seu corpo pequeno e quente. O ápice de seus dias, acontecia pela manhã, quando ela dava seu primeiro sorriso. Nada, para ele, era mais belo do que seus olhos estrábicos depois de algumas doses de tequila. Via graça em sua mania de mordiscar o canto esquerdo do lábio enquanto dedilhava o violão. Ela tinha sido seu presente na madrugada do Natal de 1996. Não tinha sido entregue pela lareira, tinha caído diretamente do céu. Na queda, machucou-se um pouco, feriu suas asas. Sua cicatriz debaixo do queixo doía nele mais do qualquer outra coisa. Era a partilha da dor que tornáva-os tão próximos. Ele via beleza em todos os seus defeitos, especialmente naqueles que, de alguma forma, machuvam-no. Ela não poupava palavras na hora de fazê-lo menor. Nada em seu amor era-lhe suficiente. Ela repudiava a forma como ele assistia-a escolher um vestido, adorando cada pedaço de seu corpo. Dava-lhe ânsia saber que não bastava a realidade, que ele ainda fazia questão de tê-la em seus sonhos. Não que não amasse-o, pois amava. Amava-o com a obrigação de não deixá-lo só como estava na madrugada em que conheceu-o. Perdido, apoiando-se nas paredes. Acima de tudo, ele amava a forma como ela desgostava de seu amor. E por isso, amava-a mais.

Lua.

Juntos, conheceram a felicidade em sua forma mais simples. A felicidade dos olhos nos olhos e das bocas fechando palavras. Sentavam-se à mesa do café da manhã e passavam a margarina para o outro sem precisar que pedisse. Acordavam e iam dormir sempre do mesmo lado, sempre com o mesmo aconchego, mesmo abraço. Ele sabia de sua mania de colocar, sempre, primeiro o açúcar e depois o café. Ela sabia de sua mania de cobrir seus olhos em um filme de terror. Deitados na cama, com as pernas embaralhadas, sentiam-se protegidos de tudo, inclusive deles próprios. Viviam inteiros pela metade. Ela nunca explicou porque sempre pedia seu chá gelado em temperatura ambiente. Ele nunca contou-lhe que colecionava cartões telefônicos. Quando faziam amor, faziam-no de forma lúdica e morna. Programavam-no. E repetiam os mesmos passos, tantas vezes ensaiados. Ela sempre tinha sido razão. Ele sempre ia além da perfeição da forma e a combinação de cores. Em um amanhecer, confundiram a margarina com a geléia. À partir daí, perderam as razões, mas nunca o sentimento...

Ela X Cidade

Ela poderia passar toda a sua vida caminhando pela cidade. Via-a como um organismo em constante mutação, estava sempre a crescer, respirar, engasgar, adoecer. A cidade era sua pior parte e sua melhor amiga. A cidade que deixou-a assim, imponente. O humor de uma, dependia do céu da outra. Quando o céu da menina ameaçava uma chuva forte, a cidade aquietava-se. Intimidade era silêncio, e no vazio de graves e agudos, a menina e a cidade sintonizavam-se. Choravam juntas as lágrimas que produziam sozinhas. E iam vivendo assim, nos dias em que a cidade era caos, a menina embriagava-se até cair, de joelhos, pelas suas calçadas, como se implorasse por um sorriso. Nos dias em que a cidade era festa, a menina saltitava atravessando seus sinais verdes. A menina e a cidade andavam de mãos dadas. Vez em quando degostavam-se, mas nunca desentrelaçavam seus dedos. Apesar das oscilações de humor, das buzinas estressadas, da fumaça mal-cheirosa, da baixa umidade, eram tudo o que tinham. A menina amava a cidade por sê-la em diminutivo. A cidade amava a menina por ser um ser irracional.

Cadeira.

Enlouqueceu, diriam se vissem-na nesse estado. Sentada em uma cadeira de praia, no gramado em frente ao Congresso, olhando para cima. Perguntariam-se para o quê ela estaria olhando. Cheios de ironia perguntariam, "O que foi? Nunca viu o céu não?". Cheia de certeza ela responderia que céu assim, nunca tinha visto não. Extremamente claro em sua escuridão. Limpo, cobrindo a sujeira alheia. Sentada ali, na Praça dos Três Poderes, desprovida de qualquer poder, sentia-se diminuir. Era a imensidão do céu, a multidão de carros, a pequineza de seu corpo pálido. Enlouqueci, diria se visse-se nesse estado. Não disse. Não viu. E ainda que visse, talvez poupasse tal palavra. Guardaria-a junto a loucura, que era a única coisa sua, só sua e de mais ninguém.

Sonhado.

Ele, quando sozinho em casa, vivia a picotar folhas de jornal para entreter-se. Fechava os olhos, segurava algumas folhas em sua mão, e saia a rasgá-las com a outra. Jogava os pequeninos pedaços no chão, e punha-se a procurar pedaços iguais de folhas diferentes. Com sorte, reconhecia os pares que separaram-se no espaço de suas mãos até o chão. Aquele ritual dava-lhe uma felicidade tão pobre, ainda que enriquecesse sua esperança. Aquelas folhas, quando ainda inteiras, eram somente notícias velhas. Porém, quando picotadas, eram o protótipo do trabalho de quem fez cada uma das pessoas. Acreditava terem sido feitas com descuido e olhos trancados para que não houvesse prioridade ou preferência. Um pedaço da parte de esportes poderia muito bem combinar-se com a programação cultural. Para ele, essas combinações eram tais como os pares românticos, as almas gêmeas. Com dizeres e figuras diferentes, mas iguais na forma. Na forma de sentir, não de ser. Ele tinha toda a paciência do mundo para colocá-los juntos, desconhecendo quem é que teria a paciência para colocá-lo junto ao pedaço dele. Diferente da folha, ele e seu pedaço perderam-se no espaço de ser e estar, no espaço da vida. Ele, quando sozinho em casa, vivia a picotar-se, remoer-se, criticar-se. No espaço da vida, perdeu seu pedaço. E no espaço daquelas quatro paredes, chegava a cogitar se seu pedaço havia ficado para uma outra vida...

Insatisfação Crônica.

Aos 6 anos, parada em frente à loja de brinquedos, foi obrigada a fazer sua primeira decisão. A boneca ruiva ou a boneca loira? As duas, por quê não? Levou-as para casa, embrulhadas, enfeitadas com uma fita vermelha. Sentou-se no chão de seu quarto e tirou-as da caixa, tentando decidir com qual brincaria primeiro. Analisou-as milímetro por milímetro em busca de algum defeito. Desinteressou-se. Acabou por não escolher e passou-as para frente. Mais velha, sentada à mesa de um restaurante, passava horas relendo o cardápio, para decidir que não pediria nada. Acostumou-se a ter tudo e a querer tanto, que tinha pouco e não queria nada - que pudesse conseguir com facilidade.

domingo, 15 de novembro de 2009

A Mulher da Mala.

Era sempre vista vagando pelos Eixos, caminhando lentamente pelas consoantes da cidade. Seus cabelos, brancos e longos, chamavam a atenção de quem por ela passava. Viam-na somente como mais uma das personagens do cotidiano. Carregava uma mala e alguns livros. Sentava-se na grama, folheava algumas páginas. Perdia-se em sua literatura sem nunca ser perdida de vista. Estava sempre por aí, a capturar alguns olhares curiosos. Sua saia longa balançava com o vento, contrastava com os ipês. Poucos sabiam o quão aguda era a voz por detrás daquela cabeça cabisbaixa, daquele rosto enrugado, daqueles olhos perdidos. Caçoavam de sua excentricidade olhando-a dos pés à cabeça. Quando pedia por alguma coisa, pedia por histórias novas. Para esquecer-se da sua? Quem sabe...disseram-me que havia enlouquecido e sido abandonada, pelas centos, trezentos, quatro mil e quinhentos, da cidade. Sua loucura era rica em conhecimento e sobriedade. Um dia, sentada na varanda de um bar, vi-a conversar com um grupo de homens, tão sérios e engomados, erguiam seus copos de cerveja enquanto riam escandalosamente de suas falas. Chamei-a, pedi para que chegasse mais perto. Quis olhá-la com cuidado, fotografando cada milímetro de sua existência. Vi, em seus olhos, um punhado de sonhos desfragmentados. Reparei na ausência de sua mala, reposta por duas sacolas de plástico. Tentei fazê-la entender que só queria escutar sua voz, e tudo que essa tinha para dizer-me. Desconcertada, pouco disse. Perguntei-lhe o que queria, achando que falaria-me daqueles sonhos por detrás de sua íris amargurada. Disse-me querer um café. Apenas um café. Dois mínimos reais. Dei-lhe uma nota de vinte, ficou meio sem entender. "Quer que eu traga-lhe o troco?". Não, não, quis apenas que trouxesse-me um pouco da vida.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Véia.

Cheiro de olhos molhados, gosto de chuva. Tinha medo de encontrar-se sozinha no futuro, sentada em um sofá velho, ao lado de seus incontáveis gatos. Também tinha medo de não encontrar-se e ter de imaginar-se repousada por debaixo da terra. O futuro era o grito que quisera calar depois de já ter escapado boca afora. Com um cigarro aceso, tentava apagá-lo da memória. O futuro era passado a ser resgatado mais à frente. Quem um dia tinha sido talvez ressuscitasse depois de uns anos. Forte como uma brisa do mar, esforçava-se a pensar positivo. Se as vidas passadas perdoassem-na, talvez encontrasse-se sentada à uma mesa de jantar, cercada de bons amigos. Amigos que conquistaria assim que sua existência fosse notada. Com a cabeça pesada e o corpo inerte, via-se como estava vendo-se no agora, planejando futuros, onipresente desplanejada.

Impulso.

Precisava nunca lembrar-se dela, para nunca esquecer-se de si. Precisa, mais do que qualquer outra coisa, esquecer que seus sentidos tinham memória, e acima disso, tirar a memória deles. Era sua visão, e a forma como estava estagnada na lembrança dos olhos cor de mel. Era seu tato, e como fingia que qualquer brisa era sua silhueta insinuante. Era seu paladar, e o modo como tendia desgustar da amargura. Seu olfato, caçando no vento o cheiro cítrico da nuca. Sua audição, repetindo a voz rouca. Precisava lembrar-se dela para colocar-se de pé ao amanhecer. Precisava esquecer-se de sua ausência para não voltar ao chão. Precisava de um chão, para não bater de cabeça no teto...

Maresia.

O dia em que ela passou pela porta de entrada, foi o dia em que sua vida passou feito filme pela cabeça. Ele viu o céu dançar com o mar, e o mar fazer chover, e o céu cobrir a areia. Ela passou feito furacão e ele deixou-se levar pelo vento frio. Ficou fazendo elipses em torno dela. O dia em que ela passou pela porta de saída, foi o dia em que sua vida passou feito filme pela cabeça. Ele viu o céu lutar com o mar, o céu fazendo chover o que o mar não pôde chorar.

Mensagem.

Eu quero mudar-me para as montanhas, começar uma plantação de trigo, achar que fertilizante é novidade, fingir que perdi meu marido. Quero ter marcas fortes de sol, calos nas mãos, quero importar-me mais com os outros, envelhecer, perder a visão. Quero ter poucos amigos e sentar-me numa cadeira de balanço para assistir as nuvens dançarem. Quero entender o mundo e quero, no fundo, fazer um transplante de coração. E eu quero ser sol e ver o poeta desaparecer na linha do horizonte. Estou cansada, sou cansada e estou casada com a contradição.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Barraca de Flores.

A agonia é consequência de uma existência amarga. Sendo aquele que sente, nem sempre aquele que dá gosto. Quem nunca quis não sentir? Logo depois de implorar por um toque...sentir à flor da pele, é sentir os espinhos de uma rosa. Paga-se por pétalas. Paga-se por elas com amor. Pega-se as pétalas e joga-as no lixo. As pétalas, como gente, apodrecem com as horas. Na barraca de flores da esquina, não vende-se espinho separado. Ou leva-se as pétalas ou leva-se a rosa inteira. Pego as pétalas e jogo-as no lixo. As pétalas, como as horas, apodrecem a gente. Sentir à flor da pele, é passar pela barraca de flores, e sutilmente, furtar alguns espinhos.

Fim da Linha.

Querer dormir é não querer acordar.
E ele dorme,
de forma singela,
sem ela.
Querer acordar é dormir com pesadelos.
E ela acorda,
de forma singela,
com ele.

Cansa.

Era a tristeza que tornava-a tão sorridente. Era a intimidade que tornava-os tão silenciosos. Era a partilha dos males que tornava-os tão próximos. Era ela sabendo da existência dele. E ele tentando dar, em seus sonhos, uma feição a ela. Era a vontade de acreditar, e a dificuldade de acreditar com vontade. Foram as idas solitárias ao cinema, a pipoca ficando sempre na metade, os dois canudos para uma boca só. Foram os sussurros em forma de música, os sussurros em forma de gente. Foram eles olhando para a gente, e a gente olhando um para o outro. Era a nossa tristeza que tornava-nos tão sorridentes. Era a falta de intimidade que tornava-nos tão falantes. Era a partilha dos bens que tornava-nos tão distantes. Era eu sabendo da sua presença. E você tentando dar, em seus pesadelos, um fim a mim. Era a vontade de desacreditar, e a facilidade de acreditar sem vontade. Foram as idas acompanhadas ao cinema, a pipoca acabando, um canudo só para duas bocas. Foram os sussurros em forma de grito, os gritos em forma da gente. Foi a gente olhando para eles, e eles querendo olhar um para o outro. Foi a tristeza que tornou-me tão sorridente. Foi a intimidade que tornou-me tão silenciosa. Foi a partilha de coisa alguma que tornou-me imóvel. Fui eu sabendo da inexistência de alguém. E alguém, em meus sonhos, tentando dar existência a mim.

Pesadelo Favorito.

O que passava-se na cabeça dos dois era um dos mistérios da vida. Quando em um mesmo espaço público ignoravam a presença um do outro, riam escandalosamente e erguiam suas taças de vinho seco frutado. Ela punha seu tronco para frente, insinuando-se para outros rapazes. Ele encostava-se na parede, cruzava os braços e deixava sua voz soar o mais grave e suave possível. Fingiam não saber, mas todos sabiam de seu passado. Tinham sido amigos, depois amantes, depois inimigos, depois amantes, e então, tornaram-se conhecidos. Disfarçavam dando um a outro um pseudônimo. João era Pedro, depois Henrique, Fernando, André. Fernanda era Gabriela, depois Maria, Júlia, Larissa. E seus fins de semana sempre tinham sido festa, viagem para Paris, curso intensivo de pilates. Quando em quatro paredes, exploravam todo o espaço, desafiavam as leis da gravidade. Elevavam-se à altura do céu, flutuavam. Depois trocavam olhares. Sentavam-se longe. Partilhavam o silêncio. E então era feita a promessa de ser a última vez. E trocavam os olhares por ofensas. E terminavam ali o que não sabiam como havia começado. E despediam-se com frieza, querendo apreender o calor de seus corpos. E exibiam-se em público. Negando sua vontade. E esbarravam-se na entrada do banheiro. E esbarravam seus olhares. E sem querer, esbarravam suas bocas. Esbarravam suas vontades. Esbarravam seus caminhos. E iam parar no meio das mesmas quatro paredes. Negavam a existência do mundo fora delas. E faziam um mundo para eles. Impunham suas próprias regras, quabravam-nas logo depois. E punham seus corações à mostra, quebravam-nos logo depois. E começavam. E terminavam. E toda vez em que começavam, amavam-se. E toda vez que terminavam, voltavam. E quando voltavam, amavam.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Oito.

Despencou aqui, vindo lá da última curva depois do fim do mundo. Trouxe nas mãos alguns anéis, nos bolsos alguns buracos e na bolsa...bem, bolsa ela não trouxe não. Da primeira em vez que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la pronunciar "fiado", não porque fazia um biquinho como quem falasse francês pela primeira vez, mas porque no mundo de cá ninguém falava fiado mais não. Era o mesmo de dizer que sairia sem pagar a conta, ou pegaria um pacote de biscoitos e guardaria na calcinha. Aqui todo mundo pagava pelos seus pecados, problema não era dos outros se não tinha mais dez centavos para completar a fatia de bolo. Da segunda vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la desamassar os dois reais que havia ganhado, como se a notinha lisa disfarçaria seu cheiro de cachaça. Da terceira vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la de mãos dadas com o bisavô de algum moleque bem perdido. Ela segurava a mão dele como se segurasse a mão de Deus, só que esse Deus era provavelmente mais rechonchudo, e diferente do Deus lá de cima, usava umas correntes de ouro com uns dizeres em inglês que nem ele mesmo deveria entender. Da quarta vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la pedindo vodka importada, dessa vez porque ela fez um biquinho como se "importado" fosse palavra em francês. Da quinta vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la saindo de um carro roubado, como se ninguém soubesse que o Deus dela estava em condicional. Da sexta vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la toda vestida de preto, fingindo lamentar-se por Deus ter morrido acidentado, mas na verdade por ter sido perda total do carro. Da sétima vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la pedindo trocado. Da oitava vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la na memória falando "fiado", se tivesse pagado, incondicional que teria conhecido, seria amor, não um Deus abandonado.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Os Senti(n)dos Muito.

Quantos.
Tantos.
Tatos.
Os fatos.
Olfatos.
Ouviram.
Ouvimos?
Vimos.
Enxergamos.
Negamos.
Agora,
anestesiados,
congestionados,
vendados,
admitimos.
Quantos
tantos
(de nós)
fomos,
tarde demais.

Fui?

Ela foi protagonista da sua vida. Tapete vermelho e tudo mais. Ela foi as quatro estações do ano, que só ele pôde notar. Ela foi abraço e descaso. Foi um caso de polícia. Ele foi louco. Ela foi sã. Ele foi poeta. Ela foi cega. Ele foi músico. Ela foi surda. Ela foi embora. Ele ficou. E eu, quem fui?

domingo, 8 de novembro de 2009

Sistema Digestório.

Na boca, um gosto amargo. Gosto de boca com boca. Gosto de acidente inevitável. Somado ao café frio. Ao cigarro encontrado numa caixa com coisas do passado. Nas costas, uma tatuagem. Com suas cores desbotadas. Com sua forma deformada. De peito apertado, de cabeça vazia. Com mais cara que coragem. Tão minuciosamente despedaçado. Cheio das marcas, dos mais variados remetentes. De nome grande, de corpo pequeno. Maxilar forte, descontando seus poucos músculos. Conhecedor de línguas e culturas. Degustando o gosto amargo da vida, e das vidas que tinha provado. Acendendo um cigarro, para apagar umas lembranças. Queimando as cinzas, para queimar as cartas. Farto do passado. Esfomeado de futuro. Deglutindo quem foi, para depois, excretar quem pretende ser. Na boca, um gosto amargo, da mastigação de si que havia faltado.

Sentidos.

Das tantas vezes que terminaram. Das tantas outras que voltaram. Encontravam-se sempre debaixo do mesmo céu de suas bocas. E abraçavam-se. E aninhavam-se. E embolavam-se. E amavam-se. E odiavam-se. E despediam-se. E reecontravam-se. E seguravam as mãos. E seguravam os pés. E seguravam o choro. E um seguia para um lado. E um seguia para o outro. E um olhava para trás. E um olhava pouco depois. E davam a volta na rua. E davam voltas em seus mundos. E a calçada terminava no mesmo lugar. E entreolhavam-se. E entre olhares viam-se. E entre vias amavam-se. E o trânsito parava. E a chuva caía. E a música tocava. E tocavam os sinos. E tocavam os corpos. E tocavam as almas. Das tantas vezes que voltaram. Das tantas outras que terminaram. Encontravam-se sempre debaixo do mesmo céu de Brasília. E estranhavam-se. E reconheciam-se. E conheciam-se. E apresentavam-se. E despediam-se. E um seguia para um lado. E um seguia para o outro. E um olhava para trás. E um já estava olhando. E então voltavam. E encostavam-se. E decoravam-se. E de cor sabiam,
a cor
o gosto
o cheiro,
e de tato, o tanto que é triste estar só.

Mundo.

Começa quando um olho vê um corpo.
Quando um corpo vê o outro.
O mundo fica pequeno.
Fácil de conhecer.
Mundo do eu e você.
Começa quando um olho encosta no outro.
Ambos fechados.
Quando um corpo encosta no outro.
Ambos se abrem.
O mundo fica grande.
Mundo do eu, você e o resto.
Começa quando um olho enxerga o outro.
Ambos abertos.
Começa quando um olho enxerga um corpo.
Ambos se fecham.
O mundo fica pequeno.
Mundo em que não cabe
mais eu e você.
Termina quando o corpo fica maior que o olho.
E um olho fica menor que o outro.
O mundo fica minúsculo.
Mundo em que nunca coube
nem eu, nem muito menos você.

Foda.

Você sempre roubou-me sorrisos, mas eu nunca consegui fazer-te feliz, nem por um instante, nem por um segundo. Quando eu via-te apontar na esquina meu corpo dava festa, quando você via-me fazendo festa para você, vestia-se para seu próprio enterro. Segurava sua mão por jurar não precisar de mais nada, e embriagado, você confessava-me estar segurando a minha só para que não caísse. Se fosses cair, deixava que levasse-me junto. Fui afogando-me com você. Em você. Você era tão triste. Auto-destrutivo. Levava-me sempre para passear, eu, você e seus demônios internos. Vivia em guerra consigo mesmo. Achava que era artista, achava que isso dava-te o direito de agir assim. Tão distante, tão impenetrável, um dos intocáveis. Queria minha infelicidade para fazer dela literatura. Queria meu corpo eriçado para fazer dele esculturas. Precisava de mim para exibir-se para o mundo. Seu talento em forma de mulher. Sua mulher retratada, ao lado dos grandes, exposta, admirada, criticada. Sua mulher realizada, ao lado da merda, omitida, desprezada, criticada. Sempre quis falar-te a merda que és. Mas o fôlego que impediu-me de ter, impediu-me até então. Fez-me fumar, fez-me beber, fez-me injetar doses lascisvas de você. Quis tanto que amasse-me, quis desde a primeira vez em que o vi, sem poder identificá-lo. Desde quando era, para mim, apenas um ser corpulento chamando atenção na madrugada escura. Quis que amasse-me na cama, enquanto estuprava-me a alma. Molestou-me o caráter. Gozou nos meus escrúpulos. Engravidou-me de ódio. Quando aprontei-me para parí-lo em sua cara, deu-me as costas, pois outra estava dando para você. Foda-a. Coma-a. Sugue-a. Como fez comigo. Lembra-se das três palavras? As que gritei enquanto você puxava-me gemidos: Vá se foder.

Dias de Chuva.

Talvez se fossem fluentes em francês, aquele momento tornasse-se mais poético do que triste. O céu derramava gotas frias de chuva. Os olhos dela derramavam gotas quentes de choro. Ele não sabia colocar em palavras, não sabia explicar porque seus dedos não entrelaçavam mais com os dela. Não sabia como dizer-lhe que já não preenchia mais seus sonhos, que suas noites haviam tornado-se perturbadoras e agitadas, que antes acordava cheio de amor, e agora acordava suado e exausto. Ela dispôs-se a escutar seu silêncio, uma explicação covarde. Não mais escutava, ao fundo, as notas de uma valsa, agora só escutava os trovões. O para sempre estava sendo prorrogado para mais tarde. Consolou-se lembrando dos vários sorrisos que já havia dado a ele. Agora dava fúria no formato de raios.
- Amamos menos na chuva.

- Eu faço o céu abrir.

- Deixa chover.

- Já não está chovendo aqui.

- Está chovendo em mim.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Paternidade.

Quando pequena, sentada no colo de seu pai, sentia-se protegida de todos os males, como se nenhum monstro ou bicho-papão pudesse alcançá-la. Crescida, sentada ao lado de seu pai, sentia-se suscetível a todos os males, como se um raio só caísse com a certeza de cair duas vezes em um mesmo lugar. Seu pai tinha ganhado alguns traços de velhice prematura, perdido um pouco do ar protetor. Agora, parecia sabido e experiente, mas incapaz de carregá-la para sua cama quando ela acordava atordoada com um pesadelo. Os pesadelos, com os anos, tornaram-se mais frequentes, especialmente quando acordada. Antes, sentada no colo de seu pai, encostando sua cabeça na dele, imaginava a vida como um belo sonho, calculado e perfeito. Depois de conhecê-la mais de perto, via o quão devastadora poderia ser. Sentada ao lado dele, reparando em suas marcas de expressão, via marcas da vida. Não eram tão fortes os rastros de sorrisos, não tanto quanto os de preocupação. Tivera tanto medo de seus monstros infantis, que esquecera dos monstros alheios. Todas as vezes em que acordara aos prantos no meio da madrugada, estavam marcadas no rosto de seu pai. Que agora, ali sentado, procurava descanso. Sugerindo que ela deveria procurar outro lugar para proteger-se.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Café e Cigarros / Explicação.

Em um dia nublado, dividiríamos o mesmo pedaço de teto para protegermo-nos da chuva. Trocaríamos um ou dois olhares, depois três ou quatro palvras. E então pediria por meu número. Eu agiria como se achasse estranho, fingiria hesitar um pouco, mas depois entregaria o cartão - que um dia virei a ter. Ele diria que ia ligar-me em breve. Eu fingiria que não ia ficar contando os segundos para isso. Despediria-me dizendo que a chuva tinha diminuído - até mesmo se tivesse aumentado -, e sairia, elegante, para cumprir meu trajeto. Grudaria-me ao telefone, fingindo estar esperando uma ligação do trabalho. E toda vez que ele tocasse, meu coração encontraria minha boca. Quando eu não reconhecesse o número, deixaria que tocasse três vezes, enquanto eu ensaiava minha voz mais esnobe e sensual. Eu atenderia e fingiria não saber de quem tratava-se. Pediria que aguardasse um minuto, pois estaria, imaginariamente, ocupada com alguma coisa. Depois retornaria ao telefone, falando com pressa, parecendo desinteressada. Ele iria propor que saíssemos para jantar, eu diria que para mim era melhor um café no fim da tarde. Eu desligaria no meio de sua última frase e partiria para o shopping, tendo acabado de notar que precisava de roupas novas. Estouraria meu cartão de crédito com apenas um vestido e um par de sapatos. Iria ao salão, tendo acabado de notar que meu esmalte estava desbotando. Faria as mãos, os pés, um novo penteado. Sairia de casa mais cedo. Ficaria sentada no carro até ver no relógio meus vinte minutos de atraso. Ele estaria esperando ansiosamente na porta do café. Extremamente tímido e arrumado. Cumprimentaria-o com um beijo rápido na bochecha, fingindo estar em uma ligação importante. Sentaría-mos na varanda, e faríamos, sem olhar no cardápio, o mesmo pedido. Tomaríamos um capuccino com leite desnatado e raspas de chocolate meio-amargo. Descobriríamos que fumávamos o mesmo cigarro, e quando os dele acabassem, eu cederia alguns dos meus. Demostraríamos interesse pelos mesmos livros e filmes. Reconheceríamos a música que tocaria ao fundo, comentaríamos ser uma daquelas impossíveis de viver sem. Nossos goles coincidiriam. Avisaria-o que estava com um pouco de leite no canto esquerdo da boca, ele não entenderia e eu teria que tomar o gigante passo de limpá-lo com a própria mão. Ele agradeceria meio sem graça. Eu comentaria de suas bochechas rosadas e logo meu celular tocaria. Eu atenderia a ligação, riria na altura certa, com toda graça e cuidado para não parecer escandalosa. Ele ficaria a encarar-me, eu fingiria não perceber. Desligaria a ligação e guardaria o celular na bolsa. Retornaria meus olhos aos dele que, com receio, diria-me que minha risada era a coisa mais bela já vista. Eu discordaria por educação e mudaria de assunto. Ele retomaria o assunto depois, quando eu risse de seu desconcerto. As horas passariam na velocidade da luz, a noite logo surgiria e despediríamos contra vontade. Eu iria para um lado, mesmo que meu carro estivesse para o outro. Ele assistiria-me indo embora. Eu não olharia para trás. Reencontraríamos todos os dias depois daquele no mesmo café. Encontraríamos novos assuntos, beberíamos o mesmo capuccino, dividiríamos os cigarros. Um dia ele decidiria parar. Eu decidiria parar junto. No dia seguinte desistiríamos e compraríamos um maço para os dois. Ele levaria-me para sua casa. Desta vez, dividiríamos o mesmo teto e o mesmo cobertor para protegermo-nos da chuva e de nós mesmos. De começo amaríamos com curiosidade e cuidado. Depois tornaría-mos ousados e agressivos. Ele convidaria-me para morar junto. Eu fingiria não saber a resposta para não parecer fácil e carente. Ele fingiria não ter todo o tempo do mundo para esperar-me, mas esperaria duas ou três semanas. Quando, com uma caneca daquele capuccino na mão, eu aparecesse em sua porta, avisando que ficaria ali até que nosso para sempre se esgostasse. Passaria um ano, o café ficaria para os fins de tarde de Domingo. Passariam dois anos, e na correria do cotidiano esqueceríamos como amávamo-nos. Discutiríamos, ameaçaríamos, até que a cafeteira exalasse o aroma de nosso romance. Eu então engalfinharia-me na pelugem de seu peito, ele enrolaria-me em seus braços. Cairíamos na cama, planejaríamos um futuro, desconversaríamos sobre filhos e casamento. Lembraríamos do café pronto, usaríamos a mesma caneca. Eu estaria vestida com sua camisa, ele estaria a observar-me com desejo. E então teríamos a sensação de estarmos sufocados, não pela monotonia de nossa vida, mas pela grandeza tão simplória de nosso amor.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Durma.

Sonhados.
Dormidos.
Sonhadores.
Domados.
Esperam sentados frente à porta.
Na linha de frente.
Peito aberto,
olhos fechados.
São fortes com suas sobrancelhas arqueadas.
Fracos quando intimidados.
Íntimos.
Dados.
Rolam
e desenrolam.
Sentados frente à linha.
Na porta da frente.
Alvos de um canhão,
de uma metralhadora.
Metáfora.
Meio de fora.
Metade.
Mete a dor.
Estão todos ali.
Destilado de lá.

domingo, 1 de novembro de 2009

Quinze Mil.

Nasceu meio sem querer, sem que quisessem. Criou-se meio sem ter como, sem ter quando. Sua vida fora, desde o começo, um arquivo aberto de obituários e acidentes. Vivia sempre acompanhada, e em especial, da solidão. Quando pequena, demorou a fazer de seus grunhidos alguma palavra. Quando um pouco mais crescida, as palavras que tinha feito, guardara para si. Via em cada dia que nascia, a oportunidade de morrer um pouco ao dormir. Gastou alguns de seus anos perguntando-se porque logo ela vivia em condições tão grotescas. Gastou outros imaginando se existia alguma outra pessoa no mundo vivendo da mesma forma. Não queria aceitar, estava só. Calada escondia-se na dispensa e chorava até adormecer. Com os anos, alguns foram embora, ainda alcançáveis no tempo. Com outros mais, os que foram, foram de vez. Sob olhares alheios disfarçava sua indignação com timidez. Não chegavam perto. Queria - sem querer - que chegassem. Já mais crescida, desaprendeu a chorar, não cabia mais na dispensa. Tinha ganhado corpo para aprender a defender-se. Usou-o mais para atacar. Batia portas, gritava. Não era violência, era falta de amor. Amor tinha sim, em segundo plano. Para que fosse amada, era preciso que fosse lembrada. Não era, a menos que fosse para ser exibida. Que cabelo sedoso, tão liso, tão claro. Que olhos meigos, tão míudos, tão expressivos. Um dia a vida mostrou uma possibilidade de mudança. Mudou, mudou, mudou. Para pior, como se fosse possível. Foi viver em outro lugar. Sem companhias, exceto a de sempre. Não havia dispensa, só a volta do choro. Não escondia mais. Chorava com raiva, como se cada lágrima fosse um tiro no coração. Acabou por descobrir, que chorar não adiantava, nem nunca adiantou. Inevitável, era chorar por dentro toda noite, por todas as madrugadas, enquanto fraca e cansada, desviava-se de uma garrafa, um prato, uma faca. Do lado de fora, parecia tão forte e inatingível. De fato era. Tinha tornado-se. Em algum momento de completo descaso, passou a achar justo descontar sua raiva na felicidade dos outros. Atraía. Encantava. Aproximava. Desaparecia. Achava divertido, quase engraçado. A dor que sentiam não era a mesma que ela conhecia, mas era alguma coisa. Quando foi enfrentada, desistiu parar. A dor tão dela, tão única, não era desculpa para dor nos outros. Outra vez a vida veio mostrar-lhe uma chance de mudança. Mudou, mudou, mudou. As palavras que tinha feito, resolveu colocar para fora. Colocou-as todas. Exatamente aqui.

Tudo Tem Começo.

Um dia acordaram. Maria com seu sorriso, João com seu pouco fôlego. Maria desfilou pelas avenidas. João passou arrastando-se logo depois. O perfume dela ainda estava no ar. Pequenino rastro. Perdido pelo cheiro de cerveja e tabaco, exalado pela existência dele. João viu-a de longe, criticou seu modo de andar. Pararam os dois no mesmo cruzamento. Sinal vermelho. Sinal de quem? Maria reparou em João encostado na lixeira. "Reciclável". Riu. João levou a risada como ofensa. "Descartável". Riu. Acordaram. João com o sorriso de Maria. Maria sorridente por João. Seca e escassez de água daí para frente.

Quarto Azul.

Faça um favor, feche essa janela, hoje o vento não entra. Faça um favor, encoste essa porta, hoje eu não saio. Está frio, mas meu corpo queima. Os raios de luz atravessam a cortina, mas ainda é escuro aqui. Faça um favor, feche seus olhos, hoje eu não me mostro. Hoje estou aqui. Ontem também. Mostrei. Ninguém viu.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Toda Noite Tem Seu Fim.

Todo dia acordava e ia alcançar, no fundo de seu pulmão, seu quase nulo fôlego. Aproveitava-o como se fosse o último. Não ficava contente até que a última molécula de gás carbônico saísse de seu corpo. E então descia até a cozinha, pesado e cabisbaixo, e saía a ignorar todos que estavam sentados à mesa. João tinha sua pouca paciência e seu muito mau-humor. Todo dia exibia-o pelas avenidas. Quando o mundo dava azar, João inspirava cortado, e saía a reclamar. Fazia luto, fazia céu encoberto. O arrastar de João era sinal de maus agouros. E João era ressaca. Desnecessárias eram as ofensas e palavras rudes, quando ele aparecia, apareciam compromissos no dia de cada um. João, diziam por aí, tinha sido o mais próximo do desagradável já visto. Olhando por detrás, assim, bem de longe, pode ser que dissessem que João valia ser notado. Parecia simpático, agradável. Mas a proximidade dava ênfase a seu humor insuportável. João era mesmo ressaca, Domingo monótono extendido em cima da cama. João era a soma de todos os amassados de um cobertor, inclusive - e principalmente - os sujos, e das marcas da noite anterior que deveriam ter. João era motivo para deprimir-se, ignorar, omitir-se. João era a mais pura forma de tristeza. E a mais limpa forma de alegrar-se era assistí-lo reclamar sem perder um palavrão da Língua Portuguesa. Ah! João era mesmo ressaca! Quando era achado pela vista, ficavam a revezar-se entregando copos d'água.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Todo Carnaval Tem Seu Fim.

Todo dia acordava e logo ia alcançar, no fundo do armário, seu melhor sorriso. Vestia-o com uma delicadeza cinematográfica. Não ficava contente até que encaixasse-o perfeitamente entre as maçãs do rosto. E então aparecia na sala, leve e saltitante, e saía a cumprimentar os retratos emoldurados na prateleira. Maria tinha seus poucos anos e seu muito corpo. Todo dia exibia-o pelas avenidas. Quando o mundo dava sorte, Maria encaixava o sorriso de primeira, e saía a cantarolar. Fazia festa, fazia sol. O caminhar de Maria era sinal de bons agouros. E Maria era carnaval. Desnecessários eram os confetes e as serpentinas, quando ela aparecia, estouravam fogos de artifício no céu de cada um. Maria, diziam por aí, tinha sido o mais próximo da perfeição já visto. Olhando por detrás, assim, bem de longe, pode ser que dissessem que Maria não valia um vintém sequer. Parecia miúda, compacta. Mas a proximidade dava ênfase a sua silhueta escandalosa. Maria era mesmo carnaval, feriado extendido na beira da praia. Maria era a soma das ondas de todos os mares, inclusive - e principalmente - os de morros, e das ondas que um lago deveria ter. Maria era motivo para embriagar-se, festejar, fantasiar-se. Maria era a mais pura forma de alegria. E a mais imunda forma de alegrar-se era assistí-la movimentar-se sem perder um milímetro de seu corpo. Ah! Maria era mesmo carnaval. Quando era perdida de vista, ficavam a arrastar-se implorando por um copo d'água.

domingo, 25 de outubro de 2009

Sábados.

Os dias parecem erros. As horas parecem erradas. Estávamos tão acostumadas com as tempestades, que moldamos nossos corpos aos esconderijos. Sonhávamos com a quietude, a brisa fresca e deitarmo-nos à sombra de um ipê. Sem aviso prévio, esse sonho tornou-se concreto. E como concreto mostrou-se frio e sujeito a infiltrações. A calmaria é monótona, repetitiva. Agora estamos aqui, sentadas debaixo da sombra, assistindo o vento bagunçar-nos os cabelos, entreolhando-nos. O quê é que queríamos, não era ver a vida passar? Então agora diga-me, por que estamos passando por ela?

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Quinta.

As mãos calejadas lembravam-no da juventude. Tomaram forma tão bruta pelas tantas vezes que tocou seu violino, pelos tantos corpos que acariciou. Seus dedos permaneceram fortes, mas seus movimentos tornaram-se trêmulos e lesados. O toque de veludo tornou-se incômodo e áspero. Não agradava aos próprios ouvidos ao dedilhar a 9ª Sinfonia. Perdia a companhia toda vez que tentava acariciar seu gato. Vivia só, mas esta condição só incomodava-o ao entardecer, quando seus olhos estavam cansados demais para folhear um livro, e seus ouvidos estavam doloridos demais para escutar o velho toca-discos. Gostava tanto dos agudos, dos graves, dos arranhões que separavam-nos. Gostava tanto de sentar-se frente à Cecília, rememorar alguma frase de Joyce. Tinha todo o tempo para degustar um café, devorar seus cigarros. Tinha tanto tempo para lembrar-se de sua vida. Mas o maior tempo que tinha era para arrepender-se. Viveu na velocidade da luz, desintegrando-se pelo espaço. Sua coleção de momentos era única, mas falhava ao ser revista. Acompanhado de seu gato, toda noite sentava-se à janela, reparava nas estrelas, outras vezes na ausência delas. Escolhia uma nuvem, e acompanhava-a com os olhos. Via-a desaparecer, como via a si mesmo. Tão branco e passageiro. Fazendo sombra, mas não fazendo falta a ninguém, a não ser a si.

Poesia.

A poesia verdadeira é aquela que:
leva-se uma prosa, leva-se para casa, leva-se para a cama
e lembra-se no dia seguinte.

Carne.

Sobre as flores.
Sobre o vento.
Sobrenaturais,
sobre amores.
Sob a mesa, o papel.
Sob a cabeça, uma forma de ignorar o céu.
Submerso e subentendido.
Na mão, o cigarro.
Na boca, a caneta.
Com a mão escreve sua sina.
Com a boca descreve uma cena.
Os lábios fantasiados de beijos,
redigidos em papel de seda.
Carne ferida
é carne fraca.
Carne trêmula é filme.
Carne por carne não vai ao cinema.
Ar-condicionado,
ar com condição.
A condição de ser sugado,
transformado e abandonado.
Feito a carne que em carne vira espírito.
Que vira alma.
Que vira mundo.
Que vira cabeça.
Que vira pó.
Carne com carne vira relação.
Relação vira fórmula.
E as fórmulas viram forma de calcular.
As formas e as fórmulas,
de carne com carne algo mais tornar.
Entorna o copo.
Entorna o corpo.
E em tornar-se tanto,
carne com carne torna-se desejo.
Anseio.
Ânsia.
De vômito?
De conceber.
Realiza-se um carne com carne quântico.
Cujo resultado concedido,
outorgado,
é nulo e sempre perdido.

Planeste?

O fogo acabou.
O fluído também.
O isqueiro da vida, cadê?
Acende com um fósforo.
Não, não.
Estão todos sem cabeça.
Sem cérebro.
Aquece com as mãos.
Não, não.
Estão todas guardadas nos bolsos.
Com frio, com fome, com sede.
Inflamáveis, cadê?
Inflamados, eu sei.
Inchados, apagados.
Acende esse cigarro aqui.
Com fogo, com força.
Chama, cadê?
Passaram na frente,
não chamaram você.
Vá para o começo
do fim da fila.
Que fala,
escuta.
Vai e volta.
Sem fim.
Sem fundo.
Sem fogo.
Apaga esse cigarro.
Com um escarro.
Não, não.
Apaga no meu braço.
Passa o fogo.
Passatempo.
Espaçonaverdade.
Mentira!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Agradecida.

Hoje eu não escrevo, eu imploro. Isso de colocar no papel, faz colocar-me no fogo. As palavras nunca foram minhas, tomei-as de bocas alheias. Os sentimentos nunca pertenceram-me, arranquei de outros corações. Não redijo minha história, reinvento-a junto a tantas outras. Faço-a mais deglutível. Dou-lhe um pouco de mistério. Viro ficção, utopia. Hoje eu imploro que essa minha escrita, coloque fogo nas palavras dos outros.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Canhões.

Firme, cantava antigos amores, alguns de seus idílios. Não vacilava no tom, nem na postura. Era uma trovadora dos tempos modernos. Com palavras e sentimentos preexistentes, mas nunca ultrapassados. Com solicitude mutava o ritmo para diferenciar cada um dos cantos. Cantava ali, no meio da praça, desvergonhada, quase orgulhosa. Poderiam apontar canhões para o ângulo exato de seu peito, não importaria-se. Entreluzia naquele pedaço cinzento de mundo. Era seu canto de paz.

Bom Senhor.

O dia já amanheceu escuro, nublado, nebuloso, preparando-se para um choro. O sol recusou-se a aparecer. Sequer quis deixar-se subentendido. Escondeu-se. Venal como era, negociou um dia de descanso. O céu estava de luto quando ele acordou. Esperançoso, checou o relógio. Não, não tinha acordado em plena madrugada por engano de seu organismo já tão falho. Tinha acordado na mesma hora de sempre. A hora de encarar-se no espelho e negar que aquela era mesmo sua imagem, e não um pesadelo. Naquele dia, resolveu assumir-se. Era sim aquele borrão de linhas tortas, aquelas camadas de pele amotoadas no mesmo rosto. Não era motivo de vergonha, pelo contrário, muito tinha dado e sido roubado para que seu rosto tomasse aquela forma abstrata da velhice. Vivia só, mas vivia bem, bem melhor do que aqueles em coma, aqueles derramados, estagnados em suas camas. Tinha a saúde de um rapaz...um rapaz tuberculoso, paraplégico, aidético. Mas era feliz, feliz como a cesta de frutas em cima da mesa. Todas murchas e mofadas. Tinha a certeza de que o sono da noite anterior poderia ter sido extremamente conturbado. Não foi. Graças a Deus e aos corajosos estudantes de Farmácia. Algo em seu coração pontilhado dizia-lhe que era a hora. Era a hora de aumentar a dosagem de seus calmantes, antibióticos, antialérgicos, anti-vidas, pois algo ruim estava a caminho. Era véspera de algum desastre. Previa o apocalipse. Não queria estar lá para ver, e mesmo se quisesse, as cataratas de seus olhos impediriam-no. Na véspera do começo - de sabe-se lá o que -, terminou-o. Na véspera de sua morte, matou-se.

http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

Escreva-me uma carta que descreva esse teu corpo fraco. Soma de pele e osso. Nojo. Aproximaste-o tanto do meu que senti-me infectada. Infeccionada. Suas formas pontiagudas feriram-me, sangraram. És, de longe, um vulto mórbido. Parecido ter escapado do túmulo. Apavora-me. Dá-me a vontade de chorar. Um choro lento e doído, interrompido por engasgos. Quando chegas perto e começas a falar, sinto na brisa, um pouco de seu ar. Intragável. Viciei-me em tantas coisas vis. Encantei-me com tão pouco. Agora vejo-te aí. Indigestão humana.

Do blog: http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

Vapor.

Sentiu-se queimar no mormaço de Setembro. Sentiu-se queimar no mormaço de Outubro. Sentirá-se queimar no mormaço de Novembro. Quis a chuva, e a chuva veio. Forte, ininterrupta. A chuva partiu. E ela ficou a rememorar as águas de Janeiros, Fevereiros, Marços e bossas novas. Ficou a cantar, junto as cigarras. Preparada para morrer e matar-se. Cada dia era uma folha nova em seu caderno. E uma folha a menos no calendário. Como doía sentir-se tão êfemera, ser tão passageira. Mordia seus lábios rachados, contorcia seu tronco pequeno. Era respingos de uma tempestade, evaporando...

Raivoso.

Pare de reclamar da tristeza. Pois sei que, durante a madrugada, é por ela que esperas de pernas abertas. Queres que ela cubra-te. Sugue-te. Preencha-te. Invada-te. Penetre todos os seus espaços. Queres que ela percorra cada um de seus traços, e neles esconda-se. Deseja-a do seu lado. E sei que, na minha ausência, deseja-a como um cobertor de veludo no frio. Queres que ela aqueça-te, mas sabe que só irá congelar-te. Petrificar-te. Ela ocupará a cama. Repousará sob o travesseiro. Olhará em seus olhos. Há de dizer-te que és morta. Há de matar-te ainda mais. Há de sufocar-te. Apertará sua garganta. Espancará todo seu corpo. Até que no último suspiro, faça-te confessar: Preferia suas pernas abertas esperando por mim.

(Desen)conto.

Suas mãos eram grandes, mas não o bastante para colocá-la para dormir. Eram boas no afago, desejando um sono tranquilo. Tinham por trás um par de braços mixos, acostumados a rebocá-la. Ela vivia a arrastar-se por aí, inquieta. Em sua cabeça, era um pirata em busca de seu tesouro. Mas ainda estava atrás do mapa que havia perdido. Sua loucura não era assimilada por outros, mas ele entendia. Quando contava as histórias de sua vida - desta vida, pois alegava já ter tido muitas outras -, contava com seriedade e convicção. Tinha caído lá do céu, e aí de quem duvidasse. Tinha cicatrizes da queda, exibia-as com fervor, e foi nesse caminho, o caminho entre a nave e o chão, que deixou seu mapa escapar. Tinha sido enviada somente para encontrar o que estava dentro do baú escondido. E foi em meio a busca, que conheceu-o. De primeiro recebeu dele algumas palavras ásperas, depois risadas, seguidas de um sorriso. Aquele sorriso, revelador de uma compreensão insana. Ele também estava em busca, mas de um tesouro diferente. Ele poderia até não ter caído do céu, mas caiu feito uma luva, perfeita no encaixe das mãos dela. Acompanhava-a. Quando cansava-se, vigiava-a de longe. Mantinha-a sob seu olhar cuidadoso. Preocupava-se com a ignorância alheia, e quanto esta ameaçava um ataque, punha-se ao lado dela, de punhos fechados. Se ela soubesse das histórias bíblicas além das que obrigavam-na a escutar pelas ruas da cidade, acreditaria que ele também tinha caído do céu. De um outro. E que sua pele, lisa e macia, havia sido poupada pelas asas que teriam sido abertas em suas costas. Desconhecia tanto de tudo, que reinventava a si e ao mundo todo dia. O que parecia-lhe normal. Um dia foi dormir com as mãos dele desembaraçando seus cabelos, mas ele dormiu primeiro. Resolveu assistir televisão. Passava um filme de castelos, bestas e princesas. Dormiu com aquilo na cabeça. No dia seguinte, acordou achando que seu tesouro tinha tomado forma no corpo de um homem. Seu príncipe. Saiu em busca dele. Ignorando o anjo sem asas deitado ao seu lado. Cansado demais para conseguir acordar.

Futuro.

A curvatura de seu corpo prendeu-lhe a atenção. Era um mar de morros circundando um oceano gélido. Olhou-a tão profundamente, precisando penetrá-la naquele exato momento. O que para ela deveria ter sido um lisongeio, tornou-se incômodo. Sentiu-se visualmente abusada, e secretamente envolvida. O olhar que lhe era direcionado não cabia ao lugar, nem ao momento, mas caberia em um quadro que eventualmente, ela viria a pintar. Tentaria retratar aquelas íris nebulosas com seus traços descuidados. Não limitaria-as pelas pálpebras cansadas. Deixaria-as livres para seguirem até onde tinham fixado-se. Seus interesses confundiam-se no tráfego de olhares e olhadas. Talvez teriam ficado mais claros em algum outro planeta. Aquilo que estavam vendo, era tudo aquilo impossível de enxergar.

domingo, 18 de outubro de 2009

Chá da Tarde.

Meça o espaço que separa nossos corpos. Deixe-me diminuí-lo na proporção exata. Existe um lado frio em meu travesseiro, um lado a ser amaciado. Já foi repouso para algumas cabeças, que esfriaram e endureceram-no ainda mais. Corpos já estiveram tão próximos, mas ainda existe uma medida menor, e até negativa. Um corpo pode entrar no outro, e nele mesmo repousar.

Epiderme.

É preciso que doa.
É preciso deixar-se doer.
É preciso buscar a cura,
e quando encontrá-la,
deixá-la de lado.
É preciso ver a ferida,
e deixá-la fechar,
até tornar-se uma cicatriz.
Para ser exibida,
para ser exigente,
para usar como desculpa,
para saber desculpar.
A culpa não é de quem fere,
é de quem deixou-se cortar.
As facas afiadas,
tais como as palavras.
Furam as dermes,
até que um osso,
ou o esgotamento,
façam-nas parar.
É preciso mostrar-se.
Todos e cada um de seus pedaços,
especialmente os que foram levados.
Arrancados.
Triturados.
É preciso que doa.
Nunca nos outros.

Livrai-se.

Livrou-se de todo o mal. Sozinho. Pelas próprias mãos. Soltando-as de outras. Ela sabia a forma certa de acalmar uma tempestade, mas guardava segredo. Seus beijos eram alucinógenos. Levavam-no às alturas. Depois deixavam-no fraco, conturbado. Os efeitos colaterais de consumí-la eram devastadores. Estava sempre a perder um pouco. Tinha diminuído de tamanho, tornado-se miúdo e frágil. Não tinha mais pulso, nem força para levantar sua voz. Não mais impunha suas vontades, trocou-as pelas dela. De olhos vendados, ia em direção ao caminho errado. Quando cansou-se de seguir saltitante, foi puxado pela mão. Quis alguns minutos para descansar da rotina desritmada. Tempo que foi-lhe negado. Bateu pé. Questionou. Até ser arrastado. Soltou daquela mão que outrora apalpava-lhe a cabeça, e que começava a batê-la na parede. O tempo que tinha - e queria - agora, era o mínimo necessário para salvar seu coração.

Chuva.

Por entre os prédios apontava um sol forte. Pelas vias e vielas passavam ondas de calor. Reclamava. Queria o vento fresco precedente da chuva, e ver molhar todo seu cabelo. Por bondade, o céu obedecia. Deixava a chuva cair, serena. E ela aproveitava as primeiras gotas que contornavam seu corpo. Mas logo cansava-se. Queria que a chuva ficasse só na ameaça do céu nublado. O céu, novamente, atendia. Ficavam, nas ruas, as poças. Igualmente imundas e purificadas. Incomodavam-na pela lembrança do que tinham sido. Não eram apenas rastro de chuva, eram resposta de mais um de seus pedidos, todos realizados. Sempre queria mais. Queria menos. Para não admitir que, na verdade, não sabia se queria alguma coisa...

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Madrugada.

Do lado de fora as cigarras cantam. Do lado de dentro, os cigarros contam, contam os minutos até virarem nada mais que pó. E quando pó viram, ele sente-se só. Fecha as janelas para manter a fumaça, como se fossem sinal de alguma aparição santa ou mágica. Mas a magia só aparece em seus sonhos, que logo viram pesadelos. Que fazem-no virar-se e desvirar-se na cama. E então ele acorda. E então ele repara, que quanto mais as cigarras cantam, mais desencanta-se. O cigarro vira pó. A fumaça escapa por debaixo da porta. E as cigarras perdem a magia, pois morrem de tanto cantar.

W3

Três W em uma.
Dois de copas.
Os dois de costas.
Para um W em três.
Rainhas e reis,
em seus castelos imaginários.
Três de copas.
E os dois de costas.
em um W só para os dois.

Pólos.

Brasília amarela das mamonas,
assassinada pela Brasília branca do concreto.
Protegida por céu, não por teto.
Brasília racista,
narcisista.
Refletindo seu branco nas nuvens,
exibindo-se por todo lugar.
Brasília que chove e chora.
Osmares desenharam-na,
para ser adorada, evocada.
Cidade dos cubos e cheques.
Geométrica.
(Des)medida.
Idealizada.
Tsunami de carros.
Extinção de bairros.
Enquadrada.
Aprisionou poetas vários.
Claras e Alices presas ao ar-livre.
Trancafiadas.
Eixos sem coordenadas.
Brasília: ligação do céu e da terra.
Submersa em si.
Brasília: soma do céu e da terra.
O inferno é aqui.
E não era para lá que todos íamos de qualquer forma?

Bras-Ilha

Calo ou falo?
"Cadê o lago?"
Para o lado de lá.
Para nós há,
um lago parado no ar.
Paranoá.
Para nos há.
Houve?
Não, não escuta isso não.
Ouve o que dizem por lá.
Não é lago, é poça.
Poça feita por homem,
para homem,
para nos afogar.
Baixa humildade,
aguça a secura que há.
No ar e no lago,
que ainda hei de observar.
Verei o fundo do fundo.
Afogada no meio do mundo.
Subdesenvolvido.
Verei o fundo do (parano)mar.
Aqui no meio do mundo.
Verei do meu submarino.
O sub-marinho,
subdesenvolvido,
mundo-mar que aqui há.

Libido.

Parou de correr, quis respirar. Com calma e cuidado. Os anos longe do oxigênio aumentavam as chances de engasgar-se. Flutuou por tanto tempo no universo, fazendo visitas aos mundos dos outros. Quando voltou para o seu, esperando sentir-se em casa, sentiu-se atordoado. Tinha deixado a barba crescer, o cabelo tinha tomado um tom chuvoso e os olhos estavam abastecidos. Sua voz grave acentuava a aspereza das palavras que dizia, e que ela fingia não escutar. Ele tinha voltado, como ela tinha previsto. Por mais que negasse, era dependente. Dependia da forma como ela ignorava sua brutalidade, fazendo-a parecer apenas uma mania ruim. Dependia, também, da sutilidade com a qual ela fazia seus braços furiosos tomarem a forma certa de um abraço. Quando ela cansava-se de sua voz, pedia por mais, discutiam, elevando suas vozes ao infinito. Vez em quando atiravam coisas um no outro. Palavras, pratos, promessas esquecidas. Atiçavam rancores. O rosto pálido que ela vestia tomava cor própria. O tronco dele inchava-se. Trocavam juras de ódio debaixo de um céu que não viam. Ele chegava perto, ameaçando atirá-la da janela. Ela enfrentava, prometendo levá-lo junto para um passeio no inferno. Seus olhos raivosos esbarravam-se, apontando para outras partes. Ele, então, ameaçava jogá-la na cama, para cobrí-la de pancadas. Mas era ela quem jogava-o, em uma tentativa de atiçar sua raiva. Deixava-o lá. Atiçado de outra forma. Batia a porta e saía. Hesitava, mas ele corria atrás. Puxava-a pelo braço. Atirava-a no chão. Violento, cobria-a de amor.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Oração.

Menina, venha cá.
Fale-me desse seu peso.
Aliás, não venha não.
O que falarias já sei de cor.
É fardo?
Não, é foda.
Sei que medes as palavras.
Mas palavras não tem sentido,
nem muito menos centímetros.
Imensuráveis são.
São aves e Marias,
sem caber em oração.
Deite no colo que ofertam-lhe.
Acomode-se.
Incomododada.
Está vendo a luz no fim do túnel?
Pois eu não vi não...
Menina, vá para longe.
São pais, mas não nossos,
esses apertos no coração...

Domingão.

Eixão fechado junto ao céu. Poucos carros invadindo as ruas e o silêncio. Chuva ameaçando cair. As fichas também. Vultos de presença nas ausências de calçadas. A menina que um dia conheci segue calada, reparando no que um dia foi seu tudo e que agora era um nada. A menina que conheço segue falante, dialogando com a do passado. Um monólogo de duas em uma só. A que é e a que foi - e já era? As nuvens em uma escala cinza de ser. A menina sendo o que é, o que já foi e o que quis tanto esquecer. Uma versão sorridente da tristeza. Era Domingo de calma, de alma e Domingo em seu coração.

http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

Meu perfume sempre foi fraco, o suficiente para, em raros momentos, tais como este e os que precederam-no, ser notado. Quantas vezes vistes-me abrindo e fechando aquela e outras portas? Quase que infinitas vezes. Pois da última vez que saí deixei-a entreaberta, para que a maior circulação de ar - e de sangue - acordassem-te. E acordaram, mas não a tempo para que você percebesse a hora em que fui embora. E, ainda sonolenta, percebesse a hora em que voltei. Cadê eu? Pare de encarar a porta. Estou ao seu lado. Bom dia...

Texto do blog: http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

domingo, 11 de outubro de 2009

A Três Eixos de Distância.

Ele foi definitivamente o amor de todas as minhas vidas. Mas isso não impede que nesta, seja você.

(Só o gostinho...)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O Que Há?

Seu humor oscilava entre névoa seca e gargalhadas. Era difícil adivinhar o que seus olhos diziam, pois estavam quase sempre calados. Às vezes, alguma coisa acontecia dentro dela, e ela procurava abrigo em si mesma. Tantas outras, alguma coisa acontecia do lado de fora, e ela procurava o mesmo abrigo. Perto do impossível era tentar desvendar o que passava-se por trás daquele sorriso meio de lado. Perto do inevitável era querer ver os dois lados de seus lábios sorrindo.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Moça.

Olha, moço!
Olha o reflexo da moça no céu.
Olha o reflexo do céu e da moça.
Olha o reflexo da moça na poça.
Olha o céu na poça!
Olha o poça que veio do céu.
Olha o céu da moça.
Olha como ela usa ele como um véu!
Protegendo seu cabelo do vento,
e das poças outras que caem do céu.
Olha a moça caindo na poça.
Olha a moça caindo do céu.
Que poça profunda a dessa moça.
Um aglomerado de gotas.
Dê um palpite, moço.
As gotas caíram do céu ou da moça?

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Primeira Fileira.

As olheiras escondiam um pouco de seus olhos cor-de-nada. Eram reflexo de noites mal-dormidas e de sonhos nublados. Falava sobre solidão com uma velha amiga. Falava-lhe de como tudo na vida era efêmero, menos sentir-se só. Rememorava outras amizades, algumas mais antigas ainda, mas que não tinham durado os invernos de sua alma. Enrolando-se em palavras, desenrolava sentimentos presos na garganta. Sentimentos e sensações. Tudo estava em sentir. Sentir o quê? A brisa fresca de mais uma partida? Uma ausência latejando em seu peito? Era descrente de tudo. Deixaram-na assim. Desconfiando do destino e de tudo que parecesse simples e leve. Tinha o peso de uma pluma, mas não queria deixar-se levar pelo vento. Quando dormia aconchegada à felicidade, deixava um de seus olhos abertos para ver até onde ela iria. Era calada ao ponto de falar demais. Fechada ao ponto de ser transparente. Transpareciam, em seus olhos tímidos, todas as suas necessidades. Precisava de mais um copo, um trago, um beijo. Precisava de um Deus e algo no qual acreditar. Precisava que parassem de acenar "adeus". Queria as palavras. As palavras que amava. As palavras de amor. Não importava em sentir-se só, contanto que fosse acompanhada. Precisava sentir o calor, sem antecipar sua partida.

domingo, 4 de outubro de 2009

Que Dó.

Ele andava por aí carregado de esperança. Entretia-se planejando futuros. Ao dormir, sonhava com o amanhã, e o amanhã depois do amanhã, e os amanhãs depois desses. Era compromissado com o presente, mas deixava-o para trás quando virava passado. Era uma pessoa de café com leite e duas colheres exatas de açúcar refinado. Não corria riscos, corria deles. Seu paladar era limitado à simplicidade. Sua audição era voltada aos clássicos. Gostava do cheiro das damas-da-noite e sua cor favorita era o bege. Desacreditava na espontaneidade, mas um dia seus batimentos por minutos foram, pelo menos, o triplo dos sessenta e oito de sempre. Ela tinha os olhos dourados e arregalados. Seu longo cabelo era feito um punhado de fios de ouro arrancados de um baú de tesouros encontrado no fundo do mar. Ela era imprevisível em sua existência, como uma chuva em dia de céu aberto. Dava para ver que a felicidade dela vinha de tudo que não pudesse prendê-la. E era justamente isso que ele quis. Guardá-la entre páginas de um romance, marcando alguma parte bonita ou importante. Guardá-la como se ele fosse seu anjo. Deu a ela felicidade quando mostrou o ser tão excêntrico que era. Cheio das manias e vazio de novidades. Ela ria da forma como de tanto lutar pelo certo, ele tornava-se desconcertado. Quando percebeu que a intenção dele não era apenas divertí-la, ela escondeu-se. Ele tentou enxergá-la entre as taças que ela atirava em direção dele, entre os cacos e as cinzas caídas no chão, mas não reconhecia a forma que ela havia tornado. Enviava-lhe bouquets e recados. Recados e beijos. Beijos e sorrisos. Sorrisos esgotados. De tanto apertar, ela-passarinho escapou-lhe pelos dedos. Ele escapou para à tristeza. Um dia viu-a sorrindo em uma foto. Posando abraçada por braços novos. Sorriu de volta para ela. A felicidade que tinha naquele momento, era a de vê-la feliz.

sábado, 3 de outubro de 2009

Aprendizado Pleno.

Acordar às seis para ir dormir às dez. Dos noticiários à doce vida na tela da televisão de primeira geração. Acordando ao som de balas peridas e - sequestros - relâmpago, sendo colocado para dormir com a música-tema de uma romance televisivo. Enfrentando o cotidiano e a maratona de Domingo de algum seriado americano.
Na Sexta-feira de uma semana como as outras, que diferenciava-se apenas pela programação especial de verão, a chuva caiu e a luz faltou. O céu desabou, meus planos também. Quis poder assistir qualquer filme na televisão, com qualquer rosto famoso, qualquer pingo de emoção. O aparelho não ligava por vontade, prece, nem promessa. Assisti, então, ao reflexo de meu rosto desconhecido tornar-se protagonista da tela preta.
A chuva acabou, sem luz e sem dinheiro, desci para tomar uma cerveja na esquina das prostitutas e da solidão. No caminho para o bar, parei para reparar nas crianças que não sabiam o que fazer com a bola que tinham encontrado, não sabiam como funcionava o jogo, só sabiam do que viam na televisão. Quis parar para ensiná-las, mas a pouca memória não conseguiu resgatas o que aprendi na infância.
Cheguei ao bar, pagaria fiado, mas não valia endividar-me por uma cerveja gelada que já havia esquentado. Caminhei pelo centro, sentindo-me meio de lado. As cores das vitrines confundiam-se com o céu nublado. Céu que não cheguei a ver, não sei se pela presença de muitas nuvens, ou pela ausência de uma TV.
(Redação da escola, é.)

Precipício do Precipitado.

Solução de salmoura para os pedaços de pele arrancados de seu corpo. Soluços de lágrimas para os pedaços arrancados de si. Solução e soluços, ambos com o mesmo gosto, água com sal. Precipício do precipitado. Ardor com gosto de mar. Soluços escorriam de sua boca, carne nunca tão viva. Excretava oceanos de seu corpo, pelos poros, pelos olhos. De joelhos e almas ralados, curava-se. Ardia, queimava. Forte por ser tão fraco. Vulnerável e vulgar, escorregou nas curvas da vida. Segura o homem! Só não segura seu choro. O ardor que queima é o mesmo que cura. Só nunca foi visto alguém curar-se de amor. Pois não é doença, é loucura.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Bom Começo.

Sua cabeça estava sempre mais alta que seu coração. Comportava-se como um lorde. Mantinha-se distante e intocável. Ria da tristeza alheia, incapaz de chorar pela sua. Tinha o corpo de um rapaz, a alma de um defunto. Não doava-se, mas vendia-se a preços altos.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Protagonista da Nostalgia.

Ele amava a forma como as pernas dela enchiam-se de felicidade ao som de seu violão. Seus movimentos eram atrapalhados, mas ele via graça em cada um deles. Sentia-se triste quando seus movimentos desaceleravam por alguma desgraça. Mas não esquecia-se de amar sua alma triste e ferida. Acariciava todas as suas cicatrizes e buracos abertos, eram a forma que ela tinha encontrado para crescer por dentro. Amava suas falhas, seu caráter às vezes disperso. Amansava os demônios que escapavam de sua boca e voavam até seus ouvidos. Era doloroso o tamanho de seu amor. Era doloroso seu amor em si. Era plácido em suas tormentas, tão devastadoras e frequentes. Ele amava a forma como ela sorria, e como ela não conseguia conter o choro.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Mayday.

Amiga, você abandonou-me,
sequer despediu-se.
Sinto-me feito lixo.
Não posso ser reciclada,
nem quero,
nunca quis.
Não quero desintegrar-me a fim de virar outra forma de mim...
para ser reutilizada.
Amiga, leia estas palavras como se lesse a palma de minhas mãos.
Eis o meu futuro,
a partida.
Que diferente de um parto, será sem dor.
E o único vermelho será de meus olhos chorosos.
Sentirei sua falta.
Mas a falta é a lembrança de uma presença.
Por isso não me trará mágoas.
Guardarei você confortavelmente entre pedaços de mim.

Canela.

O corpo humano libera uma luz própria, e hoje a minha é a mais forte. Meu corpo se contrai soltando fogos de artíficio, iluminando o céu da minha boca, e o pedaço de céu refletido em meus olhos. Vivia na certeza de que ser era estar escondida. Descobriram meu esconderijo, meu canto escuro encheu-se de sol. Meu canto só tornou-se dueto. Deixei saudades em alguns. Mas não sinto saudades de mim...

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Setembro.

Carrego a vontade de perder-me eternamente no deserto de seus lábios, solo quente e rachado. Quando passeio por eles, deparo-me com uma miragem, é a idéia de tê-la assim, um território a ser descoberto, de querê-la assim, cada vez mais perto. Seus olhos formam um sol, que esquenta meu corpo sempre tão frio. E de noite, viram um farol, protegendo-me da escuridão que surge. Seu peito é um lago, e disseram-me que outrora foi tão vazio. Animo-me com a possibilidade de não terem sido as chuvas ocasionais de Setembro. Inundei-me em você, ou inundei-me contigo?

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Salve!

Amor secreto. Desejo reprimido. Troca de olhares. Famintos e solitários. Um par à parte numa selva escura. Suscetíveis à plantas carnívoras e aos caprichos da carne. Ambos querendo sem querer, querendo sem parar. Nús e crus. Brincadeira com um fundo de verdade. Prontos para encaixarem, e para desse encaixe tornarem-se 3ª pessoa em uma só.

domingo, 27 de setembro de 2009

Primavera.

Dúzias de flores, formando centenas, todas dando bom dia ao sol. Sorriso estampado no rosto, ininterrupto. Bochechas firmes e doloridas, mas felizes. Ocasionais taquicardias. Batimentos supersônicos e prazerosos. Coração sadio. Borboletário no estômago. Frio calado escalando a espinha. Eram os primeiros dias de Primavera...

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Tempos Frágeis.

Seus rostos parecem um sonho distante, lembrança de uma vida anterior. As conversas, antes intermináveis, agora terminam sem ao menos começar. Os capítulos se perderam em alguma parte da história, mudaram de ordem ou lugar. Reconheço-os ainda. Pelas cicatrizes, pelas marcas de nascença em nós. Tão novos e machucados. Mutáveis e mudados. Somos retrato sem porta, guardados nos arquivos mortos, e irressuscitáveis, do passado. Éramos feito carne e osso. Agora somos uma fratura exposta roçando no asfalto quente. Ilha de calor, embora coberta de neve. Mudei ou mudaram de mim?

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Reverso?

Em plena madrugada, a imagem de dois corpos unidos clareava o céu de uma Brasília sombria. Era a imagem de uma solidão acompanhada. Um romance de letras caprichadas, com uma fotografia de ipês amarelos. Eles cabiam tão bem um ao outro, de uma forma que nem o Zodíaco poderia mudar. Tinham descoberto um ao outro, e um no outro uma forma de abrir os olhos sem querê-los fechados. Viam o futuro através das bolas de árvores de Natal. Era ora verde, ora vermelho, nunca sem cor, nunca transparente. O futuro era o reflexo de seus rostos unidos. Naqueles momentos e nos minutos depois deles. Aquela madrugada era de nuvens e perguntas envergonhadas.
- Promete me amar para sempre?
- Prometo te amar hoje como se fosse para sempre.
- E não é?
- Nunca conheci o para sempre.
- Conheceu-me.
- Até que ponto?
- A partir de um para sempre ao reverso. Um começo no fim. E um fim sem começo.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Cabeça.

Perguntava-se o que era mais pesado do que carregar a si mesma. Descobriu quando uma cabeça encostou-se em seu ombro. As lágrimas que escorriam de seus olhos triplicavam o peso, que seria tão mais fácil de suportar se tratasse-se de uma cabeça e só. Não eram lágrimas a serem secadas por um lenço, ou dispersas pelo vento. Precisavam trilhar todos os caminhos possíveis naquela face, até que caíssem todas no chão. Ela suportava o peso daquela cabeça junto ao peso do resto do corpo e de sua própria consciência. Não tinha como fugir, nem queria. Sentia-se bem por sentir-se em alguém. Não tinha culpa, mas era a desculpa para aquele choro, pesado, ainda que delicado. A cabeça que tinha encontrado seu ombro, era a mesma que, em um passado remoto, tinha feito-lhe perder a própria. Agora estavam as duas tão próximas, porém tão distantes, não pelos milímetros entre elas, mas por estarem ali, e ao mesmo tempo, em tantos outros lugares.

domingo, 20 de setembro de 2009

A Partilha.

O perturbador barulho de sirenes era abafado pela chuva que, somada ao calor, confundia-nos quanto ao suor de nossos corpos. Corpos que, incansáveis, atropelavam um ao outro, lutando pelo mesmo espaço, físico e além. Não lutávamos por desejo de ocuparmos juntos o mesmo lugar, mas por não deixarmos que o outro ocupasse sozinho. Competíamos pelo direito de estar. Esquecíamos de ser e do que era. Famintos, devorávamos todo pedaço de nós que víamos pela frente. Era canibalismo unido a uma matança de saudade. Nossas digitais podiam ser encontradas por todos os cantos. E, especialmente, juntas na mesma arma. Um par de vítimas, assassinas e assassinadas. Matando pelo trauma de já terem sido mortas. Esgotamos qualquer possibilidade de dor que viesse com prazer. Depois de tanto abrirmos caminhos e pernas, abrimos mão. Não tendo mais porquê morrer e o quê matar, saímos, um para cada lado, atrás de vida. Com a promessa de que, a cada vez, que encontrássemos, voltássemos, para que juntos pudéssemos partilhá-la. Voltamos uma vez só, para a partilha dos bens e da felicidade.

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Diga-me, tem a certeza de ter usado as palavras certas? Se alguma coisa foi levada de você, foi um furto, nunca um roubo. Para haver um roubo seria necessário um contato entre o criminoso e a vítima. Meus olhos nunca encostaram nos teus. Talvez as mãos, com certeza os lábios. Mas tudo que roubei com eles, foram alguns beijos e seu gosto amargo. Nessa ida e vinda de encontros e reencontros, desencontramo-nos, e era justamente isso que tu deverias ter anexado. Pouco importando-me com a complexidade, peço, através desta, que localize o espaço que nossos corpos ocupam no universo. Devido ao crime do qual me acusas, sinto que nenhuma punição seria mais justa do que exilar-me em outra galáxia.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

(M)eu Herói.

A saudade sujou sua folha em branco. A caneta da tinta tomava a cor de sangue. Era um homem de pouca cara, mas muita coragem. Sua existência poderia ter tomado parte de alguns capítulos de um livro de História. Tinha o necessário para a conquista de muitos impérios, com seu escudo de homem forte e sua língua muito bem afiada. Vivendo em uma época em que ser era sinônimo de contatos e influência, pouco pôde conquistar além de moças dignas de capas de revistas e boas substitutas para as arcaícas ampulhetas. Levava delas poucas lembranças, como o telefone ou alguma peça de suas roupas íntimas. Nada levavam dele, mas cortês como era, deixava para elas, um rastro de seu perfume e o gosto de "quero mais". Escondia, por debaixo do cavanhaque, a cicatriz de uma de suas batalhas. Teria tido a capacidade de desafiar um leão e sair carregando-o no colo junto a alguns arranhões, mas ao invés disso, seu desafio tinha sido sua própria realidade, mais carniceira e selvagem do que qualquer leão. A origem de sua existência deu-se de forma nada heróica, feito um acidente de carro, em que o motorista poderia ter sido poupado, se o air-bag não tivesse estourado na hora exata do impacto. Seu sorriso bem-resolvido disfarçava outras cicatrizes, uma mais profunda que a outra. A maioria delas, resultado das lutas contra o ambiente hostil em que foi obrigado a criar-se sozinho. Umas ou outras, as mais frescas e profundas, feitas pelas mãos do inimigo que um dia chamou de "amor". Não era tão bela a ponto de comparar-se a suas outras conquistas, mas teve a capacidade que estas não tiveram, ao partir, levou consigo pedaços de pele e músculo. Mais específicamente, dois terços do coração que havia restado. Deixou nada mais que quelóides, amargura e uma descrença cruel, mas que fazia sentido.

Inconstância.

Sentia-se fraca, sem sono ou apetite. Em busca do mínimo de qualquer coisa. Parecia um vagalume, com suas incessáveis tentativas de encontrar a luz e poder invadí-la, debatia-se frente a um poste. As chances nunca haviam passado-lhe despercebidas, mas seu corpo, leve por fora, pesado por dentro, havia tornado impossível qualquer tentativa de agarrar-se a elas. Agarrava-se, então, a uma música triste e aos pingos de melancolia que caíam ao invés da chuva. O calor da cidade acentuava a frieza das paredes brancas de seu quarto, que pareciam diminuir de acordo com o tempo. Sentia-se presa ao ponto de sentir-se sufocada. A pequena janela que dava para a rua, na cabeça dela, estava coberta por uma membrana, que deixava tudo entrar, as risadas escandalosas, as buzinas irritadas, menos o ar, deveras necessário. Na falta dele, respirava pequenas moléculas do passado, que abasteciam seu coração de um sentimento estranho. Estava suscetível à uma parada cardíaca, e sem coragem para importar-se. Tinha a velha sensação de um novo abandono, e a falta de si não poderia impedí-lo de acontecer.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Sonífera Ilha

Caminhávamos de mãos dadas, pela orla imaginária, ali frente à L2. Você assobiava uma canção à beira-mar, eu desfrutava da brisa fresca. Fingíamos que os pequenos resquícios de asfalto eram conchas, e guardávamos cada um deles para depois colocá-los perto do ouvido e escutar o som do mar. Dividíamos a mesma calçada e os mesmos sonhos. Era - praticamente - só nosso o desejo de ver o cerrado virar mar. O planalto inundado, pronto para nele afogar-nos. Na falta de água, afogávamos em um oceano de loucura e paixão. Era irônico como estávamos sempre prontas para o que desse e viesse, e se não desse, íamos até lá. Tínhamos tanto o desejo pelo inalcançável, quanto pelo o que nossa mão pudesse segurar. Segurávamos uma a outra. Um misto de desejo mútuo e imaginação. Segurávamos-nos pelas mãos, e tentamos segurar-nos pelas pernas, pelos cabelos quando, mesmo que o cerrado não tivesse virado mar, o concreto presenteou-nos com uma tsunami e levou-nos para ilhas diferentes.

Café e Cigarros.

Sentavam-se à mesa do mesmo café toda tarde de Domingo. Dividiam o mesmo maço e a mesma caneca. Conversavam usando cada fragmento de seus corpos. As bocas não acompanhavam o ritmo das pernas que, aceleradas, roçavam umas as outras. A caneca esvaziava e logo pediam por outra. Uma marca de batom de um lado, e uma gota de café escapando do outro. Cada cigarro era rapidamente substituído pelo próximo, como uma pausa para resgatar o fôlego e organizar os argumentos. Dividiam os tragos e a vista de uma W3 parcialmente nublada. A intimidade poderia ser muito bem notada por quem cruzava por eles. Tinham a postura de amigos de longa data e o fervor de amantes cujo encontro havia acabado de acontecer. Partilhavam das mais diversas opiniões, e seus assuntos vinham como chuvas de verão, refrescantes e breves, abrindo caminho para outros. A ligação que tinham, era tal como um cordão umbilical, podendo ainda ser sentida, mesmo quando cortada. Amavam-se entre um gole e outro, ao passar o guardanapo ou folhear o, já decorado, cardápio. Conheciam um ao outro mais do que a si mesmos. Eram opostos que encaixavam-se involuntariamente. Um par de ímãs difícil de separar. O que mais tinham de comum era o gosto pela demasia, o apreço pelo excesso. Nada, para eles, poderia acabar na metade. Desgastavam os assuntos, o fluído do isqueiro, seus respectivos estômagos, mais precisamente seus corpos inteiros. Ficavam sentados ali até serem convidados a se retirar. Retiravam-se, abastecidos de cafeína e nicotina. Não satisfeitos, resolviam abastecer-se com endofirna. Seus corpos lutavam. Um pelo outro. Quando ganhavam-se compunham uma sinfonia de grunhidos e paixão. Cada centímetro do corpo de um, era íntimo de cada centímetro do outro. Conheciam seus pontos fracos, de vista, pontos X, Y e G. Desfrutavam-se, embaralhavam-se, até que, sem saber o que era de quem, colocavam-se para dormir. Não dormiam. Buscavam por mais cigarros, e quem sabe, um café frio que restou da manhã. Aninhados, esperavam que todas as cinzas caíssem, uma contagem regressiva para que seu romance tornasse-se, de novo, a forma abstrata de dois corpos fundindo-se.

Arte.

Sua silhueta, muito provavelmente, foi esculpida por algum surrealista, um retrato dos mais loucos sonhos que alguém um dia já teve. Seus lábios eram a soma de tracejos cuidadosos das mãos de um romântico. A forma como caminhava era inquestionavelmente parnasiana, cada um de seus passos era recheado de graça e perfeição, e eram dados sem nenhuma outra intenção além de entreter aqueles à sua volta. A aparente falta de sentido e o desejo pelo novo, tinham sido presentes das vanguardas. Simbolista nas mãos e no olhar, precisava do interesse dos outros para que fosse desvendada. Seu sorriso era rico na forma, principalmente na forma como induzia outros. Alguns, ao vê-la, diriam em voz alta: "Obra de Deus!", eu diria, para só eu ouvir: "Obra de arte...".

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Garota...

Vestia o mesmo sorriso de uma criança. Carregava nos olhos os ideais que muitos perdem vida afora. Chamava atenção de todos que atravessavam por ela. Atravessava-os com seu penetrante olhar de curiosidade. Era dona de muito interesse pela vida alheia. Divertia-se tentando desvendar cada pessoa. Imaginava e inventava histórias, das mais diversas. Desde a criança que perdeu o cachorro até o velho entristecido que perdeu um amor. Nenhum rosto passava-lhe despercebido. E cada um deles merecia um espaço em sua mente. Cada um dizia-lhe uma coisa diferente, mostrava-lhe um caminho desconhecido. Eram como livros lidos a partir de uma página aleatória, sem que ela nunca chegasse ao último capítulo. Uma mistura de comédia, drama e novidade. Lia-os com querer e dedicação. Via-os não só como uma forma barata de entreter-se, mas como uma forma de entender o coração. Ainda que dos outros.

domingo, 13 de setembro de 2009

Fantasma.

Era possível ler o cansaço ao tocar seu rosto, as chamativas olheiras formavam "desistência" em braile. Sua maquiagem borrada, soma de madrugadas desfrutadas em cantos da cidade. Sua boca, seca e rachada, exalava o cheiro de café e cigarros, contornado por lábios cujo vermelho assemelhava-se ao de uma rosa prestes a murchar. Nem um tapete de veludo poderia livrá-la da sensação de estar pisando em cacos de vidro. Sua cabeça latejava, seu corpo pesava, seus pulmões pediam por socorro. Parecia um fantasma vagando por aí. Carregava seus sapatos nas mãos, e no resto do corpo, saudade. Perdia-se por aquilo que um dia havia encontrado. A feição ainda estava guardada, aquele corpo nu contrastado pela luz da lua. Corpo que adorou com fervor, como se visse nele uma figura santa. Ajoelhava-se perante a ele. Inventou rezas e poemas. Colocou-o sob um altar. Encaixou-o ao dela, desejando nunca separar-se dele, pois para ela, nenhum quebra-cabeça teria tanto sucesso no encaixe. Era um desejo ímpar, acima de qualquer outro. O toque de suas peles parecia o badalar de um sino, começava com um susto, terminava com arrepios. Explodia por dentro. E contagiante, andava pelas ruas achando que estava a desfilar por um tapete vermelho. Seus olhos brilhavam mais que o sol, seus lábios eram primavera em pleno outono. Quando a noite apontava na linha do horizonte, largava o trabalho, as pessoas, o tempo, e ia de encontro à felicidade. Em um dia encontrou-a já encontrada. O corpo nu agora estava coberto por outro, acenando adeus. Adeus. Adeus. A Deus. Culpava a ele, e a todo resto. Abandonada, abandonou-se. Pela primeira e última vez. Certeza?

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Estrela.

Não há estrela do mar que perca-se no céu. Ou há? Porque lembro-me bem de estar navegando entre as ondas antes de acordar aqui. Hibernei ou entrei em coma? Acordei perto da lua, a vista da janela dos meus olhos apresentava-me ao mundo. Sinto-me no topo dele. Cercada do brilho alheio, sem a capacidade de invejá-lo. Nunca sentir-se só foi sentir-se tão livre. Flutuo submersa em escuridão e alegria. O quão agradável é essa sensação, saber que estava sim no lugar certo, apenas de cabeça para baixo.

Império.

Preencheram o vazio de suas mãos com brilho. Uma pequena auréola de dezoito quilates, enfeitada com diamantes. Tudo na vida tem seu preço, já diriam os sábios economistas. Mas o que compraram dela, representava apenas um minúsculo terreno em uma das falanges de seus dedos. E talvez, o primeiro passo para a conquista de seu mundo inteiro. Mas só talvez. Para a conquista de tal mundo, para chamá-lo de império, e erguer uma bandeira sob ele, era preciso preencher as mãos, e depois o coração.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Aos Meus Amigos,

P.S.: Não é um texto com fundo poético ou valor literário, é somente reflexo de uma vontade de dizer algumas palavras sobre pessoas que marcaram-me de alguma forma.

Deu-me saudade dos bons, dos velhos. Daqueles que tantas vezes seguraram-me nos braços, suportaram-me nos ombros, carregaram-me nas costas, sem importarem se meu peso estivesse somado ao do mundo. Inúmeras vezes já agradeci, como tantas outras menosprezei. Souberam aceitar meus atos e os fatos. Sabem que não sou de falar, mas escutam-me dizendo o que posso com a boca fechada. Não bastam palavras, não existe no dicionário. Quantas vezes encontramo-nos decepcionados, juntos, separados. Soubemos reconstruir, moldar ao tempo. Lidamos com as manias, com os espamos. Matamos curiosidade, saudade. O tempo sempre leva um pouco de tudo. Levou-me, às vezes inteira, às vezes aos pedaços, até cada um de vocês. Seja culpa do acaso, mera coincidência. Com vocês descobri que não há nada melhor do que convivência para preparar-nos para o que vem depois ou com ela. Sei de mim, e do que há de melhor nisso, vocês.

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Quis escrever-te um poema, que justificasse minha ausência, ou melhor, meu sumiço. Sumi de vista, feito uma estrela cadente, cujo brilho não sei nem se chegastes a ver, pois não sei se brilhei o suficiente para que fosse notada. Na falta de rimas para minhas palavras, resolvi escrever-te esta carta. Nela digo tudo que outrora resolvi deixar de lado. Por falta de voz e de coragem. A rouquidão branda e as palpitações desenfreadas impediram-me de avisar-te que estava somente de passagem. Passei por você pela rua e invadi-me da vontade de passar por sua vida. Com calma e cautela, para deixar as marcas certas. Acabei por não deixar marca alguma. Vejo-te de longe, serena, fazendo festa para a vida. Esquecida dos compromissos, dos horários, de mim. Não, nunca quis ver-te de outra forma, apenas quis ver-te fazer festa para mim, mesmo que de despedida. Notou, ao menos, que estive ao teu lado? Inventando motivos para dar-te felicidade. Descobri que não soube omitir-me o suficiente para que sentisses saudade.

Do blog: http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Da Vinci.

Mesmo que ainda doesse, doei-me. Doaria mais. Mas mais o que? Fui de milésimos à metade, até que foi preciso o inteiro. Inteira, entreguei-me. Alegoricamente enrolada em uma fita, com um laço de medo. Embrulhada, mas sentido-me e deixando-me ser descoberta. Escondida até então, revelei-me. Provavelmente não como foi imaginado, sonhado, ou fantasiado. Ainda que fosse curioso, ninguém estaria completamente pronto para ver como ficaria a Monalisa fora do quadro. Como seriam seus movimentos, suaves ou brutos? E sua voz, grave ou aguda? Que susto levariam se ela fosse muda...desprendi-me do quadro, da moldura. Carne, osso e coração. Tinta sem óleo, pintura a dedo, retocada com medo. Movimentando-me com calma. Não precisando de voz, de só alma.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Domingo e Televisão.

Nublei-me. Isso sequer existe? Se não, acabo de inventar. Enchi-me de nuvens prontas para chorar. Sem motivos, sem razões, embriaguei-me da tristeza e da saudade do que houve e já não há. Involuntariamente, meus ouvidos captaram a música que costumavam escutar. No fundo do armário, e do peito, ela tocava, quase imperceptível em sua existência. Eu estava entre o cinza e o incolor, rememorando filmes que, embora tão antigos, não tinham perdido suas cores, ou seus brilhos. Tinham o mesmo clímax, mas ainda espantavam-me, emocionavam-me, cativavam-me, como se visse-os pela primeira vez. Encontrei-me tão nublada ao ponto de querer (re)vivê-los, mas nunca reconstruí-los. Sem eles, acredito eu, não teria sol para ter perdido de vista...