sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Gratidão Não É Amor.

Eu sonhei, nessa noite, que tudo era diferente. Eu acordava, e você estava logo ao lado. Nenhum de nós se sentia sozinho. Ninguém se lembrava que, na realidade, era impossível escapar disso. Aquele papo sobre estar só acompanhado...você acordava, e também levava um susto. Não esperava me encontrar ali. A gente se estranhava um pouco. Mas não demorou muito e as mãos já reconheciam o espaço dos dedos. A gente reafirmava aquele espaço no mundo. Os lábios estiveram tímidos, mas logo arriscavam uns movimentos. Eu levantava e ia para a cozinha passar um café. Você vinha logo atrás, parecia sentir medo de que eu me perdesse pelos cômodos e nunca mais aparecesse. Você andava na ponta dos pés, como se sempre tivesse sido bailarina, e eu, sempre uma razão para te fazer levitar. Você me dizia para maneirar na quantidade de café. Precisávamos evitar desperdícios. "Você sabe que o mundo está engolindo a si mesmo, não sabe?" e o brilho dos seus olhos parecia se distrair um pouco, quase ir embora. Café para duas canecas cheias e um repeteco, se você quiser, depois. Café requentado tem gosto de amor, amor quando está naquele momento de não se importar com mais nada. Quando uma pessoa está tão, decididamente, focada na outra, que não se interessa se as propriedades das coisas não estão mais lá. Nem tanta cafeína, nem tanto calor, nem gosto, nem tanto cheiro. É só para enganar a boca quando ela só está interessada na boca do outro - e não pode engolí-la. Quando um quer engolir ao outro e a si mesmo. É preciso se distrair para evitar desperdício.Você escutava tudo que eu pensava. No sonho, não haviam pensamentos escondidos. Uma terceira voz anunciava tudo. A gente se comunicava, e nem sempre através das nossas vozes. Você se debruçava sobre a varanda. Dizia não se lembrar daquilo tudo, de como era tão lindo. Eu temia que um vento forte, ou uma cãibra, te fizessem desequilibrar e você caísse. "Não é tão alto aqui do décimo andar", você disse. E ria, gargalhava, depois respirava fundo, e me olhava tão lá dentro, que eu ficava mudo. Faz tanto tempo desde que a gente se deu bem. Tanto tempo desde que a gente se deu, também. A gente se entregou. Acordei assustado, com a cama toda molhada de suor, não teve nenhuma força externa, você simplesmente abriu os braços e pulou. Quanto tempo até parar de doer?

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Origem/Destino.

A garganta arde, queima, e eu sinto o muco querendo escorrer. Eu olho nos seus olhos e não estão mais ali. São só ausência. Partes suas que foram tudo, foram tanto, mas se cansaram. Existe um potencial, um quase-limite, uma forma de ser, e ser mais ainda, e espichar-se mais um pouco, e não desistir, até que se esgotem as forças. Mil e umas maneiras de tentar. Uma insistência que se prolonga. Afinal, a força pode brotar de diversos cantos. E nem sempre seus pontos de foco deixam que se atrapalhem, ou se anulem.
Sua vida colidiu com a minha. Caímos, e o desconforto em estarmos ambos espalhados pelo chão, trouxe conforto, afinal. Afinal, muitas coisas começam erradas, mas acabam encontrando formas de parecerem certas. Muitas coisas parecem erradas, e não são. Muitas coisas são incontáveis coisas, melhor não tentar definí-las aqui. O que precisa ser levado em consideração é que algo conspirou para que estivéssemos os dois no mesmo lugar. Em um mesmo instante. E como dois corpos não podem ocupar um mesmo lugar no espaço, uma força extraterrena sugeriu que nos tornássemos um.
Não acredito em Deus. Não sei se ele acredita em mim. Não acredito em coincidência. Na verdade, não consigo me lembrar no que acreditava. Mas posso fingir que sim, se você quiser...
Se precisar que eu acredite.
Ainda bem que seus joelhos eram treinados a suportar pancada. Ainda bem que eu caí de bruços logo depois de você. E que eu era mais leve. Não te machuquei. Foi como um abraço que não quer se soltar. Ficamos desacordados, mas logo risadas. Logo risadas, choro, agonia, incompreensão. Ainda bem que humanos, então nada de raso.
Seu cabelo, sua pele, suas pálpebras, seu mau gosto musical.
A memória, a lembrança, a inconstância, as botas sujas de barro. Os dias de chuva. Os dias de sol. Os dias que entravam e saíam sem serem convidados. As páginas sendo rasgadas do calendário.
A vida, às vezes, dá tantas voltas que parece que vai se enforcar.
Acho que acredito nisso de encontro. Que é algo definitivo. Que ninguém sai da vida de ninguém, pelo menos não permanentemente. Existe, ao menos, um lugar onde todos se encontram.
Que não demore tanto. Existem diversos lugares aí pelo mundo.
Castles are built from silence.
A garganta arde.
Escrever não é trapacear...

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Azedo.

Aquele café da Índia é incrível. Me recorda do tempo que quase passei lá. Experimentei agora, perto do fim da tarde. Enquanto escrevia a resenha de um filme novo para o jornal. O gosto do café era tão, mas tão, incrível, que eu resolvi dar cinco estrelas para um roteiro que, se duvidar, não merecia nem duas. Espero que você não divulgue isto. Deve estar se perguntando: é sério mesmo que ele está me escrevendo para falar de um grão bem torrado?
Não. Eu estou te escrevendo porque há tempos não escrevo. Nem para você, nem para qualquer outra pessoa. Não tenho encontrado tempo para deixar o café esfriar ao lado do computador. A demanda de trabalho, na verdade, continua a mesma. Uma coluna por semana, dois comentários diários, e umas resenhas que surgem quando se enganam achando que entendo de alguma coisa. Tenho me ocupado integralmente em me distrair. Em não me deixar sozinho comigo mesmo. Só Deus - se ele existir, é claro - sabe do perigo que represento agora. Ouvi, esses dias, meu irmão mencionando a palavra "suicídio" uns passos atrás do meu nome. "Suicídio", mas que palavra boba para acobertar um ato que exige tanta coragem. Que palavrinha sem graça. Eu consigo imaginar mil e uma outras que capazes de expressar, ao menos, um terço a mais da vastidão desse sentimento. Sim, suicidar-se é como amar-se. Um sentimento, que vira verbo, e que parece egocentrado. Mas não é. "Eu me amaria", "eu me enciumaria" e, finalmente, "eu me suicidaria". No caso: eu me livraria de mim mesmo. Acho, ainda, que não por falta de amor próprio. Talvez se auto-valorizar demais. Eu me livraria do mundo. Talvez isso, quem sabe...quem sabe? Não eu. 
Embora pareça, e já tenha sido mencionada a possibilidade, eu não a avalio como real. Não está entre minhas pretensões. Me amo, ainda. De alguma forma bem imprecisa, mas amor sim, claramente ele.
Aliás, reconsidero o que disse antes: suicídio pode ser amor demais, mas também, pode ser logo o oposto: ódio de fazer pulsar os olhos.
Enfim, o que eu poderia fazer, contra mim mesmo, ainda não está claro. E temo, justamente, por não poder definir uma estratégia de saída. 
"Por que foi experimentar o café logo hoje?".
Sabe que eu ficaria bem deitado perto das prateleiras de livros infanto-juvenil?
Eu acredito, e ainda coloco minhas mãos no fogo, que tudo acontece quando e onde tem que acontecer.
E daí que se passaram dois anos? Talvez a poeira da gaveta tenha apurado o sabor. Quem sabe na época não fosse me agradar.
Vai que tudo em mim amadureceu...
Escrevi uma matéria a respeito do consumo de colágeno essa semana, fiquei inconsolável ao perceber que negligenciei algo tão essencial. Parece que com os anos eu aprendi a ignorar mais coisas do que a apreciar.
Mal me lembro daquela noite.
Apaguei até o rosto dela.
É que a lembrança - às vezes instrumento de paz - é capaz de machucar tanto.
Têm dias que largo todo o trabalho só para abrir a janela do escritório e olhar para baixo. São vinte e dois andares - contando daqui para baixo -, mais de 400 salas, cheios de pessoas que mal se sabem ali. Concreto e concreto, acabamentos e grampeadores, que nos impedem de notar qualquer sinal de humanidade.
Humanidade: capacidade de ser humano.
Parece, ainda, que estou vivendo um sonho.
Desde que você anunciou a gravidez.
Sua barriga espremidinha foi se adaptando a um outro viver.
E o poder sentir o seu amor junto ao amor por ela.
E o dia em que ela abriu os olhos?
O número de vezes que ligaram da escola.
Você não podia buscar. Nem eu.
Não estávamos presentes nem quando ela tirou a carteira.
Sabe que a vida sempre passa assim, sem qualquer pretensão de se tornar eterna? A própria vida tem pressa de acabar.
E a gente aqui achando que ainda vai ser alguém no mundo.
Não sei em que momento deixamos de ser amor para virar compromisso.
Dói tanto imaginar que aquele sorriso já não é mais dela.
Que as coisas nos preenchem tanto e, de repente, nem existem mais.
Eu sinto muito por não ter perguntado o que achou da comida indiana.
Eu sinto muito por não ter coragem.
Eu sinto muito por não ter estado lá.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Ensaio.

Tenho medo de que não me reste mais nada.
Tenho medo de que não reste mais nada.
Tenho medo de que não reste nada.
Tenho medo de que não reste.
Tenho medo de que não.
Tenho medo de que nada.
Tenho medo de que nada me prenda aqui.
Tenho medo de que nada me prenda.
Tenho medo de que me prenda.
Tenho medo de nada.
Eu cutuco, cutuco, eu aperto, e não sinto dor.
Eu aperto e não sinto nada.
Eu sinto nada e não aperto.
Eu flutuo!
Eu hoje sou, mas o amanhã quem sabe?
Quem sabe amanhã eu seja.
Um aperto ou um nada.
Hoje, um aperto.
E amanhã mais nada.

Eu te aguardo, menos calada. Você viu que hoje choveu? Você ligou a televisão? Lembrou de tomar, pelo menos, três litros de água? Conseguiu marcar aquela consulta da qual precisava? Será se está muito ocupado? Você deveria me ligar, qualquer hora dessas. Tenho uns filmes a recomendar. Uns trechos de música na cabeça, para ver se você me ajuda a descobrir se realmente existem. Tenho umas coisas para falar que são melhores sentidas. Venho me sentindo muito só. E faz parte do processo de, digamos, cura, querer admitir. A solidão é tranquila. Como atravessar a cidade em um ônibus vazio. Está bem, talvez não seja isso. Talvez ela nem ande de ônibus. Aliás, pode ser que ela nem seja capaz de andar. Mas certamente existe este lado nela: de ver tudo acontecendo e não poder parar quando quiser. Será se alguém já olhou nos olhos da solidão? Eu acho que ela desviaria o olhar...

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O Ventilador.


Eu gosto muito de você. Eu gosto tanto, que você está se levantando, catando as roupas pelo quarto, jogando numa sacola velha, e indo embora. E eu estou sentado. Estou te assistindo ir. Com o olhar questionável de quem vê o filho - único - ter idade e coragem para sair de casa. De coração apertado. Nunca fui o que te impedia de ir. Não deliberadamente. Pelo contrário, fazia até questão de demonstrar apoio. Mesmo que por dentro me doesse todo. Já quis, várias vezes, que tivesse ido em frente com estas tuas idéias de dar no pé. Eu me arrependia ao te ver tão arrependida. Neste momento, você escolhe o que vai e o que fica com tanta clareza que me parece que desta vez será definitivo. Não terei notícia dos teus olhos arregalados por anos. Talvez só saiba, novamente, deles quando se fecharem. Sinto calafrios ao pensar na possibilidade de sentir tua perda com a mesma intimidade que sentiria ao acompanhá-los no decorrer da vida. Tem tanto brilho que surge, tanta lágrima que chega, tanta pestana que cai. Será se tens mesmo a coragem de meter a cara no mundo? Eu fico olhando o ventilador. Olhando o ventilador e os seus movimentos. Não sei qual dos dois me parece mais automático. Sei lá, decidido. Eu ficarei por mais quantas horas olhando este mesmo ventilador depois que colocar todas as tuas coisas no táxi? É possível que eu tenha me apaixonado. Já que o movimento, que antes era tão óbvio, agora percebo com uma quase magia. É assim que acontece com gente. Quando gente se apaixona. Se lembra do dia seguinte? No trabalho...a gente até tentou disfarçar. Aliás, tentamos bastante. Mas não importava a reunião, a pauta, o café com ou sem açúcar: não conseguíamos tirar os olhos um do outro. E a gente antes pensando que tudo que o outro fazia era tão mecânico, tão óbvio. OK se você mordesse os lábios enquanto lia. OK se meus sapatos parecessem de palhaço. OK se você estivesse ali e eu também, numa mesma copa, tomando o café numa mesma caneca, prolongando os minutos de descanso entre uma peça e outra. Além da imaginação e à merda tudo que era OK quando bebemos demais e acabamos enrolados atrás da pilastra. Será se naquele momento perguntaram por nós? Se nos preocupamos demais com o dia seguinte e, já naquela noite, todos já imaginavam o motivo para termos ido buscar mais oito chopps e voltado uma hora depois, sem chopp algum nas mãos? Não leve meu casaco azul-marinho! Apenas não ouse dobrá-lo e colocá-lo junto ao que vai! Aliás, não o deixe ir amarrotado, principalmente. Quer saber? Leve, leve tudo. O casaco, o isqueiro, os filmes do Almodóvar. Leve até o ventilador! Não...ele não...se um dia ele parar de funcionar, eu sei que com uma quantia razoável, ele rapidamente volta ao normal. Queria que funcionasse assim com todas as falhas no mundo. Que tudo se consertasse com atenção. Digo, com a capacidade de percepção do dano. Percebido, logo reconstituído. Imagine você se eu realmente pudesse viver de sonhos...a realidade é que a magia não está em adorar o ventilador. Estou sentado aqui olhando para o teto por não ter muita escolha. Eu não quero te assistir ir. Mesmo não tirando os olhos, não quero voltar toda a minha atenção e força para isso.Tenho medo que desta vez, você consiga virar a esquina.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Um Mundo Só de Cores.

O ruído da madeira deslizando pelo mármore ficará, para sempre, como um velho rádio esquecido ligado ao longo das minhas lembranças. Para todas as lembranças ligadas a ela.
Acho que a falta nos deixa ainda mais egocêntricos, e dá a ilusão de sermos capazes de remontar o passado; de tornar toda impressão positiva; transformar tudo em beleza.
Muitas vezes esqueço que ter beleza nem sempre significa ser belo. A beleza é uma capa que, de antemão, colocamos para não ter que ver o que há por baixo.
Digo, isto se houver algo por baixo...
Se eu tivesse que apontar uma cor, seria azul.
Tudo, agora, é azul.
A morte é azul.
E a sua chegada não envolve escândalos, óculos escuros, nem mãos dadas debaixo de guarda-chuvas. Ninguém se veste de preto. Ninguém passa meses sem conseguir levantar da cama. Ninguém arranha a pele de tanto colher choro.
A morte acontece, e depois some.
Ela não é uma ruptura no tempo. Ela é uma exclamação. Um choque. Mas depois as frases continuam.
O que fica é a ausência. É o armário de roupas a ser desmembrado. As fotos a serem revistas. Algumas coisas a serem encontradas.
Fica uma busca por aquilo que nem se sabia perdido.
A falta!
A dor?
Sobre a dor, não sei nem qual o uso dessa palavra.
Porque não é bem uma dor.
É algo que coça, mas não exatamente machuca. É algo que existe quase que paralelo ao resto. E permanece assim, te assistindo de longe.
Alguma coisa que se esconde. Que faz os olhos lacrimejarem. Que faz bater uma saudade...
Não é por ser saudade que precisa ser triste.
Não é por ter envolvido tristeza que será assim para sempre.
Não quero abaixar a cabeça, nem perguntar o que há de errado com o mundo.
Está tudo certo.
Mas por que comigo?
Por que agora?
Perguntei, repeti, mas nem quero saber a resposta.
Eu nem queria ter perguntado.
Mas é que escutei tantas vezes erguerem a voz com coisas do tipo...
Por que, meu Deus?!
Que egoísta, imagine, se eu quisesse que algo assim acontecesse com um outro.
Eu gosto das coisas assim, azuis. Das coisas tão claras! Das coisas pequenas parecendo ainda mais bobas. De ser capaz de separar a bobeira das coisas...
Eu gosto da saudade que me faz pegar o telefone e lembrar que já não tem mais número...
Antes eu precisaria pegar o carro, enfrentar o trânsito, driblar a recepção, subir quatro lances de escada, adentrar um corredor de salas até descobrir qual a certa, para trocar duas palavras apressadas, e partir.
Agora que tudo é azul, sereno, eu só caminho contigo.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O começo do fim das coisas.

Um dia tudo foi pó. Um dia tudo foi nada. Um dia o dia foi mais do que "um". Um dia alguma coisa algo foi. E dias depois, já não era mais. E foi embora.
Eu tenho essa obsessão pela transformação das coisas. Pelos processos radicais e instantâneos, mais do que pelos graduais. Começou quando, pequena, descobri que a borboleta era, antes, uma simples lagarta. Quando meu pai veio me dizer que as coisas haviam mudado e ele já não amava minha mãe. Quando mamãe parou de cozinhar e assobiar pelas manhãs afora, e começou a acordar mais tarde, pedir para que alguém ficasse comigo durante à noite.
"A essência fica: as pessoas nunca mudam". Será? Se não mudam, será que evoluem? Ou regridem? Pensando bem, talvez haja sim uma essência, "o que permanece sempre o mesmo", como uma forma de olhar para trás e dizer que valeu à pena. Ou olhar para trás e ter vontade de voltar no tempo. De qualquer forma, tudo se transforma. Tudo se encaixa e, sem que se espere, se solta.
Somos pontas de iceberg flutuando neste oceano-mundo.
Nenhuma palavra acompanha mais um homem durante a vida do que "mudança". Dá arrepios na coluna, mas também traz esperança. Mudança em nós e no mundo.
Imagine, imagine só se o mundo se adaptasse a tudo que se move do lado de dentro. Se ele se encaixasse para dar um abraço em dias de dor. Ou de confusão.
As coisas que quero contar, não têm ordem cronológica. Ou ordem alguma. As palavras vêm em forma de um desabafo, daqueles que só fazemos debaixo do chuveiro.
A primeira mulher que foi capaz de me amar, foi uma das únicas que eu nunca consegui enxergar como mulher. Tinha mais o aspecto santo. De um ser especial. Capaz de estender as mãos para um afago ou um tapa. De me colocar confortavelmente entre os braços quando mais me precisava longe. De perdoar e compreender o meu choro, mesmo que eu sofresse e não fosse por ela.
Sobre uma outra mulher, da qual necessito falar, relembrar dos fatos, e recordar o cheiro, não há nada de glorioso. Absolutamente nada de transcendental. Houve somente uma força, que surgiu sei lá porque, vinda de sei lá onde, para fazer sempre com que eu me arrastasse à sombra dela.
Ela eu amei como se não houvesse amanhã. Com medo do dia seguinte. De que ela se cansasse e fizesse as malas. Vivia a me dizer que não, se enrolar toda pela cama, e repetir que nunca quereria nada mais do que tínhamos.
"Não preciso de nada além disso".
O que era isso? Ela saía e eu ficava sem fome, sem forças, sem vontade de me mexer, rabugento no escritório escuro contando os segundos até cair sobre à escrivaninha um sono incômodo e derrubar a garrafa térmica de café a cada possibilidade de que o barulho no corredor fosse um passo dela.
As sombras encobrem as particularidades das coisas.
E as coisas, como eu já disse - sem precisar dizer -, se transformam. Enquanto com ela, me esqueci um pouco de como mudanças muito me fascinavam.
Quando ela decidiu que isso não era mais o suficiente, e pegou um avião para bem longe, eu comecei a repudiar a capacidade de transformação das coisas.
Eu passei a repudiar praticamente tudo.
Foi uma daquelas mudanças explosivas. Súbitas. Ao menos, pareceu aos meus olhos atentos.
Não tenho mais nada a falar. Nenhuma lição que possa servir para alguém.
Eu mesmo não sei quando foi que se deu o começo do fim das coisas.
Eu só sei que uma hora, todas elas mudam. E, mais importante, todas terminam.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Rabisco.

Das fitas aos laços. Aos nós. Aos eus. Vocês. Aos ninguém.
Do amor à ausência.
Do sentido que levam as coisas.
Das coisas que são levadas embora.
Eu, que amava Maria. Que me amava também. Mas que me amando de um lado, também amava João, de um outro. Que a amava em resposta, mas que preferia jogar bola. E que numa pelada de Domingo, quebrou o joelho esquerdo e teve que operar. E então ficou de cama por três, quatro, meses, e mais uns dois anos sem jogar. Mas que nisso conheceu a Ana. Que lhe acendia mil vezes mais estrelas que Maria. Que logo depois abortou do Lucas. Que ninguém sabe como surgiu na história. Mas que depois foi preso por tráfico de drogas e o mundo quase todo ficou sabendo que existia.
O que importa, enfim, é que houve muito amor. Amor sendo atirado por todos os lados. Rebatido ou acolhido entre os braços. E algumas mágoas, um monte de brigas. Centenas de promessas que permaneceram sendo só o que se espera: mudanças de planos.
Nisso da vida ser justamente aquilo do qual ninguém nunca sabe, as coisas tão certas logo se revelam em rumos completamente inesperados.
Nos conhecemos agora. Nos amamos logo depois. Amor à primeira vista não foi, mas teve sim algo de estranho. Uma coceirinha na barriga, risadas longas demais. Ficaríamos juntos para sempre. Mas, dez anos depois, estávamos nos deitando para dormir com pessoas que surgiram neste caminho, de repente. Pessoas alheias, que nunca sequer teríamos imaginado. O oposto do que éramos um para o outro. Mas pessoas que nos abraçaram, e nos ninaram, e que tomaram conta das juras e dos lugares.
Eu padeço de saudades quando percebo a gravidade da sua ausência.
Quando lembro das suas mãos, dos seus abraços, verbos, sonhos, olhos.
Minimamente morro quando me ocorrem lembranças de seus versos.
Ao perceber que você se foi, é que se dá a real partida. Dez anos depois, é quando eu, finalmente, a sinto, e me despedaço.
Ainda assim, amei outras. Mesmo assim, amo agora. Como se pela primeira vez. Amor infantil, em alguns momentos, nitidamente doentio. Juras de eternidade. Mas acredito que desta vez dê certo. Eu te imagino a pôr a mesa e vestir as crianças. Pergunto se não faria melhor do que ela faz por aqui. Não, não...
As coisas que devem ser, simplesmente são.


segunda-feira, 16 de julho de 2012

O Retornar Tardio.

Estive ausente, mas não faltou vontade. É que surgiram calos, e por vaidade resolvi poupar meus dedos das canetas, lápis, teclas, e todos os outros instrumentos do tipo. Por vaidade, também, prolonguei o "descanso" e deixei que sentisse minha falta. Que sentisse tanta, mas tanta, falta minha, que depois eu pudesse vir até aqui e dizer: segure as águas, voltei. E isto então fosse possível. Segure-as então. Sem choro, sem violência, sem rancor algum. É assim que precisa se realizar nosso reencontro. Muita calma. Pois é da ausência que nascem os sentimentos mais sinceros. É na falta que os sentimentos se tornam menos dependentes uns dos outros e, assim: mais claros.  Ao contrário do que pensam, a reclusão não me causou náuseas, e nem arrepios. Houve sim muita melancolia. Muitas noites de insônia, e algum descontrole. É que eu tenho sim esse espírito de poeta. Essa vontade de ser livre, de ser dispensado das explicações. Eu não trouxe muita coisa comigo. Só a vontade de fazer desta, uma carta única.
Boa tarde - é, normalmente, o horário em que os carteiros passam por aí, correto? Como vai? Melhorou das dores de cabeça? Enjoou de tanto comer doce? De tanto se sentir insatisfeita consigo mesma? Tomou coragem e procurou ajuda? Foi de algum uso? Diminuiu o número de cigarros? Sentiu falta de acabar escondida com meus maços? Melhor que tudo isso, sentiu minha falta?
Tem uma coisa que eu nunca te disse. Uma coisa que eu sempre soube, mas que meu egoísmo camuflou nas noites em que nos debulhávamos entre taças de vinho e fados. O problema não era você, nunca foi. Nem eu. Quem era eu? Além de um corpo certamente disponível para estar, sem dúvidas, completamente nu ao seu lado na cama? Eu era a certeza de que você nunca precisaria cair no sono sozinha, a menos que desejasse isso. Voltando, o que eu nunca te disse, é uma das coisas mais básicas para uma sobrevivência, pelo menos, justa. Você não precisava comprar Merlot, se preferia Pinot Noir, só porque eu não gostava de Merlot. Antes de tudo, você não precisava tomar vinho só porque eu não suportava cerveja. Você deveria ter me dito, de primeira, que tudo o que havia na geladeira era cerveja, e se eu não estivesse satisfeito com isso, que eu fosse buscar um vinho. E caso você mesma trouxesse um vinho, por espontânea vontade, e este não fosse da uva que prefiro, me fizesse bebê-lo assim mesmo, sem frescuras. E ainda me humilhasse o suficiente para que eu achasse este vinho o melhor do mundo. E, eventualmente, eu acharia. Porque o humano é o ser da adaptação. E você nunca deveria ter se deixado anular tanto só para me deixar satisfeito. Que eu aprendesse a me satisfazer só por estar vivo. Só por estar na presença de alguém que me queria satisfeito - mesmo que em meios práticos, não tenha conseguido. Que fique mais do que claro o conselho que te escondi por todos esses anos, só por idealizá-la meu amor e minha "súdita": ser prioridade na sua própria vida. Mas claro, nunca deixe de ajudar os outros. Contanto, obviamente, que ajudá-los não te atrapalhe consideravelmente.
Deve estar pensando que o tempo ocioso me proporcionou a leitura de auto-ajuda. Já antecipo que não toquei em nada disso. Cabeça vazia é oficina do coração. E por isso voa e alcança planos tão altos que, às vezes, perdemos totalmente a lucidez.
A culpa não foi sua. Eu precisei ir, e fui. Mas te acompanhei de longe. Eu te vi perder o rumo, mas correr atrás. Se tem algo que eu quero pedir, é para que não se destrua, ou descabele, por ninguém não. Dê sempre um jeito de encontrar a calma, ou alguma forma de paz.
Quem veio primeiro, o amor ou o medo?
Não custa fingir que tudo tem resposta, para reduzir a ansiedade que dá só em estar vivo.
Sendo amor, ou medo, sendo um primeiro, o outro segundo, ou os dois de uma vez, eles sempre encontram a saudade. Já viu isso? O amor dá saudade até mesmo na presença. O medo dá medo até da saudade - medo de que ela só se sinta na ausência.
Melhor diminuir logo as luzes e aceitar que já é noite. De alguma forma estas palavras chegarão a você, e de alguma forma você as receberá. Com susto ou felicidade. Com qualquer outra coisa que não me ocorra agora.
Só vim para dizer que nunca fui.
Só vim para mostrar que estive aqui.
Será se ainda se lembra?
Será se percebeu?
Que continue sendo belo.
Eterno.
Que tenha sido amor.
Que nunca tenha medo.
Que não perca esta pureza.
A pureza do amor prematuro - que nasce antes do tempo certo.
A pureza do amor prematuro - que nasce antes do tempo certo. E que, às vezes, sobrevive.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Roda Gigante.

Quantos conselhos podem nos dar? Quantas maneiras de seguir em frente? E quantas distrações para não olhar para trás? Nunca, em hipótese alguma, olhar para trás. Vai, segue, tome aqui seus sapatos, suas camisetas que estavam para lavar. O resto? Deixe ele ali. As coisas se reconstroem de dentro para fora. E assim se tornam firmes - até fraquejarem outra vez. Leve somente o necessário, se quiser eu te ajudo, te empresto o carro, carrego a mochila. Mas a dor é toda contigo. Você quem aguente. Posso te ajudar a virar uma garrafa, duas, ou quantas mais forem necessárias, para que passe. Até o dia seguinte. Algumas coisas custam a passar, mas passam. Demoram, mas parecem nem ter existido. O mundo é muito grande, e se precisar, eu corro ele todo contigo. Mas, esquece, não posso neste Domingo. Você vai ter que almoçar sozinho. E jantar também, aconteceu um imprevisto. Você vai ter que dormir e acordar sem mim, mas agora é só por uma semana, depois por três meses. É que recebi uma promoção na empresa. Você ainda pensa nela? Mas você não ligou, né? Aquela mulher não presta. Aquela mulher nunca prestou. Eu sabia! Eu sabia! Só fingia que tínhamos algumas coisas em comum. Eu queria te ver feliz. Mas ei, levanta esse ânimo. Mais tarde tem uma festa! E tem tanta mulher no mundo! De repente hoje você vai dormir com uma atriz de teatro! Dizem que elas são boas de cama! Ah, não me venha com esse papo de que não sabe mais paquerar! É claro que sabe! Você já quer ir embora? Mas eu trouxe a Gabriela para te conhecer, ela é amiga da Teresa, lembra dela? Já tem falei tanto...tem certeza que quer ir embora? Tá bom, então vamos, vou só me despedir. Ou, você pode ir na frente? Depois eu vou de táxi, é que elas insistiram muito. Tá bom, fica bem, amanhã eu te ligo. Eu sei que desapareci por meses a fio, mas é que eu e a Teresa nos demos tão bem que quando eu vi, eu não prestava atenção em mais nada além dela. Que saudades! Como você anda? Calma, depois você fala. Eu preciso te contar uma coisa: nós vamos nos casar! SIM! Vamos nos casar, daqui uma semana, em Lisboa! Eu esperava que você fosse...não, dinheiro não é um problema, estou aí pra isso, mas trate de fazer a barba, você está um trapo, e eu não posso admitir que vá assim à cerimônia. Como foi de viagem? Quero que você conheça a Teresa! Quero que você conheça uns amigos! Desculpe não ter te convidado para padrinho. Mas a Teresa achou que, pelo conflito de interesses, você não entrosaria bem com os amigos dela...um dia você vai encontrar alguém assim, você sabe, né? Eu acredito. Mesmo você tendo se permitido envelhecer tão precocemente. Mesmo tendo optado por uma vida mais calma, mas sem luxos. Mesmo tendo se tornado muito mais calado e misterioso. Um dia a mulher da sua vida vai aparecer. E eu vou estar esperando contigo no altar. Essa é sua esposa? Como assim você casou? Como assim você casou com uma mulher que nem essa? Ela é muito bonita para você! Digo, muito nova. Mas ela sabe dos seus problemas com álcool e de sua mania de depressão? E te ama mesmo assim? Nossa, nem parece que já me casei há oito anos...parecem oitenta. Mas as coisas estão bem. Digo, estão mais ou menos. Ela tem outro. E eu não sei o que fazer.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Compostos.

O barulho da furadeira me agoniava em formas e graus que eu não poderia descrever. Ele sempre aparecia com a intenção de consertar algo. Fosse a porta emperrada do armário, um quadro a ser pendurado, os fios soltos na sala, a lâmpada queimada, a lâmpada prestes a queimar. Ele sentia a necessidade de agir e, principalmente, de interferir naquele espaço. Era como se ficasse livre da ausência quando ocupado com uma tarefa qualquer. Como se sua cabeça se esvaziasse, retomando o prazer nos movimentos involuntários do coração. Suas visitas só nunca aconteciam nas manhãs de Domingo, quando pegava dois ônibus e caminhava uma distância de mais ou menos três quilômetros até a Catedral para assistir a missa. Saía de casa às cinco, e de vez em quando eu o encontrava quando estava voltando da rua. A paisagem toda coberta de névoa e as luzes quase todas apagadas, mas ele de pé, com um frágil rosário azul nas mãos, abrindo e fechando o portão com todo o cuidado. O portão servia de entrada para as duas casas. A primeira, agora só dele. A segunda, agora minha - pelo quinto ano de aluguel - e antigo ateliê de sua esposa. Era encostada nessa parede que ela descansava depois de costurar a manhã inteira - ele se orgulhava em recolocá-la ali com suas lembranças. Mas aos Domingos, especialmente pelas manhãs, ele se vestia de preto. Mesmo que não fosse a cor real de suas roupas. Ele simplesmente se enchia, como a madrugada, de névoa, e se recolhia, com sua tristeza, para dentro de casa. De onde raramente saía, esperando pela Segunda-feira. De onde sequer um ruído se ouvia durante o dia inteiro. O barulho da furadeira, e o de seus passos tímidos e cansados, formavam uma sinfonia de incômodos em mim. Sei lá se despertavam uma vontade fazer algo quando, justamente, nada poderia ser feito. Eu podia me sentar com ele para assistir o movimento da rua, e trocar uma ou duas opiniões sobre a vizinhança, poderia chamá-lo para provar da sopa, para escutar um disco, trocar um abraço na véspera do Natal, e eram coisas que eu fazia, mas não com a intenção de aliviar algo nele, ou de tentar distraí-lo. Eu apenas fazia porque estávamos os dois ali, sós. Eu confesso, recebia muitas visitas. Mas continuava estando sozinha ali a maior parte do tempo. E por mais que houvesse um pequeno espaço entre as paredes de nossas casas, estávamos tristes, ou alegres, ou nostálgicos, ou irritados, ou em outro mundo, lado a lado. Nada nunca foi dito à respeito. Nem sobre o pão fresco que ele oferecia em algumas manhãs, nem sobre as vezes em que precisei socorrê-lo ou somente quis abraçá-lo por estar, mesmo que do jeito dele, sempre ali. Existem laços inesperados, quase imediatos, e imprescindíveis. No dia em que foi internado, eu pensei que, enfim, poderia ler um livro sabendo que não me assustaria tão cedo com o barulho da furadeira em ação, ou do martelo, ou do cortador de grama. Nos dias seguintes a agonia foi a maior até então. Todos os dias pareciam Domingos e nenhum ruído se projetava em volta. Somente o barulho dos carros na rua e das vozes que passavam aceleradas. Eu voltava da rua, e ele não estava ali, andando de um lado para o outro como quem não quisesse nada. Tentando disfarçar a sua forma tão particular de se importar com alguém cujas ligações fugiam do óbvio. Não era um sangue em comum, nem idade, nem carreira, nem nada que pudesse ser tão facilmente compreendido. Era por ser aquilo o que estava acostumado a fazer: se importar com os outros. Quando foi embora de vez, os espaços pareciam cada vez maiores, e as flores do jardim foram todas, aos poucos, morrendo. Nunca me senti tão só. Mesmo quando chegaram novas pessoas para habitar a casa, a solidão nunca pareceu tão brutal. Lembro de quando ele quis que eu gravasse informações sobre cada flor. Pouco antes de ir para no hospital. Eu não quis escutar. Estava apressada para qualquer compromisso vazio. Sentada, perto da janela, posso ver o que sobrou das flores, o que restou da horta. Do que é feito um jardim? Do que é feita a solidão?

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Quase Dia 15.

De repente um vazio. Não é assim que esperamos encontrar o começo de uma grande história. Não é do vazio que surgem heróis, e nem é para lá que vão quando as forças se esgotam. As forças não devem se esgotar nunca. Nem dos não-heróis, principalmente dos Zés Ninguém. É preciso ter força para encontrar os motivos que nos façam levantar todas as manhãs, enxaguar os rostos e atravessar mais um dia. Por mais dolorosos, e quase insuportáveis, que dias possam ser. É preciso ter força, e disso ele não sabia. Ele nunca havia parado para pensar. Parado para pensar que aquelas pessoas alegres, seguras, de repente até efusivas, só sorriam porque se lembravam de fazer isso. Porque elas perceberam, bem antes, que a força precisa vir de dentro. Ainda que, às vezes, fingida, a vontade de sorrir tem que estar presente. De sorrir, mais do que a vontade de chorar, de fugir. O mundo só é bonito aos olhos de quem o vê assim. Ele vinha, desde seus primeiros anos, sendo uma pessoa declaradamente desesperada. Sentimentos em demasia fragilizam o homem. Fazem-nos questionar, inclusive, a necessidade da presença deste homem no mundo. Ninguém deve sentir-se humilhado. Ou permitir-se humilhar. Ninguém deve sentir-se menor na presença de quem quer que seja. Humanos, antes e acima de tudo. Altruísmos e generosidades à parte. O eu precisa vir primeiro. Ele precisava vir primeiro para si. Até porque doses comedidas de egoísmo fazem bem para os músculos, fortalecem a lombar, seguram mais no alto a cabeça que tende em cair. Livrai-nos de nós mesmos! Ele acusava e apontava a podridão que via no mundo. Que só ele via. Que só ele parecia ver. De vez em quando, a solidão e o sentimento de estranheza para com o mundo, até diminuía na presença de alguém que, curiosamente, viesse a estimular elocubrações e debates a respeito das injustiças tão presentes por aí. Mas se você está bem, faz parecer que o resto todo está também. Não, não seria preciso se enganar. Reparar sim, e profundamente, em todas as dores e sofrimentos que cercam nossas próprias áreas de conforto. Mas perceber que aquele amor descabido e, por consequência, acabado, não representa o fim do mundo. Fim de mundo algum. Era disso que ele sofria. Da maximização de suas dores, dores que não percebia como minúsculas. Desamparado, desestimulado, planejando formas indolores de partir. Indolores pois não tinha uma vontade real de morrer. E sim pequenos espasmos, que seus psiquiatras apontariam como surtos. Pensava no que poderia perder se tomasse a iniciativa e o ato final: sua carreira poderia, de repente, alavancar, seu bilhete poderia ser, desta vez, o premiado, seu índice de massa corporal poderia até diminuir se cortasse de vez a cerveja. Não conseguia se desfazer das noites rasgadas no boteco da esquina. Dos planos e fortunas divididos com outros seres tão sozinhos e fracos. Quero tanto sorrir sem precisar de grandes motivos - foi seu pensamento mais sincero. Foi sua vontade maior de mandar todos à merda. Os pais que julgavam sua capacidade de fazer algo de importante ou original. A mocinha com as unhas pintadas de preto, pela qual esvaziou metade do armário e deixou a barba crescer, e que decidiu ir para cama com um de seus melhores amigos, e com ele ter quatro filhos. A doceira que lhe deixou um par de chifres. A coroa que lhe arrancou a juventude para depois abandoná-lo sem nada, em outro continente. Tinha gente passando fome no mundo, e ele reclamando do aumento no preço do cigarro. Setenta e cinco centavos a mais que ele ainda poderia pagar. Que ele continuaria podendo pagar, sobrando dinheiro na conta, sobrando saúde. Sem grandes desgraças. Ele tinha motivos para sorrir só de estar vivo. E saiu vivendo-sorrindo portanto, e vivendo cada vez mais...


Força para sorrir. E que o resto venha...

terça-feira, 24 de abril de 2012

Descartar Rascunhos.

Estou tão fraco. Com tanta vontade de sumir daqui. Tão sem motivos para chorar, mas sem conseguir impedir os soluços. Tão vazio de sentimentos, e ainda assim, tão à flor da pele. Preciso tanto te mandar embora. Preciso mais ainda que você me deixe. Que não volte, desapareça. Eu não sei para onde eu fui, nem como me reencontrarei. Mas eu só peço que, por gentileza, você se vá. Não fantasie ou ritualize qualquer tipo de despedida. É desnecessário, e masoquista, dar atenção a algo que não vale mais à pena. Que passou, e só nos tirou do eixo. Sentirei sua falta: ou algo outro que cause uma qualquer-turbulência. Alguma coisa que não nada. Algo que me faça estender os braços e pedir aos céus por uma explicação. Foi-se o tempo. Principalmente o nosso. E, com ele, a vontade de ser mais e melhor. Eu, antes, percebia o desenho das nuvens, o orvalho, o canto dos pássaros. Antes eu escrevia sobre coisas belas, sobre as coisas todas. Nada me escapava. Eu ficava de pé e o mundo levantava para me aplaudir. Ou apostar qual seria o lugar mais adequado para uma cicatriz futura. Eu conseguia me colocar de pé independente do que se apoiasse em minhas costas, me puxasse pelos cabelos, segurasse meus pés. Eu sinto falta de mim! E não é de hoje. Até então não conseguia reagir. Perceber-me em falta comigo mesmo foi o que induziu este coma. Esta reclusão. Perceber-me não mais obstante a minha falta em vidas alheias, mas tão condizente com isto, que ausente, inclusive, comigo. Eu me satisfiz, por anos, em poder seguir atrás das migalhas que você deixava cair pelos seus próprios caminhos. Não quis, não tive - já não sei - maneiras de me conter. Acabei me tornando tão só que não me sentia mais à vontade na minha própria presença. Talhei meu corpo de acordo com suas lacunas. Concordei com suas ausências. Mutilei-me até aceitá-las completamente. Tantas vezes precisei explicar que, mesmo a ciência dos fatos, não bastava para me impulsionar a sair disto. Digo, daquilo. Chega um momento em que, a menos que seja impedido, a pessoa já terá entrado tanto em sua vida, que a vida que era sua, passa a ser totalmente dela. E aí você está fodido, mais do que nunca, acabado. E a culpa é, justamente, de quem jurou te proteger de tudo para sempre. Você volta a ser menino, mas com as dores de gente grande. Que as pessoas se tornem menos egoístas, espero. Que qualquer coisa flua sem precisar prejudicar nenhuma outra. Quanto a mim: "Sou como um daqueles meninos que desmontam um despertador para saber o que é o tempo", e que desmontam um boneco para saber o que ele sente por dentro. Sei que nunca mais deixarei de ser-me. Que nunca mais me deixarei por preferir um outro. Que nenhum encontro será por acaso. E que nenhum amor verdadeiro será 'por enquanto'.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

O Exercício do Ser.

Existe alguma fórmula. Um segredo. Algo, alguma coisa que, mesmo mínima, colou meu desejo no seu. Alguma coisa oculta que rege nossos caminhos pelo mundo. Sabe, alguma coisa me mandou ir e eu fui. Aconteceu de precisar ser você, só você, e nada mais bastar. Foi à partir de então que as horas de sono se alongarem até se tornarem insuportáveis. Contava os milésimos de segundo para que, de repente, nos esbarrássemos por aí. Os discursos todos parecem se firmar nas mesmas coisas, reinventar maneiras de falar sobre os mesmos assuntos. Sofremos todos das mesmas dores. Mas você achará estranho se, um dia, isso for parar em suas mãos. Mais ainda partindo das minhas. Você achará tão estranho que, talvez, por isso, não entenda. Vou tentar não te assustar, não mencionarei seu nome, muito menos o meu. Vou tentar universalizar todos os fatos e sentimentos. Na verdade, como eu disse, a única coisa que muda é a minha forma de dizer como caminhei e vim parar aqui, onde, eventualmente, se encontram todos. Tudo o que eu quero que esteja, aqui, escrito, estará. Não posso datar a primeira vez que me senti diminuto em sua presença. Nem quantos dias levei para compreender o que tanto se mexia por dentro. Mas tudo bem, os fatos amorosos são atemporais e circulares. Houve, no primeiro instante, um barulhinho, algo discreto do lado de dentro e, instantaneamente, eu já te quis bem. Aquele quer bem que não precisa ser querido também. Sonhei contigo por noites seguidas. Você se apresentava com uma voz grave, não precisava de apoio, nem de companhia. Descobri, depois, que não era realmente sua, era uma projeção do que eu queria que existisse em você. Eu te desejei, primeiro, em carne. Da maneira tentadora que era. E que me fazia acordar absorto em excessos próprios. Se algumas coisas pudessem ser vistas com um olho próprio e um olho de outro, talvez o peso sobre os ombros de cada um de nós, diminuísse. Olhos arregalados, dedos finos, lábios eternos. Você é bem assim. Com seus passos largos povoando todos os lugares do mundo. Não há maneira de te olhar e não se deixar ser arrastado.


Acontecemos, afinal. Um motivo a mais para acordar com dor de cabeça, mas com um sorriso mais firme no rosto. O gosto indesejável do álcool fazendo qualquer cheiro parecer esgoto. Acontecemos, afinal, mais uma sequência de vezes. Eu te querendo tanto e você querendo entender de onde vinham aqueles zumbidos matinais na cabeça. Eu querendo que me quisesse ao menos um pouco e você preocupada em escolher um sapato novo. Um sabor de picolé. Uma música que combinasse com o fim de tarde. Eu querendo que você me escolhesse, e você querendo nada. Às vezes querendo até um pouco, um pouco de carinho, um abraço, saber-se querida, para depois ir embora.


Se me amou, se perdeu no caminho. Amor daquele tipo torto. Que a gente diz que existe, mas não tem certeza. Se houve amor, o perdeu no caminho.


Se não fossem as fotos, talvez agora já estivéssemos nos esquecido de como se encaixavam os dedos. De como se encontravam os olhares - apesar das mil e outras pupilas quase completamente dilatadas vagando por aí. Se não fossem as fotos, talvez nada mais nos lembrasse de nós. Do que costumávamos ser e que foi preciso que deixássemos ir. Não vai ser fácil, você repetiu, sem a menor vontade de se levantar e ser a primeira a ir embora. Mas em nada mais cabíamos. Apesar de todas as tentativas frustradas de bater na porta, tocar a campainha, socar até incharem os punhos, nunca fomos nada senão a vontade de ser alguma coisa.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Ganância.

Cheiro de carne morta. Cheiro de carne nova. Acima de tudo, o cheiro. Ela já não tem mais o mesmo. Mudou de perfume, e com isso, foi revelando que sua pele, na ausência dele, liberava odores inesperados, muito mais tímidos, quase imperceptíveis. Parou de frequentar os lugares dos quais já era quase um ponto fixo. Voltou a caminhar olhando para os pés. Entreolhando, às vezes, para os lados. Só para garantir. Só para ter a garantia de que não estava sozinha. Mesmo querendo, silenciosamente, estar. Entendida de que o mundo era muito mais complexo do que simplesmente "perigoso". O cheiro dela, o cheiro-tão-dela que nunca seria de mais ninguém, fazia falta quando descia a noite. O cheiro dela entornando garrafas, esvaziando corredores, impregnando golas e travesseiros, participando ferozmente do curso das coisas. Ela, quase sempre, era lembrada por aquela essência, encantadora e desafiante. Parecia que as vidas se moldavam em torno do que era ela. Cheiro de pele, de carne, de suor, de sangue, de saudade, de falta. Cheiro de nada. Não sendo nada, não era pouca coisa. O mundo mudava de cor, e amor nenhum era perfeito ou eterno. Amor nenhum poderia chamar-se apenas por isso. Nunca é só amor. É sempre uma coisa a mais que conecta os sentidos e nos torna ora reféns, ora testemunhas, ora responsáveis por aquilo tudo. As relações de causa e efeito. As calças abaixadas e os seios insinuantes dela. Nunca é só amor. Quase sempre é amor e medo. Amor e covardia. Amor e carência, necessidade, egoísmo. Amor por amor não é sequer capaz de levantar da cama, amarrar os cadarços, desafiar o mundo. Frequentemente é amor e o medo de que ele nos faça acabar sozinhos. Para onde vão os sentimentos quando morrem? Quando morrem antes mesmo da gente - mesmo que tenhamos garantido uma vida inteira juntos? Eles vão para o céu? Condensam? Evaporam? Depois se derramam em forma de chuva? Caem dos céus aos olhos? É tanto esforço para tentar ser importante na vida de alguém. Mas tudo muda, e o lugar das pessoas na vida das outras também. Não seria isto a permanecer o mesmo. Não seríamos nós a permanecer insanos. O "estar bem" é dinâmico e, por isso, nos dividimos entre tantas pessoas, em tempos diferentes - ou até ao mesmo tempo. Querer permanecer o único e o mesmo é correr atrás do impossível. Nada está imune às mudanças. Pois o mundo está girando e estamos todos indo com ele. A gente sabe que vai acabar, mas nem por isso deixa de insistir. Seguro forte a sua mão, segurei forte a mão dela. A gente sabe o que já acabou, as lembranças remanescentes. O cheiro do que já morreu, capaz de prever, pelo olfato, o que está por vir. Padecer de amor é a forma mais inconsequente de entregar-se a vida. E mesmo conscientes disso, repetiremos quantas vezes for preciso.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Você Tem Medo de Quê?

Eu ando estas não-esquinas e elas continuam as mesmas. Eu continuo o mesmo. A dinâmica das coisas é a única coisa que mudou. Única e suficiente. Tão suficiente que até exagerada. A adega não é mais a mesma. A padaria mudou de dono. O boteco virou Igreja do Sétimo Dia. E a gente aqui - a gente daqui - agora morre de medo. Ninguém mais morre de outra coisa. Nem ataque cardíaco, nem velhice, nem atropelamento. Aqui gente só morre se for de medo. Morre de tanto ter do que desconfiar. Dói dos pés ao pescoço - os pés que aceleram para chegar mais rápido e se trancar loguinho em casa, o pescoço de tanto olhar de um lado para o outro. A dor de ouvido também é frequente, porque ninguém ousa perder sequer um agudo, muito menos um grave. A gente morre a cada dia, a qualquer suspeita de tudo.
A gente quer dinheiro,
mas tem medo de acabar.
A gente quer respeito,
mas tem medo de perder.
A gente quer calma,
mas tem medo da próxima tempestade.
A gente quer viver,
mas tem medo até disso.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Sobre o Amor.

O relógio de pulso tiquetaqueava, mas não tiquetaqueava como tiquetaqueteiam normalmente os relógios todos. Naquele dia, naquele específico dia, o céu parecia mais claro. Ao mesmo tempo que estava mais escuro, sombrio. O céu parecia um outro. Pareciam tê-lo virado do avesso, como se fazem com colchões de tempos em tempos. Aquele lado do céu, parece, eu ainda não tinha visto. Tinha umas manchas de xixi ali, uns gozos por lá. Parecia que muita gente tinha sido feliz daquele lado. Parecia que muita gente tinha aproveitado, deitado, se deleitado por lá. O vento também não parecia o mesmo, batia leve no rosto, empurrava os fios de cabelo para o horizonte. Eu me sentia sendo empurrado para trás, mas a vontade é de cada vez esticar mais o pescoço para ver se o que vinha pela frente chegava mais rápido. A grama estava bem verde, o trânsito fluindo bem. A temperatura era de em média alguma coisa fresca com pancadas de calor infernal. Quando chegou a noite, choveu. Mas eu não reparei por quanto tempo. Eu só queria representar tudo aquilo que havia visto. Chegar e dizer que viraram o céu e que, talvez, o lado que antes era nosso, talvez agora fosse de outros. Eu só queria escutar as pessoas me dizendo que eu devia pegar leve com o pó, não misturar tanto com whisky, e beber muita água. Eu estava magro ossudo esquelético e todo mundo punha a culpa na cocaína. Todo mundo culpava a coitada por eu nunca mais ter desejado um prato quentinho de macarrão, ou umas pernas gélidas na madrugada. A verdade é que eu só não andava afim de comer nada, nem ninguém. E o mais hardcore de tudo que eu consumia eram umas cápsulas de maracujá concentrado - existem noites em que dormir é o que há de mais trabalhoso. Naquele dia eu quis ter alguém querido me esperando em casa, com uma xícara de chá quente, hmmm, um chá de canela, um abraço apertado. Aquele dia causou umas cólicas existenciais em mim. Eu senti muita falta do corpo dela suando no lençol. Mas quem era ela? Quem era eu, afinal? Senão só mais um, mais um sendo mais um no mundo. Essas coisas solitárias, etc e tal. Eu senti falta da felicidade dela fazendo feliz a minha tristeza. Sei lá, dela toda, sentada à mesa só de lingerie, na ponta dos pés atravessando o quintal. Eu senti tanta falta dela que, nisso, acabei por sentir falta de mim. O ventilador ligado, o barulho das paredes rachando cada vez mais pelas infiltrações. A gente costumava ficar tão doidão, atingir esferas tão altas, que dava pra escutar até as vozes pelas paredes. E eram vozes dos tijolos mesmo, do rejunte, da tinta. Todas as vozes que participaram do processo inteiro até que tudo aquilo existisse. Se a gente não quiser ser feliz, a gente vai querer o que? Só me ocorre, então, o sorriso dela, os dentes amarelados, o cheiro de cigarro, mas a beleza: que despencava sobre mim. Por que você não escreve sobre a gente? Por que você nunca fala sobre mim? O problema é com o meu nariz? Sei lá que cisma tinha com seu nariz, mas insistia que eu dissesse que ela estava em tudo, tudo, absolutamente tudo, que eu fazia, pensava ou realizava. Queria saber, com todas as letras, que existia e me atravessava, e me completava, sem nem desejar o mesmo para si. Uma coisa é falar do amor, outra coisa é se confessar apaixonado. Acabava por fazer os dois. Teorizar, argumentar, dizer tudo aquilo que já havia sido dito, reafirmar, reinventar uma forma de dizer "ou, licença, eu preciso de você". Inventar maneiras de trazer o mundo cada vez para mais perto. Sem desculpas para nenhum de nós se cansar ou ir embora. Do que o amor nos faz padecer? De verdade, se em alguns momentos, já não basta mais a carne, já não bastam as palavras, os corpos nus, se transcende e ultrapassa o desejo, o querer bem. Se de repente é encanto, em outro momento à primeira vista, se depois se tornar uma conquista sem fim, um reconquistar, um administrar e dividir as contas. O que é o amor? A gente morre e nasce dele? Como isso acontece? Como o amor pode ser um modo de nos perdemos e nos reencontrarmos de outra maneira? Ser um tudo numa coisa só e, ao mesmo tempo, nada? Naquele dia eu quase bati o carro, e quase fui parar na porta da casa dela. Queria espiar, ver se as luzes estavam acesas. Naquele dia, diferente dos outros, as horas não pareciam eternas, e as coisas todas pareciam estar só de passagem. A ordem - se havia uma - parecia desfeita. Eu, mais uma vez, parecia ser só eu. Um indivíduo qualquer. Dono e mestre de coisa alguma. Mas por algum motivo, para mim, as nuvens pareciam, naquele dia, especialmente mais bonitas.

segunda-feira, 26 de março de 2012

O Que Foi?

Lembra de quando a gente disse que as coisas todas acontecem por um motivo?
Daquela maneira doce, quase ingênua, de questionar coisas, mas afirmando, para não ter que escutar a resposta...
Lembra, você se sentou na grama, eu reclamei da umidade da terra, e você riu dizendo que as coisas ruins é que são realmente as boas...
Eram tempos em que as coisas pareciam verdadeiramente boas. Mesmo quando tudo parecia errado: eram tempos em que a gente não fazia muita questão de olhar para fora.
Foi de tanto espiar pela janela, você disse, que encontrei você.
Ainda bem que encontrei você - uma exclamação tímida.
Você apontava bem em direção ao peito, e dizia que há tempos era só vazio. Que há tempos era só vazio e que não entendia como eu poderia ser capaz de fazer tudo aquilo em você. Tudo aquilo que eu não sabia o quê.
Que você não sabia explicar.
Que nem eu e você sabíamos. De onde vinha, como agia, o que causaria...
Lembra, naqueles tempos eu ainda escrevia poemas, fazia natação, e meus cabelos quase alcançavam a cintura.
Lembra?
Eu lembro que escrevi assim:
Se acordasse um dia sem pássaros cantando, eu aprenderia a assobiar só para amanhecer contigo.
As coisas todas pareciam desvendadas,
pareciam caber em nossas mãos.
Pareciam pertencer a nós.
Parecíamos pertencer um ao outro.
A gente acreditava mais na imutabilidade das coisas.
Ou só tentávamos nos enganar.
Porque não sabíamos o que fazíamos ali.
Se hoje, você viesse me perguntar:
aquilo lá, foi mesmo amor?
- Não sei, mas, às vezes, coça, então, o que quer que tenha sido, ainda é, nunca cicatrizou.

terça-feira, 20 de março de 2012

Ausência.

Eu não te vi todas as vezes que gravei na minha cabeça. Eu te reinventei de diversas maneiras. Vivo nesta possibilidade de te recriar. De te dar a vida que eu quiser. De te dar voz e, então, palavras. De tirá-las de vez em quando.
Seus olhos me ocorrem durante o ir-e-vir de corpos que não se amam. Que quase se aceitam. Que se toleram e, por isso, se entregam.
As pernas dela sempre parecerão tortas comparadas as suas.
Não foi por querer que eu te quis.
Foi um sentimento que me surgiu de repente.
Como se no momento em que te enxerguei, a vida toda tivesse se desfragmentado em coisas sem valor algum.
Como se a vida começasse ali...
Como se fosse a primeira vez e, com sorte, a última.
Seus lábios ficavam roxos demais no frio.
E eu preferia quando não usava batom.
Quando não usava salto.
Nem sutiã...
Eu te preferia, na verdade, nua. Descabelada. E já preferindo e desejando mais do que o permitido, adormecida ao meu lado.
Eu prefiro você dentre todas as outras.
As que existem e as que possam existir, um dia.
Eu te imagino a caminhar por lugares que admirei sozinho.
(Como se sua presença fosse inerente a minha).
Eu te dei vidas que, sozinha, você nunca teria.
Eu te fiz cantar.
Sem precisar, um dia, sequer ouvir sua voz.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Deusa Urbana.

"Com você eu tenho medo de me apaixonar,
eu tenho medo de não me apaixonar.
Tenho medo dele, tenho medo dela,
os dois juntos onde eu não podia entrar...
Com você eu tenho mesmo de me conformar.
Eu tenho mesmo de não me conformar.
Sexo heterodoxo, lapsos de desejo,
quando eu vejo o céu desaba sobre nós..."



Quantas vezes precisaria repetir que nossos corpos não encaixavam mais para, enfim, entender que a repetição não nos traria novas, e outra vez harmoniosas, formas? Tateando no escuro, encontraria ainda a velha cicatriz atrás da nuca - lembranças da criança inquieta que foi -, mas sequer o perfume seria o mesmo. Nem mesmo o seu cheiro! Depois desta observação, estaria cheio de raiva, inconsolável, porque você nunca mais seria a mesma. Nunca mais me observaria através daqueles olhos miúdos, dizendo calma, está tudo bem, hora ou outra toda inocência vai embora. O lençol sujo de sangue, alguns respingos na minha camisa e na sua calcinha. Por favor, meu Deus, não chore! Você segurava minhas lágrimas soltando as suas. Eu precisava ser forte, ser sempre o mais forte, era só isso que você pedia quando sentava em meu colo e se aninhava, com a cabeça em meu ombro. Agora eu te olhava e você não estava da mesma forma ali. Seu corpo se eriçava todo, e seu pensamento não estava mais em mim. Lembro, às vezes, do primeiro toque. Seu corpo todo se arrepiou, num susto, ao provocar meus dedos ásperos. E você falou tanto de medo. De não saber o que fazer, como fazer: e se eu acordar e você não estiver mais aqui? Com que cara me olharei no espelho? Você ficava tão menor quando procurava abrigo entre meus braços. Suas coxas, suas sardas, seus seios, sua ingenuidade em deixar-se ir ao entregar-se a mim. Somente a mim, você repetia, mordendo minha orelha e bagunçando meu cabelo. Apertava minha cabeça contra sua barriga e ia embora, para sonos e sonhos profundos. Acordava, de vez em quando, no meio da madrugada para somente abrir os olhos e assustar-se com minha permanência ali. Simulava um medo tão grande de que eu partisse. Flutuava, sabia que era assim, que sempre havia sido, e que só lhe faltava que abrissem uma das portas. Sabia que desfilava para o mundo, que não tinha laços tão estreitos com nada. O tempo foi passando arrastado para nós, até aquele momento em que meu amor começava a fazer feridas em sua pele. Que meus pêlos te davam alergia. Que você me empurrava para dormir mais confortavelmente. Eu via você rindo à toa e não era por mim. Eu imaginava ele subindo e descendo, com a mão na sua nunca, em cima da sua cicatriz, sentindo seu perfume novo, tirando seu vestido de marca, beijando seu quadril, agora mais largo. Você exibindo maior desenvoltura e dedicação, mordendo as orelhas dele como se fosse um dos seus costumes mais antigos. A sua prática em fazer alguém feliz sem esperar o mesmo. Eu via você passeando pelas ruas, com o pensamento nele. Ele indo para os bares, e se gabando de ter alguém como você. Que ainda dormia comigo, por sentir pena, do tempo que passou por mim tão rápido e que já começava a me deixar texturas no rosto. Você dormia abraçada com a ausência dele, do lado oposto da cama. Dele ou dela, quem sabe. Quem sabe até havia se engraçado com aquele seu casal de amigos que tinha vindo da França. Os dois tinham aquele discurso de amor livre, sem rédeas, sexo, idade, e tentaram me convencer da sinceridade disso depois de perguntar se eu era seu pai. Pai não, nunca, mas talvez criador, causa e culpado pelo rumos que te levaram, que você levou. A foto sua que eles me mostraram, bata branca e a alça do sutiã aparente, cara de quem temia o mundo, os braços cruzados, fechada para tudo. Uns seis meses depois, nua sob mim. Parecíamos ter sido esculpidos para estarmos daquela forma, você disse, envergonhada. Os anos se passaram e seus interesses atravessaram a porta de casa. Seu corpo adquiriu maior flexibilidade e então eu não pude mais acompanhá-la.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Me Arrependo.

"Eu não me arrependo de você,
cê não me devia maldizer assim...
Vi você crescer,
fiz você crescer,
vi cê me fazer crescer também.
Pra além de mim..."


Tem gente com medo de abelha, pensou, tentando justificar os motivos que levaram-na a sentir-se como sentia-se naquele momento - só, esquecida, castigada por uma força maior. Seu telefone não tocava, ou esboçava qualquer tipo de reação, há mais de dez dias. As únicas coisas que entravam no apartamento eram feixes de luz - permissivos demais - e acúmulos de poeira. Estava com medo de sorrir. Pela possibilidade de perder seus dentes em toda aquela bagunça. A solidão atrasa os limites da imaginação. Há tanto mundo na gente! Lembrou de uma frase dita por seu pai quando tentava acalmar seus ataques de pânico, suas fobias de gente. Não podia ligar para ele. Podava-se: não podia, sequer, pensar em pensar ligar para ele. Também não podia recorrer a sua mãe, que viajava despreocupadamente pelo interior do país. Se morresse, confabulava, só seria encontrada umas três semanas depois - isso com sorte. Que seria quando o síndico procuraria seus pais a respeito do atraso no pagamento do condomínio. Seu pai atenderia o telefone, e ao saber do motivo da ligação, bateria com os ombros, alegando não ter nada a ver com isso. Depois voltaria para sua poltrona, sua televisão de quarenta duas polegadas, e suas latas de cerveja. Numa propaganda de sabão em pó lembraria das roupas sujas que precisou lavar na casa da filha e que, por causa do tempo chuvoso, precisou deixar secando lá. Só então procuraria contatá-la. Obviamente, ela não atenderia. Três dias depois, dúzias de ligações não-retornadas, fariam com que ele caminhasse sete quarteirões até o apartamento. Depois de interfonar, e tocar a campainha, sem sucesso, tentaria abrir com a chave reserva que guardava. Havia esquecido de colocar junto ao molho com as tantas outras, e só percebera naquela situação. Arrombaria a porta, e lá estaria sua filha - a caçula entre quatro -, estirada, gélida, mortinha da silva. Mortinha da Silva! - exclamaria o zelador por todos os andares do prédio, nas semanas seguintes, contando sobre o acontecido. A imaginação desconhece seus próprios limites, por isso muitos acabam loucos sem nem saber o porquê. Concluiu, depois de criar, e quase encenar, sua própria morte. Eu estava pensando, viajando, comecei a acreditar nos meus pensamentos, e acabei acordando num corredor estreito, com dois usuários de heroína e um psicopata cheirando meu cabelo. Pensou que sua autobiografia ficaria suficientemente interessante se começada assim. Outra vez, mergulhava em si, alongando-se até tomar formas estranhas. Invadia espaços até então desconhecidos. Mas quem nunca planejou o próprio fim? Quem nunca acreditou ter pensado em algo único? Questionava, como se assim amenizasse sua imensidão disforme. Queria sentir-se normal, sabe? Sorrir como fazem por aí. Sem nem mesmo terem motivos reais. Apenas sorrir porque existem os dentes, existem os lábios, existe a boca, e está tudo disponível para isto. Chorava por horas mas, se pedissem, não saberia apontar de onde vinha tanta dor. Tanta vontade de largar tudo. De se desvencilhar de todos. Teve tudo enquanto criança. Um tanto mais do que era comum. Via os pais chorarem, os avós também, e achava que aquilo era só reflexo de como eles admiravam aquelas telenovelas. Levou lá suas décadas para perceber que corações respondem sim a toques. Abria caixas velhas e relia todas as cartas que havia guardado. Imaginou como teriam sido as coisas se ela sempre tivesse sabido reconhecer sentimentos. Legitimá-los, pensou. Pensou em todas as pessoas que deixou ir, sem nem importar-se. Como num retrato de turma, todos ressurgiram na parte imaginativa de sua íris. Lembrou-se, especialmente, de uma dessas paixões com cara de inigualável, e espírito universal. As coisas todas já foram tão simples. A caixa de correio dela desconhecia cobranças. O céu era sempre azul, raramente estremecia. As pessoas que amava estariam para sempre ali, sua inocência duraria também. Eu aprendi que coisas ruins acontecem com pessoas boas. Parou de sonhar, e foi responder uma das cartas antigas.