quarta-feira, 31 de julho de 2013

Que os anos passam...

Todo dia, mais ou menos às quatro da tarde, quando perto, mas não tanto, do pôr-do-sol, eu pego o ônibus em direção ao Centro. Nunca chega a estar cheio, mas alguma coisa no horário faz com que o automóvel balance o bastante para tornar o calor, já infernal, insuportável.

É o sétimo prédio no terceiro quarteirão, descendo pela Rua Quinze, paralela a Avenida Principal. É um prédio cujas cores variam do mais verde ao mais azul. Parece pintado por uma criança de quatro anos que, no meio do processo, escorregou os joelhos e caiu de cara espalhando a tinta sem se preocupar. Algo entre uma pintura abstrata e inocência que nos diz para seguir em frente sem medo de ser feliz.

Ou talvez nada disso, talvez só um reflexo dessa minha obsessão por procurar uma conexão entre cada uma das coisas do mundo e o mundo em si. Não, sinceramente, a obsessão não é essa.

Há vinte e cinco anos tomando, diariamente, remédios para ansiedade, minha obsessão está em observar milimetricamente toda e qualquer coisa, em tentar entender, na expectativa de, um dia, poder prever - e assim, me precaver do que virá.

Envelhecer é difícil: dói. Desde as juntas, aos ossos, até as mais profundas convicções. Envelhecer apunhala os sonhos. Mas como tudo: nunca é tudo. Portanto, também tem seus lados bons. Se não fosse essa minha cara de cão abandonado - na juventude, cara de cão raivoso -, eu não poderia me deslocar até essa exato prédio com a certeza de que sempre me deixarão entrar, sempre me deixarão subir de elevador até o décimo terceiro andar para, então, subir três lances de escada e chegar até cobertura. 

O sol se põe entre os dois edifícios na diagonal esquerda desse aqui. Ficou um vão entre eles, uma casinha colonial, que foi tombada ainda nos anos setenta, e que desejo sempre estar por ali. Por detrás de todo esse concreto, as copas altas das araucárias engolindo, pouco a pouco, o sol.

É ali a linha do horizonte. É ali onde a selva, não se sabe, é feita de terra ou de cimento. Se a selva é feita de cidade. Ou se a cidade é a própria selva. O sol se despede de mim, todo dia, ali. Ele abaixa meio receoso, temo que pense que cada um dos nossos encontros pode ser o último. Ou talvez ele nem pense - nem isso, nem nada - e por isso exista tão suave, tão majestoso.

Aqui, a trouxe pela primeira vez. Era magrela, sol que se punha no meio da neve. Metade dourada e metade, quase, translúcida. Parecia desenho. Na época, jovens, podíamos vir quando quiséssemos - quando tínhamos a sorte do zelador esquecer o portão aberto e se distrair. Logo mais os compromissos e horários foram se firmando, e passamos a vir cada vez menos. Até não virmos mais.

Há vinte um anos atrás, quando ela se foi - sem nunca, jamais, me deixar -, comecei a vir todo dia. Já era velho, barbudo, com cara de quem não tinha lugar, mas algum dinheiro no banco. Às vezes me barravam na portaria, mas nada me impedia, logo abria a carteira. Não marcava nenhuma reunião no horário, nada nunca que me impedisse. Venho, desde então, todo dia.

Com o céu alaranjado, avermelhado, indizível, consigo ver o rosto dela bem nítido dito dentro de mim.

Amor:
essa é uma das coisas
que de te mata
para te ensinar
a viver.

Feito foste poesia:
te encontrei
quando me
faltou
alegria.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Poeira, besteira e coisa - e tal

Estou tomando chá de boldo há uma semana.
Quero me convencer de que o amargo
está na língua de quem o sente.
O amargor está na
língua de cada um.
Ao te beijar
- sim, ainda me lembro -,
eu sentia um gosto bom.
Não era doce.
Mas também não era amargo.
Gosto de nuvens.
Dessas coisas que não sabemos, verdadeiramente, como são.
Ao te beijar
- eu lembro -,
bem no começo,
eu ficava rindo como quem
hora ou outra
sofreria uma 
síncope.
Capotaria por trás.
Porque me fazia cócegas,
dentro e por fora.
Nos lábios
e  no coração.
Parecia que beijávamos
nós dois
línguas
saliva
e uns grãos de areia.
Poeira das estrelas.
Qualquer coisa brega assim.
Mas isso talvez seja mais
uma dessas coisas
que estão
somente
na boca de quem sente.
Eu beijei
por mim
e por você.

Curto ensaio sobre a saudade

A saudade:
que é de cada um
que é lugar comum...


Quando a senti:
Pouco me resta de ti.
Um par de meias velho.
Uma escova de dentes
sem dentes
para escovar.
Uns vídeos
e fotografias.
Correspondências
e contas a pagar.
Pouco me resta de ti.
Porque se foi.
Se foi de mim.
Depois que foi em mim.
Depois que fomos um no outro.
Um ser sendo,
em partilhas
e parcelas.
Até não ser mais.
Até quando não foi.
Até quando não deu.
Quando olho,
não sei se fora
amor
ou deslumbramento.
Quando olho,
você agora,
já do lado de fora,
não sei quem foi.
Nem sei se fui.


Quando a descobri:
E no final,
nada dito
ou feito
fez ou fará
sentido.
E nem o dirá.
A saudade é um ser
onde não se
parece
estar.
A saudade são
os olhos
que oscilam
entre o aqui
e o acolá.
Como doem as coisas
que a gente finge
não sentir mais.
No dia que eu não tiver mais
medo
de olhar,
nesse mesmo dia,
que eu não tiver mais medo,
saberei
se estamos
onde devemos
estar.
Como doem as coisas
que se perdem
de lugar.
A saudade é a linha
entre
o vamos um pouco mais
para frente
e o já não dá.


Quando a admiti:
Ontem eu te abracei
para dormir
e você nem
imagina.
Acordei
e sua ausência
estava lá.
No calor
deixado pela cama.
No calor
de um corpo
acabado
de se ausentar.
No calor
que eu quis
imaginar.
Depois, fiquei querendo te ver.
Ver se me via em você.
Querendo saber se
ainda estava lá
- eu e você.
Se ainda tinha um lugar.
A saudade é o verbo
que não se pode
conjugar.
A saudade é ponto.
E nunca final.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Três atos inatos

Quando se é e se acontece:
Me apaixono de maneira muito fácil.

Por qualquer coisa - que fique ou passe.
Pulsante ou inanimada.
Existente 
palpável
ou não.
É algo necessário.
É como uma condição para sobrevivência:
é respirar
se alimentar
hidratar
assear.
É isso:
apaixonar-se é um tipo de limpeza.
Se solitariamente,
espiritual.
Mas ainda melhor se física.
É deixar de lado o feio
- em nós e que nos achamos no direito de ver em outros.
Para estar mais limpo
puro
livre.
Apaixonar-se é como
aceitar
e constatar
que nada é só isso
e que tudo pode ser - e é - muito mais
que uma coisa só.


Quando se é e se entrega:
Deixe que te beijem o silêncio.
Que te atropelem a calma.
Pois há saudade
tristeza
monotonia.
Uma parte do ser
que é o todo de um 
passado.
Deixe-se ser
enquanto 
sejam
ao seu lado
ao seu dentro
de uma mesma
maneira,
nada censurável
nem vergonhosa.
Que sejamos todos
quando em nós mesmos
quando em outros
sempre
tão
indizivelmente
humanos.


Quando não mais se é e se acaba:

Estou sentada 
num café
em algum lugar
no meio do caminho
de casa.
Você está sentado
em algum lugar
num café
no meio do caminho
de casa.
A gente não sabe disso.
Hoje,
a gente mal se fala.
A gente mal se olha.
Mas ainda se abraça
quando chega
em casa.
Quando chega
a madrugada
e debaixo dos lençóis,
ainda sentimos frio.
A gente ainda se abraça quando
algum de nós se sente perdido.
A gente sempre
se encontrou
no escuro
e no vazio.
Hoje,
a gente senta
no meio do caminho
a gente toma um café
para não ter que chegar,
para não ter que abraçar
e descobrir
que não se aquece
não se encontra
não se está
mais ali.

Curto ensaio sobre o medo

"Em torno de mim jaziam poltronas tortas, vigas empoeiradas e objetos abandonados: era justamente o lugar comum a todos os meus sonhos".

Era uma quarta-feira. Acordei quando o ponteiro já alcançava o número doze. Apaguei por quatorze horas. Na noite anterior, decidi me render e, só dessa vez, tomar algo para dormir. Algo que não fosse um chá de camomila ou erva-doce - um ritual diário. Pretendia tomar um quarto do comprimido de Lexotan, mas a necessidade de uma noite dormida era tanta que, ao segurá-lo entre os dedos, tomei inteiro. De uma vez só, sem hesitar. Depois de engolir, pensei em avisar alguém. Não queria ser encontrada morta por overdose dias depois, sem gatos ao meu redor - sem que a história fosse apetitosa aos tablóides. Me ocorreu, de súbito, que eu não teria a quem avisar. Não por não ter amigos, familiares, próximos. Mas não havia ninguém que visse tamanho perigo num comprimido só. Ninguém que visse o perigo que eu via. Ninguém que soubesse o que aquele objeto minúsculo representava para mim. Pois ninguém mais, no mundo, sabia desse meu medo de remédios. Do meu medo anterior e muito maior que esse: o medo de provocar ou antecipar, por desleixo, minha própria morte. Algo como atravessar a rua sem olhar para os lados. Ninguém sabe que checo se fechei o gás toda noite, três vezes, antes de dormir. O medo visceral de morrer. Nunca contei a ninguém dos meus medos. Por ter, até mesmo, o medo de contá-los.

Eu ando sempre com algum bloquinho e uma caneta no bolso, e anoto tudo que me parece fundamental. Se, de repente, o ônibus de sempre atrasa, eu anoto quantos foram os minutos. E ao que esse atraso teria conduzido: os conhecidos que encontrei por acaso durante a espera, o tempo a mais que precisei esperar na fila da fotocopiadora. Também tento fotografar sempre tudo o que posso. Rostos também. De noite, quando chego em casa, separo tudo que capturei - em imagens, rabiscos, palavras - por datas. Tenho uma pasta para cada mês, dentro de cada ano. Faço isso há mais de década. As imagens não todas, as mais antigas precisaria digitalizar, e pouquíssimas estão com a data correta. Faço isso porque tenho medo de esquecer dos meus dias. Eu tenho medo de esquecer como alguma coisa, algo ou alguém, me fez sentir. Medo de que uma coisa, que foi importante, mesmo que por um dado momento, me escape para sempre. Acredito, nunca terei tempo de reler ou rever tudo o que acumulo mas me basta saber que, enquanto eu puder, estarão sempre guardadas e, de alguma maneira, inesquecíveis.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

O texto olhar dela que ficou para trás

A gente se conheceu de uma maneira que eu definiria como "quase torta". "Quase" porque se tivesse sido totalmente, não estaríamos aqui até agora. Aconteceu de uma maneira que, hoje, é "quase natural". A gente se viu. Ao menos, ela disse que me viu e que eu a vi de volta. Não sei se ainda diz isso para manter uma mentira que ela criou na intenção de romantizar ou se o impacto em mim foi tanto que perdi a imagem. Meu primeiro registro dela vem um tempo depois dessa que ela chama de "primeiro", ou "quase". Ela dançava e sorria, vestindo uma camiseta preta, balançando para um e para outro lado. Desengonçada, mas nem por isso menos encantadora.

Imanente - desta maneira que se deu nossa "ligação". A partir do momento em que a vi e ela já me observava. A sensação - que se estende até agora - é de que ela está sempre um passo a frente. Não sei se me controla ou se já me prevê. Mas mal acordei, e ela já sabe como está meu humor, como se dará meu dia.

As pessoas se esgotam. É um pensamento recorrente. Uma recordação concedida por alguém qualquer em um qualquer dia. As pessoas se esgotam uma na outra - ninguém é infinito. Ou talvez seja. A verdade é as pessoas se cansam. Se entediam. E se vão.

A gente fica para sempre sendo a gente e mais as partes de outros deixadas em nós.

Por isso não sou o mesmo. Não sou quem foi visto por ela. Nunca mais serei. E nem quem me tornei depois que a vi me vendo. Eu mal sei onde sou eu e onde são os outros em mim. Eu sou um agora, e assim que saio pela rua, sou quem era mais fragmentos de outros que passam por mim. Sou um depois, mais um agora, mais o que está por vir - e eu nem consigo imaginar. Sou pedaços de todos que assisto passar. Que me captam o olhar. Que me cedem, ou pedem, palavras.

Todos, não. Não só todos. Tudo. Tudo o que me atravessa fica impregnado em mim. Tudo o que chega, e fica, e vai se adaptando para caber no meu espaço-ser. E que depois precisa se recolocar, se reencontrar, dentro e fora - de si e dos outros.

Porque se escrevi isso agora, não sou mais o mesmo. E mudarei outra vez, ao ler.

A gente se conheceu de uma maneira que não se encaixou no decorrer do texto. De um jeito que ficou para trás. Porque falar disso já não é mais algo meu. Já não me pertence. O que me pertence agora? Se hoje, ao vê-la me vendo, sinto vontade de ir embora.

De novo, já não sei quem sou. E não me reconheço sendo nela. E nem ela sendo em mim.

A vida escorre
feito suor
pelo corpo
pelo ralo
sem fazer sentido
bem
ou mal
assim.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Dois dedos de prosa em poesia

"Há gente que é feita para viver e gente que é feita para amar".

O alarme. Até isso. O som irritante que era preciso escutar toda vez que fechávamos o carro.


Bim! Bim! Bim!


Até esse som,

está gravado em mim.

Ainda está tudo gravado em mim.


Não há uma noite que passe silenciosa. Sempre o barulho da porta batendo e o alarme. E o coração acelerando no peito - por mais que o tempo passasse, só a possibilidade de sua presença já me tirava do chão.


É como se eu estivesse sempre, ainda, a te esperar. Como se o dia todo passasse em torno disso:

dessa espera
dessa enfim, e tão esperada,
sua - e em parte, minha - chegada.

Você não vem mais. Você nunca mais veio.

E melhor assim, tento e logo me convenço.
E logo depois, me esqueço de que já me convenci.

E então retorno, a essa estaca zero

onde foi o melhor
para nós.
E onde o pior
é que o melhor
também dói.

Bim! Bim! Bim! estranho,

mas esse é, ainda, um dos sons
que você faz em mim...

terça-feira, 16 de julho de 2013

Denominações

"Estamos diante de um amor que chamaremos de 'fusional"

Estou sem ideias.
Sem ir muito longe.
Com sede, mas sem coragem de me levantar.
É triste, e longo demais, o caminho até a cozinha.
Eu preciso passar por todos os retratos pendurados nas paredes.
Eu preciso olhar para o escritório e percebê-lo vazio.
Inanimado.
Empoeirado.
Preciso olhar para você e perceber que não está aqui.
Não está.
E mesmo,
e ainda,
assim,
consigo te olhar.
Te vejo

exatamente
como me veio
avermelhado de sol
(e timidez),
sereno,
esguio.
Naquele dia,
meus passos me levaram aos seus.
Naquele dia,
seus passos me levaram aos céus.
"As pessoas se encontram porque elas tem que se encontrar"
Você disse como dizia todas as outras coisas
querendo viver a vida como um filme
querendo viver de filme
a vida.
E você me ganhou
no primeiro sorriso
no primeiro silêncio
arrepio
espirro
abraço
grito
carinho
distância.
Foi me ganhando
sem nem perceber
sem nem se importar.
E disse, várias vezes, bem assim:
é o curso das coisas, o fato de elas virem não quer dizer que tenham que ficar.
No dia em que te vi,
em que te vi de verdade,
e me vi bem em você,
em que te olhei nos olhos pela primeira vez
era só você
e eu
- refletida ali.
Querendo entrar
- em ti.
Eu comecei a rir
sem motivos aparentes
e você me olhou
por minutos
sem entender
aqueles risos
inteligíveis.
Até que sem saber
se ria
ou se corria
me perguntou.
E entre respirar
e tentar me conter
- para não assustar.
Pela metade,
mas me sentindo inteira,
eu te disse:
você coisou meu coração.
Se eu não entendi,
imagine você.
Mas foi assim,
um não-entendimento até o fim.
Às vezes
- quase sempre -,
ficava uma lacuna.
Entre o que você falava
e o que eu quase entendia.
Entre o que eu não entendia
e o que você não falava.
Era na falta de um no outro
que a gente se encontrava
e depois se perdia.
As coisas, mesmo quando bem vindas,
findas
não precisam ficar.
O que vezes me prendia,
e vezes te libertava,
um dia acabou.
O que nos preenchia,
mas que,
um dia,
esgotou. 
Entre a lacuna e a despedida, 
você me perguntou:
Como partir inteiro daqui?
Você coisou meu coração...

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Amores fusionais

"O que não tem medida, nem nunca terá.
O que não tem remédio, nem nunca terá".

Eu não sei o que leva as pessoas a serem como são. Não é isso que eu gostaria de saber. Eu quero entender o que leva uma pessoa a ser algo para outra pessoa - nem sempre o que ela realmente é. 

Eu quero entender porque ela foi o que foi para mim. Se quando em lucidez identifico que quem vinha a mim - por meus olhos, tato, enfim: sentidos - não tinha nada a ver com quem ela era em si mesma.
Por viver sozinho, estou acostumado a estar só comigo, mas me assusto quando nos aproximamos demais - o eu-sou e o eu-não-quero-ver. Estou certo de que todos se conhecem, cada um ao nível que se permite, a maioria nos mais rasos - mergulhar exige forças para além do suportável. Uns diriam sorte, mas tive o infortúnio de me conhecer além do que deveria - nunca vá para longe ao ponto de esquecer o caminho. O que constatei, e lhe repasso em forma de aviso, é que é possível guardar em si todos os tipos mais macabros de pensamento.
Pensar nessas coisas - pensar quem sou e pensar esses pensamentos -, principalmente pensar nela, vai me puxando todo o ar - desta forma, se dão as crises de pânico.
Meus pés estão inchados. Tropecei e parei ao chão bem na última curva. Estava correndo, completaria a trigésima volta no quarteirão. Corro quando me sinto em perigo - mesmo que fuja de ameaças imateriais.
Não tomo medicamentos - tenho certeza de que fazem mais mal que bem. Correr foi a maneira que encontrei para não me afundar.
Ela veio até mim de maneira engraçada. Eu sabia que ela tinha que vir - se não tivesse, nunca viria -, mas não consigo me livrar da impressão de que a maneira como essa vinda se deu não passou de um improviso. Algo deu errado no caminho, tenho certeza. Mas minha análise não importa agora.
Eu estava terminando de tomar um segundo café numa padaria perto da ponte. A primeira xícara era realmente minha, a segunda tinha sido recusada por alguém e eu não pude desperdiçar. Alguém que me recusou também, aliás, na mesma hora em que as xícaras pousaram à mesa.
O problema não é você...
Estamos querendo coisas diferentes...
Não me leve a mal, eu só te quero bem...
As falas eu já sabia de cor - o que me fez racionalizar e aceitar que só isso já era motivo suficiente para terminarmos ali, só isso já era motivo para não ser nada demais, ser só mais um. Mas deixou uma marca forte na memória quando, no momento em que apertou a bolsa contra o peito e se levantou para sair - deixando o café em perfeito estado -, fechou os olhos - como se transcendesse - e disse assim:
Que a vida sempre nos presenteie com pessoas doces. Mesmo que seja por alguns minutos.
Entrou no carro e nunca mais tive notícias. No mesmo momento, a frase bateu na cabeça e ficou. Como um mantra ou um pedido.
Ela veio até mim nessa situação engraçada. Onde eu tomava uma segunda xícara de café, ao invés de pedir um duplo. Seus cabelos reluziam ao sol, e achei que ela precisou se explicar demais só para conseguir açúcar.
Desculpa incomodar, mas na minha mesa todos os sachês já estão vazios, adoçante é cancerígena, eu até tomaria puro, mas estou sedenta por um doce e não quero voltar outra vez no balcão, está muito cheio não quero ser mais uma a gritar com o barista, você pode me dar um sachê de açúcar?
Eventualmente descobri que ela expunha explicações - todas elas e suas diversas possibilidades - para tudo. Descobri que era uma característica dela: a de nunca, sob circunstância alguma, deixar as coisas soltas no ar.
É muito perigoso deixar as coisas nebulosas, ela dizia.
Toda vez que eu perguntava como ela havia chegado a essa conclusão, ela desviava de assunto. Creio, portanto, que a nebulosidade deixou nela algumas dores duras lembranças.
Quão doces são as coisas que nos invadem e nos tiram da superfície de repente?
Por bastante tempo eu a via quase levitar pelos lugares. Isso que ela tinha de nada pensado ser indizível, lhe tirava todo o peso da vida. Sua presença por si só era capaz de neutralizar o mais pesado dos ambientes.
Nunca me esquecerei da primeira vez em que me declarei perdido por ela. Perdido nela. Espalhado, derramado, entre seus pêlos, olhos, cicatrizes, frases, desejos. Era madrugada, estávamos desde a tarde na casa de uns amigos - que descobrimos - em comum, abrindo uma garrafa de vinho atrás da outra, ajudando a encaixotar as coisas para a mudança. Ela foi subir num banquinho e, antes que eu visse, deu de cara no chão. Sem nem se levantar, ela disparou a rir. E ria, e ria, e ria e parecia que não ia parar nunca. Sem poder evitar, a embriaguez se somou a imensidão dos risos dela e eu disse:
Não sei como te olhar sem sentir vontade de deixar meus olhos para sempre em você.
Depois que as palavras saíram, eu pedi para que tivessem sido baixas demais para serem escutadas entre as risadas dela e as músicas vindas das caixas de som.
Não foram, não foram porque nunca ninguém me olhou daquela maneira. Ela se silenciou por mais de dez minutos e ficou me encarando. Tive a sensação de que ela via através de mim - para ter a certeza de que aquilo tinha sido dito com sinceridade. Nunca ninguém me segurou, e se segurou em mim, com tamanha vontade.
Eu queria entrar em você agora só para abraçar seu coração.
Quando ela soltou essas palavras, sem nem explicá-las, eu tive a certeza de que a quereria para sempre, sem me importar quanto tempo esse tempo nosso nos reservaria.

Eu a amei demais. Eu a amei indizivelmente - e sendo dessa maneira, de um jeito que ela jamais aprovaria. Tanta foi a entrega que eu me sentia culpado quando longe - viajávamos muito a trabalho, na época. Eu ficava perdido, sentia vertigem e me limitava as reuniões e os quartos de hotel. A sensação de ter algo precioso demais para desperdiçá-lo por aí. Mas eu a via desfilar, despreocupada. Conhecer pessoas novas, falar mil vezes durante o jantar sobre elas. Trazer coisas novas para casa, presentes. Dormir fora - depois de já ter se mudado para meu apartamento. Sobreposição de perfumes sobre a pele. De homens, mulheres. Sem perguntar, nada mais ela me dizia. Mas a possibilidade de escutar o que eu já sabia me doía tanto. Perto de explodir, um dia eu perguntei os motivos para isso - todos queremos saber quando não bastamos mais, e porque.
Não demorou muito mais para eu estar, outra vez, tomando meu café e um segundo que me foi deixado.
Eu gosto das coisas intensas. Porque elas independem do tempo. Só o fato de acontecerem, já é o suficiente.
Eu quis que sim. Ela não quis mais. Ela que queria sempre tudo e tanto.
Eu quero entender porque ela foi o que foi para mim. Se quando em lucidez identifico que quem vinha a mim - por meus olhos, tato, enfim: sentidos - não tinha nada a ver com quem ela era em si mesma.
Eu gostaria de saber porque ao me doar me doeu tanto.
Eu quero entender porque a leveza dela me foi tão pesada.
E porque seu amor me custa, ainda, tão caro.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Pantomima

Quando conhecer alguém que te dê vontade de ficar: fique.
Quando encontrar alguém que te dê vontade de ficar: fique.
Se encontrar alguém que te dê vontade de ficar: fique.
Se conhecer alguém que te dê vontade de ficar: fique.
Se alguém, um dia, te der vontade de ficar:
não titubeie,
FIQUE.

Começo assim, incerto, um conselho que, há tempos, procuro alguém que mereça escutar.
É que as pessoas são, para mim, essa fusão entre admiração e repúdio.
Andei, fui longe demais, mas sempre que essas palavras se contorciam na cabeça para descer à boca: algo me fazia desistir.
Eu vivo de caçar defeitos.
Foi uma tarefa que alguém um dia me atribuiu, e nunca me esqueci. Alguém a quem eu quis muito. Quis tanto que cheguei aos devaneios que pretendo dividir aqui.
A vida vai se fazendo desfazendo refazendo pelos cantos. No tempo dela. Ou sem tempo. Fora dos relógios e ainda assim:apressada.
A vida passa e antes que perceba: você tinha esquecido seus olhos fechados.
São os lugares a ir, livros, álbuns completos, os prazos e tabelas, as designações para cada coisa, os feriados, festas de aniversário, signos, significados, significantes, alarmes, relatórios, happy hours, museus, galerias de arte, pontos de ônibus, manifestações, livros outra vez - agora com outro foco -, a academia, a poupança a ser preenchida a cada mês 
Tanta tanta tanta tanta coisa que no final:
me deu preguiça de escrever.
E um momento de lucidez que me trouxe de volta para a auto-preservação. Ninguém espera ter passado tanto tempo lendo, ouvindo, assistindo, observando para, no final, decretar o maior absoluto da vida:
o vazio.
Foi para isso que acordei cedo - nos anos de escola. Para isso acordei cedo - nos anos de faculdade. E fui dormir tarde, bebendo e querendo demais. Sendo, relativamente, pouco. Por isso acordei cedo - quando formado, para ir todo dia ao escritório, antes e depois da pós-graduação, do mestrado, doutorado. Acordei cedo para todo mês olhar o saldo da poupança e respirar aliviado por vinte segundos - até lembrar do dever de me superar no mês seguinte, e a cada mês que estivesse por vir.
Atropelei o pensamento com as mãos e revelei o que prefiro escondido:
esses vazios.
Que nos colocam a dormir. Que nos servem à mesa. Que nos enchem os carros. A sala. A cabeça.
Que nos fazem ter pressa para chegar logo a algum lugar.
Que lugar é esse?
De maneira difícil - e não que prefira as coisas entregues em mãos -, descobri que perdi noites de sono, de volúpia, luxúria, excesso: por nada. Noites à deriva. Noites que fossem - e isso de maneira a simplesmente serem. Perdi noites que seriam de muito, ou de coisa alguma, por nada. Cobranças, preocupações, dígitos e prazos.
Perdi a sensibilidade para com a vida.
Como eu ia dizendo: descobri. E é nessa parte que vem o mais difícil.
Ela era o oposto:
vivo de nuvens, dizia assim, as mãos vermelhas de tanto apontar para o céu.
E o que mais? Eu debochava.
de poesia - e arrumava um jeito de rimar dor com alegria.
Mas eu era sério. Eu era tão tão tão sério que mal me distraía. E não sabia sequer o que ela via em mim.
Ficou por um gigante espaço de tempo. Sempre que aniversariávamos, fosse mês ou ano, ela via motivos para comemorar. Eu reclamava de ter que usar gravata todo dia.
você não precisa - e eu zombava dizendo que queria viver no mesmo mundo que ela.
Ela não se irritava. Ela nem por isso parava de sorrir - nem de querer bem à vida. Me abraçava por trás, batendo o coração aveludado dela nas minhas costas duras.
Ela foi assim, ficando. E eu fazendo pouco caso do que ela tentava me dizer a cada vez que sorria. Quando muito irritado, depois de um dia de trabalho eu batia com força a porta e dizia:
você precisa de ajuda.
Numa dessas vezes, ela saiu pela rua.
Insônia - no terceiro dia, ao voltar para casa, encontrei um bilhete na porta. Tinha o nome dela, logo abaixo o meu, os dois ligados formando o símbolo do infinito.
Pensei na infantilidade de traçar algo assim - finitas, sempre tive certeza, são todas as coisas. Ao abrir, nas letras tortas dela, estava escrito assim:

Cheiro teu
na roupa
minha
Gosto teu
na boca
minha
boca minha à gosto
teu

Outros três dias, outro bilhete dela:

Somos todos
um papel
por debaixo
de alguma porta

porta
tanto
portanto 

se entregue
a quem te
tirar
da inércia


Aprendi que todo dia é dia de renascer - e combater esses vazios.
Passo noites acordado. Ou durmo sem pretensão de acordar.
Todo tempo do mundo é meu. E mundo meu ninguém me tira.
Todo dia renasço - e morro, mais tarde, de saudades dela.



*Hoje, postei dois textos no meu outro blog:
http://ateoriadonada.blogspot.com.br/