domingo, 29 de agosto de 2010

O Que É.

Você esteve sempre por debaixo de alguma das minhas asas, sob meu olhar apaixonado e atento. Era eu quem cobria seus pés de madrugada, e engomava suas camisas de seda. E lembrava de levar seus óculos toda vez que íamos ao cinema, e emprestava meu cachecol enquanto andávamos pela garoa. E servia seu prato favorito, e ensaboava suas costas. E sentava na varanda para te esperar, e te enchia de beijos, e de abraços, e de todo o carinho que achei que precisava. Não somem da minha cabeça as lembranças das noites que passamos acordados só por passar. As noites nas quais você quis dormir, mas te mantive acordado para que aproveitassemos cada um dos instantes, e para que fizéssemos deles uma eternidade. Lembro de quando falei que te amava, e você pegou minha mão, pôs no seu peito e disse: isso não é amor, meu amor, isso é medo.

Olhar.

Ficaria um dia inteiro a te olhar,
E você me entreolhando em meio à confusão diária.
Eu poderia apenas olhar por um segundo,
e valeria.
Valeria por todas as horas, e todos os dias,
e tudo mais.
Tudo bem mais.
Tudo maior.
Eu poderia somente te olhar de longe,
ainda que míope,
ainda que sem toque,
ainda que sem retorno.
Eu poderia te olhar com meus olhos cor-de-fogo,
querendo seu corpo.
Ou olhar com meus olhos cor-de-mar,
querendo te apoiar no colo.
Ou olhar com esses olhos mesmo,
cor-de-reflexo-seu,
se perto,
se desperto.
Eu poderia apenas te olhar.
Eu poderia te olhar apenas.
Um apenas-olhar.

sábado, 28 de agosto de 2010

Íris.

Tínhamos exatos dezesseis anos, peles brancas e todo um ideal revolucionário. Foi em uma Quarta-feira que de repente você veio, conhecia eu sei lá quem que estava sentado na mesma mesa. Amiga de um amigo do primo de um provável amigo meu. Tinha seus cabelos - ainda - longos e loiros, vestia uma camiseta velha, com um pequeno bordado, uma bermuda rasgada, usava sapatilhas sujas de terra, algumas pulseiras, e um anel no indicador esquerdo. Mas o que importou foi seu sorriso, escondido por detrás de finos lábios, e de uma mecha de cabelo sacodida pelo vento. Pediu por mais um copo, e foi então que escutei sua voz. Era bem aguda, um tanto entusiasmada, por pouco inesperada. Começou a falar sobre o céu, foi quando lembraram de te apresentar. Tinha nome de flor, não de flor mesmo: flor com pétalas, filetes e espinhos. Mas de flor: cheiro marcante, bela de se ver, merecida de espaço no tempo e no corpo. Foi nesse dia em que eu soube quem você era, que soube o que você seria depois.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Aurora.

Não sei que ventos trouxeram-na, mas naquele momento, naquele exato momento, pareceram tão fora de curso. Não iam fazer chover, não iam levantar sua saia, mas trouxeram-na, feito fosse uma pena esbranquiçada no meio do caminho, que cautelosamente, subiu do asfalto para a calçada, e pôs seus pequenos pés ao lado dos meus. Vestida de azul, com sua voz branda, mas grave, entrou-me pelos ouvidos. Não sei que caminho tomou, mas naquele momento, naquele exato momento, parecia fora de curso. E foi bater direto no coração. Pareceu-me um soluço preso na garganta, seguido de um refluxo de palavras que não cabiam ali. Podia até negar - como ainda posso -, mas seu encanto ia além dos contos, e dos cantos, que conheci vida afora. Minha carne trêmula contraiu-se estando ao seu lado: não posso, não posso, não podemos. Eu disse, não dissemos. Ela não queria - ou precisava - saber. O que eu queria era tocar seus finos lábios, marcados por vários outros, supus. E não era exigente, bastavam-me as pontas dos dedos, ou que roçassem minha barba. Não precisava tocá-los com os meus, pois podia esconder a vontade, vestí-la de simpatia e admitir o charme. Procurei-a tanto em outras vidas: algo no fundo dizia-me. Mas encontrei-a na errada. Queria dizer que era tão bela, mas bela de um tanto, que não parecia verdade. E não era o rosto simétrico, ou o corpo magro. Era o que dizia-me com aqueles olhos, meio querendo que fossem meus, meio estando abandonados.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Não.

Mas estávamos perdidos.
Estávamos perdidos.
Perdidos.
Estas três palavras pulsavam no ritmo de meu coração. Com a intenção de cessar qualquer dor, ou de trazê-las para perto. Foi quando pedi para que se calasse, que você disse: o problema era esse:
Perdidos.
Estávamos perdidos.
Mas estávamos perdidos.
E você disse como se o caminho parecesse assim: tão longo e difícil.
Perdidos.
Como estávamos perdidos.
Mas estávamos perdidos como?
Se pouco antes havia acontecido o encontro. Eu lembro, você disse. Até então você estava perdida. E eu um pouco atrás. Foi quando, por acaso, seu caminho e o meu se entrelaçaram. E havíamos encontrado - um ao outro, e portanto, o caminho. E eu me lembro, você me disse: agora é sereno. E naquela hora eu fui sincero: é esse o caminho, tão meu, quanto seu, quanto nosso. E agora estamos.
Estamos perdidos.
Mas estamos perdidos.
Perdidos.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Estrela.

Em um dia eu acordei - como costumava fazer nos outros -, e despretenciosamente saí rumo à vida. Trânsito, buzinas, pilhas de papel, e goles do café do dia anterior. Para variar, não esperava nada - além do ônibus das seis da tarde. Foi em meio a essa repetição cotidiana que te conheci. Não vi nada demais, culpa da miopia. Mas aí você se aproximou, querendo saber das horas. Não lembro quais eram, o que é uma pena. Mas sei que houve um estouro, e o tempo pareceu um atraso. Não sei seu nome, não quis perguntar. Mas fiquei olhando toda a sua pressa, repetindo os mesmos movimentnos: mexendo nos cabelos, sacodindo as pernas. Não sei dos seus anseios, mas lembro da cor das suas unhas. Não sei qual era o seu destino, não pude enxergar. Não sei se foi acaso, ou se por acaso estávamos os dois por lá. Para bem da verdade, sei que você era realmente bonita: panturrilhas salientes, ombros queimados de sol, lábios rosados. Não sei o que você, naquele momento, se tornou para mim. Estrela cadente: só sei que você foi assim.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Agosto.

Sempre tive a certeza de que depois da calma, vem a tempestade, e então o abandono. Soube ser bem discreta, isso eu admito. Sempre soube que depois da calma, vem o abandono. Vestidos floridos, pés descalços, e todo aquele gramado verde. Sentia o vento dos seus cabelos nos meus: isso seria o amor verdadeiro. Seus olhos, feito os de Capitu, eram de uma dissimulação clara, porém branda. Mas prefiro compará-los aos buracos negros, ainda mais somados a seus lábios, e presos a seu corpo inteiro. Vestidos ressecados, pés ainda descalços, e todo aquele asfalto esburacado. Sentia o calafrio de sua pele na minha: isso seria o desespero. Tenho, ainda, o direito de não entender seu desentendimento com louça chinesa, pois as peças estavam sempre em cacos, espalhadas pelo chão, logo depois de quase alcançarem minha cabeça. Primeiro encarei isso tudo como fraqueza: sua ossada era extremamente fina e seu sorriso oscilante. Vestidos transparentes, pés flutuando no espaço, e todo aquele céu de Agosto. Sentia sua falta na falta de mim: isso seria a saudade. Ou dependência. Ou abandono. Ou amor verdadeiro também.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Psicose.

Somos feito uma fina película, e você vai me apertando contra ela - contra nós -, me apertando, me apertando...e aí? E o que você espera de mim? E se ela - a gente - arrebenta? E se de repente ela - a gente - explode? E se de repente, ela, a gente, tudo, virou um estado agudo de psicose?

Entendesse.

Grampearia tuas asas, se ainda houvesse tempo. Feito bomba-relógio - com minha prepotente esperança de que não exploda - vive meu coração. Pouco sei do que houve. Nada sei do que havia. Mas teus olhos me encararam, e eu os encarei de volta. Agora é exatamente aquele momento em que nada sobra: não sei para onde ir. Nem se tu queres que eu vá. Melhor seria nunca sair daqui. Só não sei melhor para quem. Tua solene partida foi como um pedido de espera. Ou não. Ou um vá-para-sempre. Mas para onde? Para bem da verdade, não sei nem se partiu. E tu também não me respondes. Estás fora da área, do perímetro. E eu, agora, fora de mim.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Intérprete.

- Cala essa sua boca, toda essa sua falácia é só solidão.
- Cala essa boca você, todo esse corpo é seu.
- Não desconte seu vazio no meu.
- Não confunda saudade com buracos.
- Não entenda buracos como fins, nem muito menos de poços.
- Posso dizer uma coisa?
- Não.
- Fora o doce da noite, eu poderia olhar em seus olhos castanhos e dizer: te amo meio-amargo.

Passé.

Ainda hoje, foge do meu entendimento o que haveria acontecido naquelo ano para que tivesse sido tão frio e seco. Nunca esquecerei-me da melancolia dos gramados, tomados pelo vermelho-meio-marrom-de-terra, pela inexistência de cores vivas, ou de alguma vida qualquer. Também não esquecerei dos dias em que vi o sol se pôr solitariamente por detrás dos ipês. Quandos as noites chegavam - outra forte lembrança -, todos os pêlos de meu corpo - branco feito leite -, arrepiavam-se, parecendo terem visto um ser de outro mundo. Mas algo em mim era feliz, de uma felicidade extrema e sossegada. Saía para caminhar e assobiar, coberto por um casaco de lã que guardo até hoje. Ainda tem seu cheiro, e olhando meticulosamente, alguns fios de seu cabelo castanho. Não esquecerei das noites que saímos para jantar, beber algumas taças de vinho, reclamar do doce do café, do amargo das palavras que trocávamos - ou que deixávamos soltar pela íris de nossos olhos. Ainda tenho seus abraços guardados na caixola, em um aperto no peito. Tenho seus sorrisos emoldurados, cada um deles pendurado pelas paredes. Saudade, da mais pura e frágil. Capaz de fazer-me chorar feito um bebê desmamado. Não sei o que houve naquele ano, para que pudéssemos ser felizes da forma tão simplória em que fomos. Mas sei que, hoje, olho-te cobrir meus pés à noite, enquanto finjo estar tendo um pesadelo, e penso: estaríamos bem mesmo sem as lembranças.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Encaracolado.

Estávamos à beira dum precipício: ou voávamos ou caíamos. Você tinha asas, disso eu sempre soube. Você sequer precisou me contar. Estávamos naquela fase de jogos psicológicos: se você pular, pulo junto. Mas se você voasse, tinha a certeza de que ficaria para trás. Engano meu. Estávamos com aquela fobia do futuro, aquela nostalgia do que ficou para trás. Temíamos o dia seguinte, com a sutil sensação de que não mais acordaríamos abraçados. Pois, sabíamos, no fundo sabíamos sim, que o encaixe estava remendado, suturado, junto as nossas feridas. Com as solas de nossos sapatos escorregando, olhei bem em seus olhos, como se dizendo, com eles, que você poderia voar e eu ficaria ali, você fosse entender. Tudo bem, talvez tenha entendido - e aliás, prefiro acreditar que sim -, pois você saltou. Bravamente, como se não fosse a primeira vez. Outro engano meu, porque realmente não era. E eu ali, tão firme, levei um susto ao te ver alçar vôo, quando, na verdade, parecia que não iria conseguir - pois chegou a quase atingir o fundo, fundo este que eu não via. E foi quando então escorreguei. E quando você olhou para trás - suponho sim que tenha olhado - eu já não estava mais lá. Deve ter se questionado quanto a veracidade de minhas palavras, pois eu sei que disse que ficaria ali. Tentei, juro. Mas sem você, já havia te dito: a vida era osso. E era bem aqui, no final da queda, que eu pude redescobrir: sem você a vida era, na verdade, poço, e fundo.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Restante.

Primeiro, todo aquele corpo arrepiado. Seus toques e minhas mil peles, que se descamaram uma a uma. Fomos retirando as máscaras, e segura aqui, por favor. Tu eras tão bela de olhar, tão bela no olhar, tão bela do lado de cá. Prendi tantas vezes pelo pescoço, deixei tantas vezes, pela garganta, escapar. O afeto, primeiro. O amor, tão grande amor. Queria-te sempre por perto, logo aqui, ao meu lado. E ainda que, meio inquieta, ficava. Olhando pra mim, querendo-te pra mim, cada vez mais, outra vez mal. Queria pesado: fica porque sei exatamente o que te dói - e que me dói por osmose. Fica porque estamos atados, porque longe, não vivo, rastejo-me, esquartejo-te. Fica senão mata-me, e mato-te em resposta. Espera, logo me acalmo. De olhos pressionados, sobrancelhas arqueadas, tanto faz, não falo sério. Não se assuste. Tudo bem, foi-se. E agora, o que resta? Pra você, toda a minha a ausência. Pra mim, toda a sua saudade.

Ipsis litteris.

O veneno é a cura em excesso.
Por isso acabei assim:
definhado, mal amado, sozinho.
Sem eira,
nem beira.
Sem mim.
E mais dolorosamente: sem você.