quinta-feira, 29 de abril de 2010

Cale.

Não vou mentir, houveram horas em que senti falta dela. Mas lá estava eu com você, comprando mobília nova, fazendo o jantar, adotando um gato, dormindo de conchinha, trocando alianças...então não diga que não te amo, pois meus móveis eram todos semi-novos, eu havia comido fora, tinha alergia a pêlo, não suportava calor e não queria casar.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Saberão.

Quando ela chegava, estava sempre suja de suor. Ele nunca sabia se aquele suor era mesmo dela. Quando ela chegava, estava sempre aflita. Ele nunca sabia se aquela aflição era mesmo com ele. Quando ela chegava, ele estava sempre ali. Ela nunca sabia se aquele sempre era por ela. Quando ela chegava, ele estava sempre calado. Ela nunca sabia se aquele calo era ela. Quando ele olhava, ela estava sempre desviando para os lados. Ele nunca sabia se aquele desvio era ele.

Perdões.

Sentia-se só e logo alcançava o telefone. Eu atendia aquela sua voz rouca, e falando manso chamava-a para mim. E sua voz rouca parecia mais alegre, e eu imaginava-a vindo saltitante e apressada, sendo carregada por você. E você vinha pra cá, e eu ficava ansioso esperando-te com as chaves na mão - pronto para fechar a porta na saída.

Pareceres.

Nos Domingos à tarde, punha-me a escutar qualquer coisa que disciplinasse-me os sentimentos. Punha Elis, mas já era tarde. Punha Chico, mas já estava destruído. Punha Caetano, mas não era tropical. E então sentava-me à mesa da cozinha, e colocava a chaleira no fogo. Acendia um cigarro de palha, sentindo-me meio caubói-do-cerrado, e fantasiava com as abas de um chapéu marrom. Percebia que a noite apontava lá no fundo, depois daqueles ipês-nada-amarelos, daquela grade-nada-protetora, daqueles meus olhos-nada-atraentes. E o céu, ali no cantinho daquilo tudo, parecia um terreno abandonado. E eu, ali no cantinho de mim mesmo, parecia um terreno baldio.

domingo, 25 de abril de 2010

Doces.

Olhava para ela que, toda sorridente e agitada, devorava o restante dos ovos da Páscoa. Olhava seus tão delicados lábios sujarem-se sem preocupação alguma. Olhava suas unhas sujas na ponta, seus olhos castanho-claro, seus pés inquietos. Olhava sua gola desarrumada, sua calça jeans em tons de azul. Olhava-a quase querendo-a, querendo querê-la, querendo sentir. Queria sentir qualquer coisa, desejo, saudade, culpa, qualquer coisa que não fosse calor ou cócegas.

sábado, 24 de abril de 2010

Incerto.

Levou-a para sair, entreteu-a com suas piadas pré-históricas e suas carícias desengonçadas. Era mesmo todo assim, desconcertado. Um pouco mais na presença dela. Um pouco tanto mais que mal parecia saber o que estava fazendo ali. Talvez fossem intimidadores os olhos tão azuis dela, ou o sorriso tão amarelado, ou aquelas dobrinhas por debaixo da camiseta. Talvez toda ela o intimidasse. Talvez fosse o sentimento, talvez sabê-lo apenas piorasse.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Lá Estava.

Lá estava você, debruçado sobre a mesa, sacodindo as pernas e acendendo um cigarro. Usando aqueles óculos escuros, aquela jaqueta velha, aquele par de sapatos americanos. Lá estava você, aquele mesmo que conheci. Fingia muito bem estar escutando-a, fingia tão bem que até parecia interessado. Lá estava você, repetindo os passos. Usando aqueles versinhos translúcidos, aquela voz aveludada, aquele sorriso de lado. Lá estava você, fingindo outra vez que só queria ser amado.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Desplanejado.

Não precisava de bom dia, nem boa tarde, nem como vai a vida, nem que a vida fosse. Bastava só que ela olhasse e ele soubesse. Aí o corpo dela ia contra a parede, e corpo dele ia contra o dela. E as bocas encaixavam-se nos pescoços, e os abraços nos beijos. Sem mais delongas ele procurava por suas longas pernas. E aquela era a forma que a vida encontrou para prendê-los, um sob o outro. Um sem saber nada sobre o outro. E aquela era forma que sabiam amar-se, calados, suados, entre suspiros, ofegantes. Era amor espremido entre lençóis.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Psique.

Sentou-se, meio contra vontade. Entrou e sentou-se, meio que empurrada, meio que tropeçada. Olhou-a, meio que analisando. Abriu a porta e olhou-a, meio que calculando, meio que subtraindo. Desastrada, anotou no rodapé. Acomodou-se no sofá, couro barato e desbotado. Cara a cara estavam, feito velhos amigos. Ele alcançou outra caneta, ela esticou os braços. Diga-me seus motivos, e qual caminho desaguou-a aqui. Não sei quem sou, não sei se posso, não sei se devo, e não sei se quero saber. E ela chora. A caixa de lenços não estava aí sem motivos. E ela chora mais, quase faz chover. Estamos aqui para curar as feridas de sua alma, ele diz indiferente. E cadê ela? Ela questiona...internamente.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Chef.

Gostava de vê-la na cozinha, tão ágil e concentrada, ignorando minha presença ali. Acendia a boca do fogão, punha na panela umas gotas de azeite. Esse trouxe da Argentina, dizia encantada. Os olhos brilhavam, e voltava a ignorar-me. Observava-a ficar na ponta dos pés para alcançar os dentes de alho e o açafrão, parecia muito mais menina do que era, e um pouco mais frágil, fazia parecer que precisava de minha ajuda, de minha altura, de meus braços longos para alcançar o que queria. Mas não, apoiava-se na bancada, desdobrava-se feito uma bailarina, e alcançáva-os com um sorriso ganancioso. Remexia-se, ia de um lado para o outro. Sonho meu era acompanhá-la sempre naquele trajeto desengonçado, e poder alcançar seus cheiros e temperos, e poder beijá-la suja de molho de tomate, e poder abraçá-la cheirando a canela, e poder embalá-la para viagem. Apressava-se com a água já fervida. Moía - toda pequenina - aqueles dentes de alho, e moeria, mais tarde - um pouco maior - aqueles meus sonhos.

Você Não Entende Nada,

Estirado no chão da sala, relembro da primeira vez em que fui a seu apartamento. Cheirava a boldo e alecrim e a iluminação era fraca, quase inexistente, pareceu-me - primeiro - um recanto, com seu ar sossegado de paz. Ela abriu a porta vestida em um robe lilás, cabelos ainda molhados de seu banho quente, ainda era possível ver o vapor escapando do banheiro. Falava alto, contradizendo o ambiente. Olhos recém-delineados, pareciam mais frescos, pareciam ter acabado de nascer. Pediu-me para que sentasse na sala e aguardasse um pouco, trêmulo, obedeci. Assisti-a entrar pela escuridão dos cômodos e voltar trajada em veludo. Parecia mais séria, estava falando mais baixo. Cheguei mais cedo. Não, foi pontual. Desculpe-me. Oras! Aceita um vinho? Parei de beber. E ela olhou-me surpresa, conheceu-me embriagado, trocando palavras por gemidos desconhecidos, falando a língua de coisa-alguma. Deduziu, achando que eu não perceberia, que eu queria parecer homem sério. E achando que ela não deduziria, era isso mesmo. Uma taça então, uma taça só. E voltou, com a garrafa da cozinha. O cheiro mais forte, parecendo quase meu. Seu perfume floral, meu desodorante barato. Seu rosto de boneca russa, minhas falhas na barba ruiva. Meus braços querendo-a mais perto, meu corpo fingindo descaso. Suas pernas, cuidadosamente cruzadas. Cabernet?
Carménere? Quis parecer entendido. Merlot, respondeu risonha. E seus dentes brilharam, feito céu estrelado. E eu não quis parecer bobo, mas não pareci outra coisa. Fitei meus olhos nela, cujos olhos fitaram no toca-discos. Adoro essa música, disse animada, cantarolando-a. Quando eu chego em casa nada me consola, você está sempre aflita. Lágrimas nos olhos, de cortar cebola, você é tão bonita... E o cheiro de alecrim e boldo, e a pouca luz, e a vontade de vê-la cortando cebola e de abraçá-la forte fingindo que a tragédia era enorme. Desliga o som, quis pedir, pensando baixinho. Essa realidade me irrita.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Revolução.

Fernanda punha três pimentas no fundo do prato, gostava do ardor. Fernanda era ele próprio, e ardia-me nos lábios roxos de frio. Nos fins de tarde, em que sentávamo-nos no gramado para discutir política, apertava-me a nuca com sua indignação adolescente, e aquilo era minha felicidade. Suas mãos, lisas e avermelhadas, pesavam-me leves nos ombros. Dizíamo-nos inimigos do tempo, e soberbos, fingíamos que ele não levaria-nos embora. Ainda lembro, com algum aperto e muita saudade, de sua barriga despida fazendo ondas em meu corpo-oceano, de sua pele fria eriçando meus pêlos. Fernanda era minha felicidade. E agora, sentada na mesa ao lado, ela era minha saudade, só minha. Minhas pernas, peludas e frágeis, tomavam a coragem de levar-me até ela, só para fazer-me notado, e para que, meus lábios, agora beges de idade, sibilassem um cumprimento meio o-tempo-fez-lhe-o-bem-que-eu-não-pude-fazer. Fernanda, perdi pelo tempo, descuido confessado. Estava eu, moreno e cheio de fôlego, pronto para uma revolução, quando deixei-a de lado. E como desejei nunca tê-la deixado...mas o tempo existia, e minhas pernas eram poucas para confrontá-lo.

Tortura.

Há três dias a televisão parou de funcionar. Chuva, alagamentos, carros-bote e o Botafogo jogando no Brasileirão. A maldita parou pouco depois de um raio. Culpei-o e disse: volta já. Não voltou não, e desde então fiquei rodeando-a, ia atrás dos fios, olhava-os com aquela cara de sei-do-que-precisam, mas aí pareciam tão bem, sem precisar de nada. E aí sentava-me no sofá, e ficava encarando-a com aquela cara boba de já-já-volta-a-funcionar, depositando toda a esperança do homem brasileiro. Não voltava, não voltava, não voltava, e eu lá, pagando por todos os meus pecados, vai ver fosse isso mesmo, pensei. Cansei de esperar, e o microondas cansou de estourar pipocas. Deixei toda minha masculinidade de lado e chamei o técnico. Das dez às quatorze ele apareceria, e fiquei lá, na esperança de que minha esperança bastasse para a maldita! Apareceu já eram lá para as dezesseis, tinha meio metro a menos que eu, barba que nem a de um moleque, feriu minha masculinidade ao dizer que era coisa boba. Bobeira porra nenhuma! Mas resolvi conter as palavras. Andou, seguiu os fios, segui-o logo atrás e...nada. Faltava uma peça, voltava mais tarde, entre as dezessete e as vinte e duas. Tá bom, espero. Passaram dez minutos e outro chega. E aí, vovô! Dá conta do recado? E não é que deu, depois de muito ouvir estralar as costas, certinho. Obrigada e até nunca mais, espero. Lá fui eu, todo dengoso pedir arrego para o noticiário. Não funcionou. Espera aí, não funcionou?! Foram três socos na parede, uma tigela de cerâmica arremessada, por quê, Deus? Por quê? Eu não merecia a tortura, era assim que eu pagava por tudo? Todas as vezes que disse amar somente para tê-las de pernas abertas, todas as vezes que disse ter sido um prazer só porque minha carteira não chegou nem a ser aberta, todas as vezes que cuspi no leite do meu irmão, era por isso que eu pagava? Era assim que eu pagava? Desculpa, mas eu esperava um pouco mais de piedade...

domingo, 4 de abril de 2010

Breve.

Suas três décadas pesavam nas costas feito um século, mas voava leve, rasteiro. Batiam em suas costas e diziam que um dia o mundo seria dele. E poderia um dia vir mesmo a ser. Mas o que queria era maior, e também dava voltas - em sua cabeça. Queria tê-la entre os braços, beijá-la quando estivesse suja de pasta de dente, quando voltasse exausto do trabalho. Mas ela nunca estava lá. Ela tanto nunca estava, que talvez nunca sequer tivesse existido. Mas estava sempre em seus sonhos, contra a luz, sombreada, de vestido preto, cabelos despenteados, batom borrado. Tinha pose de uma figura santa, mas era pecado. E ainda assim ele a amava, como se nunca houvesse existido nela um passado, como se ela fosse presente, como se tivesse futuro...

Sorte.

Amanheciam cinzas todos os dias daquele começo de Abril. Em uma noite, sentado sob uma mangueira, deixou que um homem aproximasse-se. Estava descalçado, trocando os pés, acendeu um cigarro pelo filtro e sentou-se ao seu lado. Queria ler sua sorte, disse com uma voz que exalava o cheiro de whisky barato. Pediu que estendesse a mão, e segurou-a com força. Olhou em seus olhos, e desnudou-os. Tomasse cuidado, aquilo não era amor não, pedia desculpa por dizê-lo, mas repetiu. Abrisse bem os olhos, não tratava-se de um caminho só. Preparasse-se, a felicidade seria muita, mas inevitavelmente cara. Leu toda a sua sorte, do sucesso profissional aos três moleques que nasceriam mais para frente. Esqueceu-se apenas de ler sobre os infortunos. Na verdade, leu, e mais de uma vez para ter certeza, mas calou-os. Fosse em frente, passo a passo, mas não alertou-o sobre um muro.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Da Paixão.

Tirados os pecados da carne e da cama, assisto um grupo de casais caminharem até a igreja. Sino tocando, todos trajados de escuro. Na sala de jantar, a mesa posta, livre de todos os deletérios. A chuva de um mês caindo em um segundo. E os pombos incomodando os incomodados que, insalubres, fumam à janela. Correria e gargalhadas escapando pelas paredes da cozinha. Sentemos todos à mesa, a anfitriã senta-se por último, até que notem minha ausência. "Venha cá", venho vento não...mãos devidamente dadas, olhos entreabertos, buracos no estômago. "Venham cá e façam suas preces". Mas oras, que pressa é essa? Enquanto alguns buscam a fé, eu só quero um cigarro e um gole de café.