terça-feira, 17 de setembro de 2013

Fragmento 4 - das compulsões

com pulsões,
esse amor-músculo
me expande 
e me comprime

Às seis horas já estamos de pé. Eu sempre te olho ainda deitada e te desejo bom dia. Bom dia, amor. E encosto meus polegares próximos aos seus olhos e limpo suas remelas. Você se agonia e contrai os braços. Se de bom humor, ri. E me pede para deixar de ser louco e eu te digo que isso só sou por sua causa. Você ri de novo e deixa a calcinha jogada pelo chão e entra para o banho. Eu tento ir atrás, mas você, mesmo depois de me deixar, não me deixa. Tranca a porta e me diz que só te atrapalho.
Eu sou todo atrapalhado e mesmo correndo para o banheiro, você fecha a porta na minha cara e eu quase sempre bato com o nariz. Meu nariz nasceu primeiro e cresceu mais que o resto. Quando te disse isso, pela primeira vez, você riu por vários minutos. E eu concluí que estar apaixonado dá mesmo mais graça as coisas.
Se de mau humor, você empurra meus dedos afastando meus braços e acaba se arranhando e me fazendo arranhar você. Diz que já está atrasada e que eu só te atrapalho. E reclama que minhas unhas estão grandes demais para um homem. Então critico seu sempre presente discurso sobre a crueldade dos estereótipos. E você me bate a porta na cara. E quase sempre pega no nariz. E eu sei que do outro lado da porta você escuta o barulho da madeira do osso e da cartilagem. E eu escuto e sei das suas costas em atrito com a madeira os pêlos e ossos e o barulho das suas nádegas batendo no chão pouco depois de escutar a pele em atrito com o esmalte da porta e seu corpo deslizando até as nádegas fazerem o barulho que fazem ao encostar inconsoláveis no piso frio de cerâmica.
Eu sei que fica sentada por uns dez ou doze minutos respirando com força com a cabeça para baixo e a testa apoiada nas mãos fechadas. E eu escuto você pensando que queria ser mais calma e mais controlada e que não deveria me dizer o que diz quando está irritada sem saber nem o motivo. Pensa que não deveria nem de brincadeira me dizer que só atrapalho e nem fechar a porta em minha cara porque um dia poderia acabar quebrando meu nariz. Pensa que um dia poderia, até, acabar nos quebrando. Nos fraturando. Fazendo sangrar. Pensa que então eu poderia ir embora. E eu escuto você me pedido para por favor não ir. E alguma coisa que não consigo escutar direito te desespera e você se levanta e abre a porta assustada. Sossega quando me vê deitado na cama e vem com seu corpo nu me cobrir. Respira fundo todos os seus pensamentos que acha secretos e me aperta até dormir. Me aperta até suas mãos afrouxarem e você partir. Amo quando sai para sonhar
e esquece seu corpo no meu.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Fragmento 3 - da distância que percorrem os sonhos

(Voz vinda da televisão) Segunda-feira, dia 20 de dezembro. Boa noite, começamos agora o Jornal Local. Relatório da Polícia Militar revela que a incidência de acidentes de carro é quatro vezes maior no período das festas de final de ano.

Na noite de domingo eu disse, enquanto tomava a sopa, que na segunda eu começaria a reler Dom Casmurro. Porque na madrugada, de sábado para domingo, eu havia sonhado com um machado me perseguindo. Um machado preto e branco, duas vezes o meu tamanho, do qual eu fugi incansavelmente durante todo o sono. Foi um sonho de noite inteira. Sonho! E não pesadelo porque, quando senti o coração prestes a pular pela boca, parei, com as duas mãos para o alto e me virei em direção a ele, que desacelerou o passo, e fez o coração fazer saltar a pele, veio andando quase se arrastando e me abraçou sem braços. Me abraçou um abraço desabraçado e eu me senti mais leve. Quando acordei, pesava todos os meus quilos a menos. Era quase negativa do tanto peso que me foi tirado, mas não é esse o estado, "ser negativa" me pesa. Eu era toda leveza...
No fim da tarde de sábado encontrei alguns amigos da faculdade. Depois de assistir o sol se pôr e traçar uns cigarros, decidimos prolongar a companhia, o estar-junto. Enquanto o álcool percorria seu caminho - da mesa do bar, para a quina da mente -, demos voltas e voltas por pontos difusos de opinião até desaguarmos em Capitu. Não sei mais nem como, mas chegamos até ela. Entornamos Capitu. Viramos a moça do avesso. Pegamos carona na ressaca dos olhos dela e nadamos nadamos nadamos. No final, a mesa quase toda se colocou contra mim. Que decidi que nunca seria uma Capitu. Decisão já feita antes, na escola, quando precisei ler Casmurro, e retomada, então, depois de anos passados e depois de anos esquecida. Nunca cigana, nem dissimulada e nem oblíqua. Condenei aqueles olhos que nunca vi. E que terra nenhuma pôde comer. Ainda ergui o copo e pedi para que um Bentinho fosse enviado para mim. Que todos os Bentinhos escapassem dessas Capitus, pelas quais se sentem imamente atraídos. Por detrás disso, o pedido era para que alguém olhasse em meus olhos ao ponto de querer descrevê-los - sutilezas que a linguagem não revela. Eu repeti várias vezes que jamais seria como Capitu. Teria raízes na terra, não tremularia nem por catástrofes e, sob condição alguma, teria quinas, pontas apontadas para fora de mim. 
Fui obrigada a fazer as pazes com Capitu, no sonho. E essa paz feita me desfez. Acordei tão mais de ressaca do que qualquer mar, do que qualquer par de olhos. Estava leve feito pluma. Feito areia que vai e volta faceira na beira da praia com a menor das brisas. Pus as tripas para fora, antes de dormir. Acordei sendo só coração. O corpo fraco, mas gostoso de vestir. Parecendo pijama de avó. Aquele cheiro de talco e algodão macio.
Por isso, enquanto tomava a sopa, sentada na mesa da cozinha, sujando a toalha toda a cada vez que servia o vinho, disse que releria Dom Casmurro. Que me debruçaria pelas páginas empoeiradas onde vive Capitu. As linhas de horizonte Arial Black tamanho oito estampadas nas folhas. Por onde andam, rebentam, dissimulam, perfuram, os olhos de Capitu.
Eu sei, não consigo me sentar com os dois pés no chão. Ficar de pé, tudo bem, me dá a sensação de estar passando pela vida, e não ela por mim. Sentada, pelo menos um dos pés para o alto, apoiado em algo ao redor, qualquer coisa, qualquer coisa que não me dê a sensação de que a vida passa por mim e de que não flutuo com ela. De que o vento levanta as cortinas e eu permaneço imóvel. As cabeças que viajam para muito longe sempre são precedidas por pés que querem correr-mundo. Não, que querem correr-universos. Atravessar galáxias.
Já me disseram inúmeras vezes que não sou daqui. Acho que até sou mas, às vezes, vou parar desembestada lá longe.
Minha mãe, uma vez, me contou que quando criança, me perguntaram o que queria ser quando crescer, e eu disse
- Quero ser grande, enorme, pra poder guardar o céu em mim.
E me perguntaram o motivo
- Porque é um jardim azul cheio de nuvens, pra onde vão as estrelas e as pessoas, quando viram estrelas.

Aliás, você escutou o jornal? "Incidência" é uma palavra muito bonita. Gostosa de falar. Fica esse gosto de incidência na boca. Outra muito boa é "estrelas", a língua sobe dura e desce mole quase desmanchando. Estrelas fazem cócegas no céu da boca.

Que eu nunca descubra a felicidade

eu achei estranho, mas ela veio e me disse que precisava deixá-lo
- eu preciso deixá-lo
e eu fiquei olhando com meus dois olhos abertos do tamanho das rodas de um caminhão
- eu preciso ir embora
ela disse que precisava ir embora e eu fiquei olhando com meus dois olhos arregalados do tamanho das rodas de um avião
não mais que uma semana estávamos as duas sentados no sofá da casa dela olhando o álbum de fotos da última viagem deles
mal se viam os prédios ao fundo
as obras de arte as portas dos museus as placas no metrô mal se viam as comidas nos pratos
era olhar para as fotos e estar hipnotizado pela hipnose dos dois
a maneira como os dois se olhavam em cada uma das fotos, como se olhassem pela primeira e pela última vez
como se a cada vez que se olhavam, o mundo passasse a ter um significado inteiramente novo
como se a cada vez que se olhavam, se assustassem com a presença um do outro
e até quando, nas fotos, não estavam se olhando, era possível ver as veias azuis, saltando das mãos de cada um, subindo pelos braços
a força feita pelos corpos para olharem para a câmera e não um para o outro
as fotografias que ele fez dela, trêmulas, borradas, mostravam há quanto batiam os corações
não mais que uma semana, ela esticava as pernas e tentando alcançar a ponta dos pés me dizia
- eu vivo da vida que ele me dá
a gente se servia de chá de erva doce ao longo da tarde
e vendo as fotos eu lembrava dela antes dele, quando mais nova, uma força imparável
que girava girava girava pelo mundo e pela vida como se não fosse parar nunca como se feita para isso como se feita para fazer vento e levantar as folhas secas no asfalto
girava feito o mundo feito roda gigante feito todas as luzes de quartos e salas acesos pela cidade à noite
girava como se nada pudesse interromper seu tão seu movimento
girava como se tudo fosse dela
sumiu por uns tempos, foi quando o conheceu e por mais que a falta feita por ela fizessem as coisas mais monótonas, nada foi pior do que quando se tornou inerte
- eu preciso deixá-lo
foi nesse momento em que percebi que ela já não mais girava
ainda levantava as folhas e todo o tecido morto espalhado pelos cantos
uma força ainda vinha do fundo dela e era o que a fazia sempre tão feliz sempre com os olhos sempre pintados de vida
quando perguntei os motivos os olhos se encheram de lágrimas e a tinta vida escorreu suave pelos cantos
ela se acostumou
a ser feliz
mas felicidade
tem que ser mais
que um costume
a vida precisa ser essa corda que quase se arrebenta para cima ou para baixo
essa linha que precisa ser ondulada pontuda afiada inesperada e que precisa oscilar infinitamente em si mesma e na gente
essa corda faca flor a nos penetrar
na vida a gente tem que sentir muito de tudo para nunca se acostumar com um sentir só
naquela noite, ela o deixou
ao lado de sua deixada ausência na cama, também um bilhete:
que a gente sempre seja feliz, mesmo sem nunca saber o que é a felicidade
aliás, que a felicidade nunca se defina, para que a gente nunca pare de procurar

mal chegou setembro e já cantam as cigarras

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Fragmento 2 - o que desandou

Presença turva, em meio a milhares de corpos. Noite de céu aberto, estrelas a serem contadas nas mãos e um frio de rachar os lábios.
Eu bem te olhava. Eu bem-te-vi. E bem-te-veria, daquele momento em diante. E você mal me olharia, porque certas presenças, de luz muito fracas, de lâmpadas quase queimadas, às vezes, passam imperceptíveis por olhos que podem olhar-oceano. Olhar-se-ano.
De alguma forma, desde aquele momento, você entrou. Você adentrou por todos os meus cômodos - internos e externos. Deixava as portas abertas e largava as roupas pelos cantos. Eu não suportava o seu descaso. Também não suportava o cheiro dos seus incensos, especialmente o de canela. Que me transportava pra um tempo passado. Sobre isso não falo, nunca te falei. Só me irritava e saía batendo pé. E você saía batendo o pé atrás. Contando assim, parece que tudo se deu imediatamente. Sua presença no mundo e ausência de algo em mim se fundindo numa soma perfeita. Meu corpo, em espírito, te pedindo para entrar. Me pedindo para me entregar. Como, se de repente, as forças do universo percebessem que a falta em mim tinha exatamente o seu tamanho.
Eu me aproximei. Eu me aproxi-metro até que fossem só centímetros. E ainda assim, você sentia dificuldade em me enxergar. Pressionava forte os olhos e eu me sentia a menor das coisas. Para minha sorte, eu falava bem alto, então você me soube ali. Me percebeu, ausência presente. E achou graça do meu esforço em ser notado. Achou graça, também, na minha dificuldade para pronunciar certas palavras. Por sorte, eu te causei alguma coisa, logo o riso.
Para a sorte se tornar azar, só é preciso trocar de roupa. Foram meses, e a passagem latente de um dia após o outro. Os joelhos barulhentos se arrastando pelas horas. O coração vindo até a boca e o gosto de ferro.
Eu sempre soube que iria embora. 
Eu sempre soube que, mesmo tendo acabado de chegar, estava de partida.
E que me partiria, num momento seguinte.
Mas te segui, mesmo assim. Pelos corredores pelos quartos as calçadas das cidades ruas estradas avenidas becos. Eu te segui de joelho correndo repetindo, a cada movimento, o quanto sua existência me movia. E eu te via e me via indo para frente 

E eu te amava. Nossa, como eu te amava. Como eu te amei. Como eu te quis e me refiz, só para caber. Só para tentar me prender em você. Porque assim, quando estivesse de partida, pronta para abrir a porta, pegar o elevador, e sair mundo afora, me carregaria junto. Me carregaria junto porque eu te pertencia. E você não poderia me tirar dali. Nunca me tirar de você.
Desmoronamos, eventualmente. E essa história se repete, com uma melodia que nos parece familiar. De algo deixado para trás ou imaginado.
As histórias se repetem, é assim com todas elas. Eu fraquejo, agora, ao tentar encerrar o que escrevo aqui. Parece desnecessário. E assim são todas as coisas. Repetições desnecessárias.
Sofro as dores desse amor-fratura:
exposto.
Mas que se repete,
de dor em dor
de história em história
de amor em amor.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Fragmento 1 - sobre a parte ou perda da nossa existência que se rompe

como ser
sem ser
seu?
como seu
sem ser
céu?

Sempre escutei que tudo acaba. Absolutamente tudo, sem exceções de qualquer tipo. Variam os motivos, as razões, a falta delas. De repente, começo a escutar que até o mundo vai acabar. O mundo. Digo, justamente o mundo - se eu pudesse escrever, aqui, as palavras de forma a representar o exato tom com que devem ser lidas, certamente você teria arregalado os olhos. Não me espanto. Não 
me deixo espantar. Já sabia que nenhuma terra é completamente firme para os pés. Mas quando o vento parece trazer sorte, a gente até se deixa acreditar.
Naquela tarde, dirigia o carro pela estrada, e me atravessavam todas as cores, todos os cheiros e todos as sensações. Na paisagem em volta nada que fugisse muito do verde, azul, e branco - soma das terras com o céu -, mas eu era bem maior. Naquele momento, naquela tarde, em que eu saí com o carro pela estrada sem rumo, onde me encontrei, eu fui bem maior. Eu fui e nada mais do que era ficou.
Às vezes a mente escapa e vai dar voltas em torno de um astro qualquer. Coisas absurdas parecem sensatas e pequenos detalhes deixam de ser contornáveis. Passo a observar o mundo com uma lupa.
Parei o carro. No meio da pista. No meio do - que pareceria - nada. Estacionei na grama e como se algo falasse por mim, fui descendo pela mata baixa. Não gosto muito de insetos, nem da natureza, mas não me detive. Mesmo coçando dos pés a cabeça. Mesmo com o rosto pingando suor.
A copa das árvores foi se tornando cada vez maior, ou eu passei a vê-las assim, mais verdes, mais altas, e de repente aquela natureza foi se fechando e me fechando nela.
Estava só. Fui sol. De cabeça para baixo.
Parei o corpo. No meio da mata. No meio do - que pareceu - tudo. Deitei na grama e como se algo falasse por mim, fui soltando os músculos. Eu parecia prestes a escorrer a qualquer minuto. Eu era tão parte daquilo tudo. Fui flor, e como for, fui terra, pedra, musgo, cheiro do verde, cheiro de cor. Que eu nem conhecia, mas soube de cór. De coração.
Ali, eu quase te esqueci. Deitado sob as sombras, escutando o que deveria ser um riacho.
Ali, eu quase esqueci que estava tentando te esquecer. Deitado, sem sombras que não me escutariam e nem me diriam o que eu deveria ser.

Os raios de sol que conseguiam atravessar, tornavam as folhas quase translúcidas. O mundo nunca tinha sido servido aos meus olhos de maneira tão crua. Estávamos nus, eu e ele, um de frente para o outro. Girando, girando, até nos vermos ao avesso. O mundo, num espasmo, pareceu um reflexo meu. E eu, finalmente, nos reconhecia. Ou conhecia, genuinamente.
Ao estar deitado ali, eu era apenas um pedaço de algo. Mas aqui, dentro, eu me sentia inteiro.
Nunca tendo sido fácil te esquecer, mesmo leve e desprendido, algumas imagens me vinham à cabeça. Você perdendo o bíquini no meio do mar, seus cabelos molhados e cheios de sal cobrindo seu rosto desesperado. Quando subia nas cadeiras para alcançar os objetos nos armários. Quando ralou o joelho ao cair da bicicleta. A primeira vez que bateu o carro. Eu só lembro de ter a certeza de que me amava quando precisava de mim. Quando eu me fazia necessário e você me olhava uns olhos arregalados, os braços em volta do meu.
Eu caí no erro de achar que só se ama uma vez na vida. E aí eu te amei por uma vida inteira.
Me desesperei, quase entrei em colapso. Os prazos se acumulando na mesa e você me dizendo que estava de partida da minha vida. Vida da qual achei que até eu queria sair. 
Eu joguei, muitas vezes, para cima de você o peso das suas próprias palavras. Antes, sem nem saber que as palavras não tem peso. São entes leves. O peso é o que está na gente. 
Eu te cobrei o número de vezes que repetiu "para sempre". E só depois fui perceber que a eternidade está no coração de quem sente. Foi o que deveria ser - e assim são todas as coisas.
Parei o coração. No meio das recordações. No meio do - que virou - nada. Encostei com as mãos no centro do meu peito e como se tomasse posse de mim outra vez, fui te soltando. Te vi ser borboleta e te vi voar de mim para bem longe. Me vi ser raio de sol, no maior esforço para atravessar e tornar translúcidas as folhas, e voltar para mim.
Ali, eu fui tão maior. Fui tão eu. E eu é uma palavra tão pequena para o ser. Fui o que deve ser a existência rompendo os limites de seu próprio corpo para, eventualmente, abrigar um outro.

Rascunho esquizofrênico

Vontade de sair. Procurar você. Sabe, seguir pelas ruas. Te assistir pedindo um café com leite. Achar bonito até isso. Preciso parar com as repetições. Segurar mais firmemente os olhos. Tudo mudou. Agora, imagine, se antes de desejar um bom dia, eu já te abordasse com uma confissão. Nós dois cairíamos na gargalhada. Desespero traz risos. Mas ouça, agora eu sei, errei. Sei exatamente onde. E mais ou menos o porque. Não deveria ter sido aquele tempo. Merecíamos ter ficado para depois. Tudo era bem bonito, mesmo que, por ser sempre tanto, acabasse se desperdiçando.
Sem drama, eu vim por meios da sinceridade. Mesmo que isso nunca chegue a seus ouvidos. Eu converso contigo falando sozinho. Fico sentado no escritório. Calor absurdo e o barulho ineficiente do ar-condicionado. Alguém abre a porta e se assusta: sou só mais um convivendo com os fantasmas das coisas que me arrependi.
Eu preciso trabalhar na minha narrativa descritiva. Anotar melhor o que se passa no mundo.
No hall de entrada, quatro quadros, três deles com paisagens urbanas - uma mesma cidade vista de diversos ângulos, suponho -, o quarto é retrato de algum santo. Uma mesa no canto, com uma variedade de revistas. Três sofás em tons de marrom, uma poltrona azul-marinho, uma mesa-quase-bancada, com uma cadeira torta, e Maria sentada. Maria é a recepcionista, senta nesta mesma cadeira há cerca de dezessete anos. Exibe o cabelo em um coque frouxo, e acho que isso nunca foi diferente. Varia as cores do blazer, mas usa sempre calças pretas, de cós alto. Tem as pernas desproporcionais ao resto do corpo, são longas demais. Mas nem a consciência disso afetaria seus olhos atenciosos e satisfeitos. Passa o dia intercalando livros espíritas com a agenda do escritório. Deveria deixar o cabelo crescer.
Eu trago saudade? Quando você pensa no rumo que toda a coisa tomou...em algum momento você já pensou que poderia ter sido de outra forma? Digo assim, agora que tudo parece só passado. Que "seguimos em frente", e somos praticamente outras pessoas.
Eu penso nisso.
Aliás, esse tipo de pensamento não tem saído da minha cabeça. Tenho me sentido na obrigação de mastigar as lembranças,
- O amor é um erro que todos nós cometemos.
Nesse dia, seus cabelos estavam especialmente longos vistos por trás. Pareciam um véu a ir se arrastando pelos corredores. E os corredores pareciam muito maiores. Seus ossos, sua estrutura óssea, você estava mais larga, forte, firme.
- O amor é um erro que eu cometi com você.
Eu deixo essas palavras repetirem várias vezes, fazendo cócegas nos olhos até aparecerem lágrimas. Os dias que se seguiram desandaram.
Nada tinha cor. Nem gosto. Nem cheiro. Eu não tinha vontade. Não levantava da cama se não me puxassem. Não trocava de roupa. Ignorava completamente o espelho. Me arrastava num esforço
Eu senti muita falta da falta que você me fazia quando estava logo ao meu lado.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O não-texto sobre o envelhecer

Tudo o que começo, começo pela manhã. Todas as histórias. Traço, entre as linhas, o desejo de que tudo se dê da mesma maneira que se dá um dia: com início, meio e fim. Eu sei que, na verdade, as coisas, ainda que não se queira, são assim: um começo, um desenvolvimento e uma ruptura. O desejo em si é o de poder saber em que momento o sol das coisas bate mais forte, quando haverá sombra e em que momento elas anoitecem. Eu quero ter uma previsão, já que o tempo, enquanto acontece, passa em seu próprio tempo. E não existem chances de enxergar, desde antes, o derradeiro minuto final.
Dessa vez, começo de noite, no meio da tarde, na hora do chá ou de um café, em plena madrugada, ou à parte dos períodos do dia. Começo, aqui e agora, uma história sem hora. Agora que já não existe. Pois é uma história sem tempo e que, sem avisar, eu já comecei.
Há tempo. Um tempo onde não cabem números e que se define por "muito", há muito tempo, quando ter energia elétrica era coisa raríssima e muitos dependiam apenas do seu próprio corpo para ter luz, ela vivia na beira do rio.
"Na beira do rio", até hoje ela conta assim, como se só houvesse um rio no Maranhão. Um rio no Brasil inteiro. Como se os Oceanos fossem, aliás, todos um rio só. Como se toda vida desaguasse nesse mesmo rio. E fala desse rio dela, desse rio que ela traz pra quem estiver a seu redor, e se ri, e se põe a rir e sorrir por horas, com a cabeça balançando circularmente, cabeça que vai lá longe, lá para aquele há muito tempo - que, de repente, ali para ela, parece logo ao lado.
Quando moça, ela conta que nadava pelada no rio. Contra a vontade de seus pais. Ela e uma de suas irmãs, a que dentre os seis, veio logo depois dela. Com nome de flor, mas pose de cactus. Magnólia, dos cabelos amarelados que nem algumas de suas irmãs-planta. Elas iam para o rio mesmo que o pai delas deixasse ordens claras para que não saracoteassem por aí. "Saracotear", é assim que ela diz, e se leva um tempo para entender, é o verbo que usa, e que usam todos daquele tempo, para definir o que duas moças fazem ao andar sozinhas pela cidade. Hoje, não poder saracoetar a faz rir, mas naquele tempo, conta, ficava vermelha de raiva. Fazia uma trança no cabelo e assim que seu pai saía de casa, pegava Magnólia pelo braço e lá iam para a beira do rio. Ela diz que cheiro melhor não existe, se existe, nunca sentiu. Cheiro da água cristalina, gelada. Tiravam suas vestes e ficavam nadando por horas, podiam passar dias ali. Depois ficavam um pouco debaixo do sol, se dividindo entre as árvores, se vestiam e voltavam para casa. Vez ou outra davam azar de chegarem depois do pai e enrolavam com alguma mentira. Apanhavam um pouco menos se conseguissem convencê-lo de que estavam em qualquer lugar, menos no rio.
Tutu, como era chamado, que nem a massa feita de farinha e feijão. Tutu, na verdade, havia sido batizado como Manoel, mas com o tempo, era só Tutu, um homem moreno, alto, barrigudo, dos olhos verdes e os cabelos brancos que nem nuvem. Conhecido pela cidade toda como Tutu, o homem dos barcos. Ele trabalhava nas balsas, na manutenção e na navegação. Também construía uns barquinhos, com os quais tirava fotos toda vez que terminava, posava sempre ao lado esquerdo deles, de calças e camisa branca. Falo das fotos porque ela, sempre que fala e ri do rio, alcança uma dessas fotos da bolsa e fica apontando. Diz assim, "vou te mostrar um homem que era osso, olha aqui papai". Ela não se lembra com que idade ele se foi, assim como já não lembra da sua própria idade, mas como decidi que essa seria uma história sem tempo, essas coisas não importam. Ela conta sobre uma outra família que ele tinha, mas muito rapidamente, por não saber quase nada, descobriram depois que ele já estava debaixo da terra. E termina dizendo que tem tanto irmão pelo mundo que nem sabe quanto. "Mais irmão do que o tanto de água que passava pelo rio!".
Sobre a mãe, ela fala um pouco menos, reforçando o papel que a mulher tinha naquele tempo - e não nego, se estende até hoje. O de uma personagem secundária, silenciosa, quase um fantasma. Dona Maria, que amarrava os cabelos das filhas em trança todo dia pela manhã, buscava um peixe no rio para a "mistura", descascava mandioca, que rezava o terço ao acordar, no meio da tarde e antes de dormir. Dona Maria que morreu na cadeira de balanço da casa da filha - a que ainda não dei nome - já aqui, na cidade grande. Morreu feito boiasse no rio. Feito molhasse de vida a brisa. Feito pudesse voltar se quisesse. Mas que se pôde, não quis.
O nome dela não é de flor. É Maria, como sua mãe e que, embora para ela tenha sido, não era flor para os outros. Digo, certamente para alguns, mas não todos, mais gente concordaria das pétalas que viviam transparentes, imaginárias, em volta da existência dela. Maria, mas que chamam de Tita. E ela não lembra o motivo. 
Tita era menina do rio, sempre vai ser, e mesmo tendo saído antes que crescesse ao ponto da água bater logo abaixo de seus seios, nunca se acostumou com os outros lugares em que viveu. Ainda via o mundo batendo forte com pernas e braços para que o rio batesse, ao menos, abaixo de seus lábios. Ainda via o mundo meio embaçado, da água que entrava nos olhos quando se cansava e afundava um pouco. Ainda procurava o cheiro do peixe fresco e o gosto da farinha. Ainda atrás do sol para se secar antes de voltar para casa. 
A história de Tita, uma história sem tempo, que se repete pelos apartamentos. Zona Sul ou Norte. Asa Sul ou Norte. Rio de Janeiro. São Paulo. Curitiba. Brasília. Uns rostos com histórias escritas. De umas Titas que não lembram se já tomaram banho hoje. Que esqueceram a chaleira no fogo. E que não lembram o dia, o mês, o ano. Titas que trocam o nome dos filhos com nomes de outras pessoas "daquele tempo" e que eles nem conhecem. Esquecem do nome dos filhos, se assustam quando eles chegam para visitar aos domingos, por esquecer até que eles já não são mais meninos.
Às vezes, até elas se esquecem que não são mais meninas a saracotear. E tiram a roupa, e saem desembestadas pela porta de seus apartamentos, atrás do rio.