segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Conclusão.

Olha, se você ao menos soubesse o quanto eu te amo - e amor imenso é mesmo assim, digno de falas de tela de cinema. Se você ao menos soubesse que esse meu amor se prolifera na distância, no silêncio do você-sabe-não-sabe, mas sei que sabe sim, sem que seja preciso dizer. Se ao menos você viesse para abrandar este calor e esta secura, esta noite feita para dormir, mas que estou a passar passeando pelos corredores do prédio. Insônia. Diz: você me salva? Disso e do que vier mais...é que eu ando tão sozinho - no físico, no espiritual, por todos os ângulos e lados. Olha, se você ao menos soubesse o quanto eu queria você aqui, e o quanto eu queria que tivéssemos dado certo, e o quanto eu fiz para que déssemos. Meu signo não batia com sua lua, que não batia com meu peso, que não batia com a cor de seu cabelo, que não batia com meu hábito de fumar, que não batia com os lugares que você queria frequentar, que não batia com as pessoas que andávamos, com os interesses que alimentávamos, com a vida que levávamos, que logo batíamos um de frente com o outro, em diversas batalhas, na guerra de um amor sem ter onde ou em quem repousar. Se você soubesse que eu cansei bem antes de desistir, que desistir não foi sequer cansaço, foi aceitação de um futuro duradouro para nós - quando distantes. Se você soubesse que, para você, nunca fiz meu máximo, nem sequer uma média, antes mesmo de me mover até você, eu já estava ofegante. E não era de desejo, de tesão, adrenalina ou saudade. Era de tanto bater com a testa na sua porta de entrada, e de você tanto não ver, e tanto me acusar de nunca ter tentado. Eu não te pediria para voltar, não por você, mas por mim. Porque eu não mais te quero como mulher, companheira, amante, ou qualquer uma dessas coisas recheadas de amor, ou paixão, ou dos dois. Se ao menos você soubesse como eu queria te pedir para que viesse, para me fazer companhia, e talvez, para um abraço. Eu lembro, você disse, você disse que estaria aqui, comigo, para sempre - e como valorizava sua própria palavra. E ainda que você viesse para dizer que a culpa de tudo é minha, ou para fazer mais uma de suas comparações, eu não me importaria, como nunca me importei. Triste se ele é mais homem, mais culto, mais doce, mais são, ou mais salvo que eu. Triste saber que, se não fosse eu - ou escolha sua -, você poderia ter passado os anos que passou comigo, com ele. Triste saber que se você quisesse, ele teria passado. Eu e você sempre fomos um problema à parte, um problema, mas muito bem resolvido. Insistíamos só pelo medo de acabarmos sozinhos - e olha como eu acabei -, mas sem saber que assim, seríamos menos desgastados e cinzentos, sem anéis nas mãos e sem uma nuvem preta na cabeça. Nós dois sabemos como a coisa acabou. Foi acabando a vontade, o carinho, o calor, o apreço. E a coisa foi virando uma bola de neve, depois um avalanche, e aí a coisa - e quase tudo - desabou. É que, a gente vai deixando a coisa esfriar esfriar esfriar esfriar e quando vê: nem coisa mais é...

domingo, 26 de setembro de 2010

Reminescências.

Sobre você, o que eu tenho a dizer? Bem, foram bons dias, meses, anos e quase-década. Foram bons momentos, bons vinhos, bons restaurantes, bons abraços, bons carinhos. Foi bom. Tudo aquilo, e tudo aquilo mais que veio depois de nos tornarmos o-de-antes. Mas você nunca foi nada excepcional, nada de novo, nada de fantástico, nenhuma qualidade gritante, nenhum talento admirável. Você só foi o que foi porque tinha que ser, ou sabe-se lá. Meio medíocre, com seus um metro e setenta-e-pouco, pele sem bronze, olhos cor-de-asfalto, barba por fazer, unhas roídas, pequena saliência no abdômen, falta de aptidão para as artes, falta de vontade de vencer, de fazer, de viver. Não sei porquê me envolvi - e como estive envolta em você, e com você -, mas também não é uma resposta que eu procure. Nessa chegada de seus quarenta anos de idade, eu quis pensar em tudo que poderia te falar, e pensei: são coisas que ficam à superfície. Não quis entrar em detalhes: boa companhia para tardes chuvosas, coração enorme, ótimo com crianças e animais de estimação, pessoa pela qual tenho um carinho enorme, sem contar um amor que ainda peleja em se desfazer - o que é um detalhe, então deixe para lá. Enfim, meus parabéns vêm junto com as perguntas sem resposta. "Não sei porquê me envolvi", e admito que de vez em quando eu a procure - a resposta. E não sei o que te fez tão especial. Não foi sua mediocridade, sua timidez, sua falta de jeito à luz de velas, ou como eu teria te ignorado se não fosse uma noite fria de Ano Novo. Para ser bem sincera, acho até que não foi nada em você que te fez ficar marcado em mim assim, porque não há nada em você que arranhe, corte, dilacere ou perfure. Acho que o que fez - e ainda faz - com que você seja o que é para mim, não é nada seu. Não é por sua causa que ainda sinto o seu cheiro quando deito para dormir, que ainda espero seu abraço depois de uma semana de trabalho, não é por sua ausência que às vezes choro. Às vezes acho que, o que ainda te guarda, é o amor que saiu de mim para você, por ser tão grande e pesado. Você nunca teve nada que te fizesse ficar, mas meu amor teve - e é por isso que ele está aqui, até hoje.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Chico.

Pra nunca esquecer, pra nunca esquecer, e beijou-me na ponta do queixo, e embalou-me ao som do disco. Suas mãos fortes e ásperas subiam e desciam por minhas costas, tateando o relevo. Seus pés grandes e desengonçados arriscavam giros. A gente era obrigado a ser feliz, não, a gente era feliz porque queria. E seu cavanhaque tentava esconder a voz grave que escapava pelos lábios rosados. E dos dois primeiros botões abertos da camisa, saltavam os pêlos de seu peito desenhado. E eu pequenina grudada em seus um metro e muita altura. E seus olhos de menino pedindo por carinho. E meus olhos se entregando e querendo saciar todos os seus desejos. E nossas mãos por debaixo das roupas. E a lembrança da infância, das árvores em que subíamos, dos anos que passaram, do tanto que mudamos, e esperamos, e aguentamos e ali estávamos. Pela primeira vez crescidos, e prontos, e com sede e saudade do toque nunca sentido. Respondendo aos primeiros sinais, que vieram quando ainda novos, aos Domingos, que ficávamos um a vigiar o outro, enquanto o resto da cidade ia para a missa. Sinais de um tempo mais depois, de quando você foi para cidade esse-moleque-vai-virar-médico-acredita? E a vizinhança inteira celebrava sua partida, enquanto eu começava pelos segundos a contar o tempo até que voltasse, se é que voltaria. E os segundos prolongaram-se até formarem anos. E de ano em ano, a-menina-decidiu-que-quer-ir-pra-cidade-grande, e também parti. E voltei a contar os segundos para que nos reecontrássemos na rua, passando pela Avenida Paulista, pegando o metrô na Vila Madalena, ou com o toque calmo de um telefone. Acontece que, somados sete anos, desde sua partida e depois desde a minha, resolvi voltar para ver pai, mãe, e os lugares que conhecemos juntos. E cheguei, moça-da-cidade-essa-aí, trazendo na mala alguns agrados que consegui trabalhando de garçonete, frentista, e de namorada de figurões. Aconteceu que, somados os tais sete anos, desde sua partida e depois desde a minha, o-moleque-que-virou-médico também resolveu voltar. E lá estava, de pé, na frente da igreja, branco como nunca vi, menos engomado do que se esperaria de um moleque-que-virou-médico. E olhou para trás quando escutou o barulho do meu salto nas pedras, e sorriu grande, feito queria sorrir de uma ponta à outra do mundo. E levantou-me pela cintura, esquecido de que já não era mais menino. Eu abracei seu pescoço, um beijo na testa e éramos os dois de novo. À noite teríamos festa, não-é-sempre-que-vocês-aparecem. E cada um em sua casa, e cada um em seu quarto, e cada um em sua melhor roupa que trouxe da cidade. E todos se encontraram no boteco, e todos se perderam depois de algumas garrafas e horas. E nós dois dançando, dançando, dançando, feito o vento frio tivesse suspirado que o mundo só continuaria a girar enquantos nós continuássemos a dançar. Hora por hora, todo mundo se foi, ficamos nós dois, as chaves da porta e a voz cantando. Foi quando pegou-me pelo braço, pra nunca esquecer, pra nunca esquecer, e beijou-me na ponta do queixo, e todos os movimentos crescidos e nostálgicos. E ali passamos a noite, dançando a dança dos gemidos saudosos e cuidadosos. Uma semana dali, e voltaríamos para a cidade. Quis contar os segundos, mas não pude acompanhá-los. Dias e noites de algodão-doce. Partimos em ônibus diferente, o-moleque-que-virou-médico e a-menina-da-cidade. Não fizemos promessas de reencontro breve, ou dissemos que daríamos continuidade. Ficou lá, breve, mas nem por isso, fraco, o sentimento que se dispôs ao resgaste do tempo perdido, ao aproveito do tempo encontrado. De repente, a cidade parecia menor, e seu corpo branco teimava em encontrar com minha pele manchada. E quem te viu, quem te vê, hoje a gente até se fala, mas a festa não continua, nos perdemos na saudade, no atravessar de ruas...

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Carta.

Dizer-te-ia que, quando chega-se a uma certa idade, cabeça vazia torna-se realmente oficina do diabo. Confessar-te-ia que, na minha cabeça, o diabo já domiciliou-se. Há tantas horas vagas em tantos momentos dos dias e das noites - principalmente das noites. Que pego-me pensando em toda a minha vida e, até mesmo, em vidas passadas. Admitir-te-ia que parece loucura - o que é pouco vindo de um louco -, mas acho que já estou vivendo pela décima terceira vez nesse mundo. Nasci no dia treze, em um ano que terminava com um, e em Março. Aos treze anos de idade mudei-me para outra casa há treze quilômetros de onde eu morava. Ao decorrer de toda a minha vida, morei em treze cidades, e apaixonei-me por treze mulheres. Treze é o número de porta-retratos que tenho na sala, e de talheres na gaveta da cozinha, e de cigarros que fumo a cada três horas. Embora, como eu já tenha dito, pareça loucura, isso faz de tudo que me circula, um tanto mais claro. E tenho pensando também que, estou à beira da morte. Porque há lucidos treze dias, comecei a ter uma tosse, que prolongou-se até parar agora, aos treze minutos para meia-noite de uma Sexta-feira treze. Hoje, faz treze anos desde a última vez que veio visitar-me. Lembro-me como se houvessem passado apenas treze minutos, você chegou com aquele seu rapaz, cujo nome há treze segundos perdi na cabeça, e disse-me apressada: estamos mudando para a Flórida, pai. E beijou-me a testa, e deixou-me algumas cédulas, e foi-se, deixando-me sozinho nessa cidade. Seu filho mais velho tem, hoje, treze anos, tenho certeza. E não espanto-me. Minha querida, abraçar-te-ia se estivesses por perto. As jóias de sua mãe estão em uma das gavetas do quarto: treze, entre colares e brincos, use-os, ou venda, ou nada. Guardei-as com cautela, perdidas na imundice do quarto. Daqui exatos treze minutos despeço-me, escuto a voz aqui dentro sussurrar. Treze é o número de pílulas que tomo toda noite antes de dormir. Hoje, acrescentarei mais uma, para demarcar o novo número. Guarde-me com carinho na lembrança.
Abraços.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Um e Dois.

I.
Sem querer, eu te acho, por entre as estantes, num velho álbum de fotos. Atrás da poeira, em letras desgastadas e douradas: férias. E não sei se abro ou coloco na lixeira. Paro para pensar: abro. Nós dois na praia, nós dois no parque, nós dois no banco, nós dois no restaurante, nós dois no barzinho, nóis dois e amigos, enfim, nós dois. Em todas as fotos, os mesmos olhares e sorrisos, tão loucos e apaixonados. Nunca pude te dizer, mas sabe, agora, olhando, foram sim momentos felizes. Foi sim uma vida feliz, aquela que foi nossa. Não adotamos um cachorro abandonado, ou tivemos filhos e uma casa no subúrbio, coisas que, há alguns anos, comecei a fazer com outra pessoa. É, acho que pensamos que, dessa forma, não seríamos completos. E sabe, até hoje não me sinto inteiro, mas não culpo a ninguém. Saio cedo, almoço na rua, volto do trabalho de madrugada, beijo a testa das crianças e, em um abraço sonolento, me cubro e durmo. Mas sou feliz, não daquele jeito louco e apaixonado, mas feliz. Com mesa posta e jardim florido. Não sei como nosso álbum-mais-feliz-de-fotos foi parar na estante, os outros se perderam entre tantas mudanças. Sei que, pensando bem, ele é a única parte que me cabe nessa sala, nessa casa, nessa vida. Seria estranho se eu te contasse como o nó dessa gravata me deixa preso, como a sola do sapato é grudada ao chão. Não sei, penso alto como se estivesse me escutando, e não estivesse atarefada com algum fazer urbano. Acho que sempre aconteceu alguma cumplicidade entre nós, e é por isso que eu penso, e penso que você me escuta. Por favor, diga que está me escutando.

II.
Sem querer, eu te acho, por entre as caixas, num velho caderno de anotações. Atrás das coletâneas, em letras maiúsculas e borradas: o livro dos sonhos. E não sei se folheio ou rasgo. Paro para sentir: leio. Nós dois apaixonados, nós dois embriagados, nós dois aninhados, nós dois molhados, nós dois perdidos, enfim, nós dois. Em todas as linhas, os mesmos traços e abraços, tão loucos e apaixonados. Nunca quis te dizer, mas sabe, agora, lendo, foram sim estórias felizes. Foi sim uma vida feliz, aquela que foi nossa. Não viajamos por toda a Europa, ou nos beijamos na Torrei Eiffel e na Ponte dos Suspiros, coisas que, há alguns anos, fiz com outra pessoa. É, acho que pensamos que, dessa forma, não seríamos inteiros. E sabe, até hoje não me sinto completa, mas a culpa é toda minha. Acordo cedo, nem almoço, chego no aeroporto de madrugada, desfaço as malas e, em um abraço saudoso, me despido e durmo. Mas sou feliz, não daquele jeito louco e apaixonado, mas feliz. Com muitas milhas e lugares a visitar. Não sei como meu-livro-mais-realizado-dos-sonhos foi parar nas caixas, os outros se perderam entre tanta correria. Sei que, pensando bem, ele é a única coisa que me lembra, do passado, do presente, da vida. Seria estranho se eu te contasse como viajar de avião me aterroriza, como eu rezo para chegar logo ao chão. Não sei, penso alto como se estivesse me escutando, e não estivesse distraído com alguma tarefa suburbana. Acho que sempre aconteceu alguma sintonia entre nós, e é por isso que eu penso, e penso que você me escuta. Por favor, diga que está me escutando.


Saudades.

Não entendo, quando me distraio, vem forte a saudade. Uma saudade maleável, feito massinha de modelar. Saudade que toma feição de um, e depois de outro. Que me leva aos descontrolados dezesseis anos de idade, aos calmos setenta e oito verões. Saudade do que passou, e também do que virá. Penso na infância, nos vinte dois assentos de uma sala de cursinho de inglês, e de repente a saudade toma conta de dois ou três rostos conhecidos. Vem aquela vontade de vê-los de novo, da forma que eram, sem a pressa de hoje. Lembro do carinho, da inocência das primeiras palavras fora da língua materna. Depois penso na escola, na jovialidade e incandescência dos primeiros amores: os beijos roubados, inexperientes, mas sinceros. A saudade penetra, circula pelas veias, rega os olhos, e dói. A gente sempre quer voltar, a gente sempre quer voltar. A saudade às vezes parece até doença, uma doença contagiosa, que é transmitida pela boca. No boca-a-boca a saudade flutua: você-se-lembra?ah-como-era-bom! E a gente sempre quer voltar, a gente sempre quer voltar. Mas se eu voltasse, seria para rever todos os rostos, sem as marcas de expressões que hoje exibem, livres de todas as amarguras que hoje carregam. Eu voltaria apenas para tê-los imunes de novo. A saudade não é arrependimento. E enquanto, agora, eu acendo mais um cigarro, eu daria tudo para estar sentado em mil novecentos e sei lá quando, chupando um pirulito e jurando que seria assim para sempre. A saudade é maleável. E também é minha.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Eu Te Preciso.

Sabe, eu sei lá, as pessoas falam tanto do cosmos, do zodíaco, da vida-é-um-ciclo-sem-fim, do ano em que o mundo há de acabar, dos grandes impérios que falecem logo depois de vigorarem. Sabe, eu sei lá, não entendo muito dessas coisas, eu acho que a vida é o hoje, quer dizer, o agora, porque daqui a pouco eu posso estar morto estatelado no chão, ataque do coração ou engasgado com uma pipoca. Sabe, eu sei lá, andei pensando muito nessas coisas. Que coisas, né, você se pergunta: nessas coisas solitárias e amendrotadas nas quais todo mundo pensa. O-que-vem-depois-e-viemos-ao-mundo-como-metade? Sabe, eu sei lá, não sei se é preciso pensar nessas coisas, mas a a gente sempre pensa, é quando o tempo ataca e a gente para de se importar apenas com os pés-de-galinha e os fios grisalhos. Sabe, eu sei lá, resolvi me poupar um pouco dessa paranóia em querer saber o que virá depois. Não sei, precisei me desgrudar um pouco da ganância e aceitar que não virá nada, e que, se vier, é para eu levar com surpresa, bater palmas e ainda-bem! Sabe, eu sei lá, mas resolvi pensar nisso de metade, vai ver porque ainda não encontrei a minha, ou deixei que passasse sorrateira por mim - por não ter pensado nisso antes. Sabe, eu sei lá, mas acho que isso de metade acontece mesmo, acho que tem um pedaço meu solto por aí. Sabe, eu sei lá, mas acho que nada tem sabor sozinho. O pedaço de carne que você está fatiando agora, ninguém comeria se não tivesse sal. Sabe, eu sei lá, mas acho que a vida não me engoliria sozinho, acho que falta a outra parte. E é por isso que depois de tantas perfurações, tantos vômitos, tantas tosses, ainda estou aqui. Sabe, eu sei lá, mas eu acho que as únicas coisas que prestam sozinhas são as frutas. Tipo a maçã, você não precisa de açúcar para saboreá-la, ela é boa assim, eu acho. Você não acha? Tipo que tudo que existe aqui é incompleto. Como, por exemplo, o próprio concreto. Ele não é só, é ele e mais um bando de coisa, e é assim que ele serve. Sabe, eu sei lá, acho que não vou ser engolido sozinho. Acho que até lá alguém vai surgir, vai rolar aquela identificação hollywoodiana de você-é-tudo-que-eu-sempre-quis, e viveremos ótimos momentos ao pôr-do-sol, e dormiremos agarrados, e teremos ótimas experiências na cama - e em outros móveis -, e talvez, discutiremos o bastante para nos sentir sufocados, e perceberemos que o sufoco só existe mesmo estando um sem o outro. E um dia, quando já tivermos dado o que tínhamos para dar, eu morrerei no meio da noite, serei levado pelos anjos, pela ambulância, eu sei lá. E ela aguentará mais alguns anos de luto, alucinações e dor profunda, e também se vá. Sabe, eu sei lá, mas acho que funciona mesmo assim. A não ser que você tenha deixado passar, e aí sim, aí sim você se torna inútil, insípido. E a vida só te engolirá quando lembrar que você ainda existe. Provavelmente em uma madrugada de Natal, enquanto todos se reunirão em volta da mesa, e você estará desmaiado no chão do banheiro, depois de ter inalado toda a neve tropical que pôde comprar com o dinheiro que roubou da carteira de uma velhota. Sabe, eu sei lá, é mesmo assim triste, mas acho que é isso, você não deu o que a vida quis e, então, morre quando menos espera, parecendo um cretino, um ingrato. Eu sei que não faz bem pensar nisso, mas de uma forma ou de outra, depois dos trinta e cinco, todo mundo pensa. Eu só quis te falar para você abrir os olhos. Sabe, eu sei lá, você sempre foi bem mais distraído, e não quero que isso aconteça contigo. E você sempre gostou de ceias e festas e presentes, seria tão cruel e triste. Sabe, eu sei lá, meu amigo, eu não quero que isso aconteça contigo, mas até pensei no que diria em seu funeral: um dia escrevi sobre a lua em seus olhos, quem um dia diria que hoje eu estaria escrevendo sobre o vazio em seu peito. E ter que dizer isso, seria de uma dor imensurável, porque eu teria te avisado. Tudo bem, pelo choque, a dor só viria no Natal seguinte, quando por descrença e descaso, eu talvez acabasse no mesmo banheiro, e no mesmo buraco, sufocado. Sabe, eu sei lá, mas acho que, até lá, eu já teria parado com essas coisas sintéticas, naturais, frenéticas, mas mesmo assim fico com medo. Sabe, eu sei lá, mas acho melhor eu achar minha metade logo. Ou se quisermos fugir logo disso tudo, eu posso dizer que a metade minha é sua, e vice-versa, e puta que pariu, eu preciso te dizer que não posso morrer sem antes ter você. Sabe, eu sei lá, saiu feito soluço, não tive como evitar. Sabe, eu sei lá, mas acho que isso tudo não veio da idade ou do álcool, puta que pariu, eu te preciso.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Segunda.

Passava o fim de semana, as garrafas desprovidas de fundo, os cinzeiros cobertos até o talo. Passava o fim de semana e logo era segunda-feira. Na cidade da seca e do céu aberto, nunca faltava uma segunda-feira. Voltava o trânsito, as crianças gritando no caminho para escola, as contas a serem pagas, a geladeira vazia. Eu só sabia dizer que o inferno havia voltado quando você aparecia de camisola no escritório, sacudia as cortinas e que-poeira-nunca-vai-se-livar-disso-não? E acontecia o mesmo estrago: eu balançava a cabeça, erguia os óculos e apagava o cigarro na parede. Você me dava um tapa nas costas, catava os copos e as quimbas do chão. Isso-ainda-vai-te-matar. E nem um bom dia, ou um beijo atrás da orelha. E você ia até a cozinha, e deixava alguma coisa cair, e me gritava, ainda sabendo que eu não me moveria. E você voltava descontando sua raiva e frustração na porta, e vinha me dizer que eu não prestava para coisa alguma, e rasgava as palavras que tanto tempo eu havia levado para escrever. E dizia essa-porra-não-serve-para-nada! E acha-que-pode-viver-disso? E que eu era muito cínico por achar que ainda tinha algum talento depois de tantas recusas, que dinheiro não cai no colo, e que tínhamos contas para pagar, e uma geladeira vazia pra completar. E ficava incomodada com minha cabeça apenas balançando para concordar, e com a caneta entre meus dedos. E me dava logo um tapa na cara, e segurava outras folhas, e de novo, rasgava. Isso não é poesia não! Isso não é arte não! Isso é depressão, meu querido! Isso é loucura! Isso é coisa para publicar na nota de rodapé de um jornal: homem-falido-de-30epoucos-anos-se-mata-de-desgosto! E continuava a acabar comigo, e eu a escutar como se já não doesse mais. E eu pensava que tudo bem, afinal, é segunda-feira. E você batia com os dois pés no chão. E eu lembrava das noites de Sábado, depois de algumas doses, você sentava no meu colo e me pedia para recitar o primeiro poema que te escrevi: Soube no primeiro segundo, era a mais bela, e segurava minhas mãos e meu mundo. E pedia para que eu repetisse, e eu repetia. E pedia para que eu sussurrasse em seus ouvidos, e eu o fazia. E queria tirar minha camisa e mergulhar na cama, e dizia me amar mais que tudo, e dizia que eu era um gênio, e me puxava pela barba e exibia meus olhos para os amigos, dizendo, ele-não-é-lindo? E por tanto intimidar, os outros prontamente concordavam, falando que meus olhos pareciam um-mar-sem-fim-vocês-não-acham? E pediam para que eu lesse alguns dos textos novos, e tímido, eu negava, mas logo cedia. E aí era sábado, e nos sábados era diferente, e era diferente até mesmo nos Domingos. Em que você acordava nua e com dor de cabeça, repousada em meu peito, pedindo água e cafuné. E então eu fazia de tudo, inclusive o café. E a gente passava o dia assim, se aninhando e se protegendo das dores que viriam. E as horas iam passando, e depois de tanto papo fora, você adormecia. Eu voltava para o escritório, para continuar as tão-brilhante-estórias que no dia seguinte você se esqueceria. E aí chegaria a inevitável segunda, com você aparecendo de camisola no escritório, sacudindo as cortinas e que-poeira-nunca-vai-se-livar-disso-não?

Ca(n)sados.

Beiram os cinquenta, quase sessenta, anos. Ele parece mais velho que ela, talvez pela tintura loira-queimada dos cabelos dela. Pelos quais ele passa a mão, tentando ajeitar os fios. Os dois bebem o mesmo, chopp claro em um copo tão gelado quanto o lago logo em nossa frente. Não dialogam, não de uma forma que eu possa ouvir. Apenas trocam olhares, e ele resmunga enquanto ela faz uma ligação. A relação dos dois não está exposta nos dedos, nem visível na distância. Apenas trocam olhares, acendendo e apagando cigarros. Cada um com seu maço, não dividem nem os tragos. Ele a encara até parecer cansado, e fixa os olhos em algum ponto perdido do lago. Ela se volta para ele, e pergunta alguma coisa. Ele que, distraído, não responde. E então recebe um chute na canela. Ela levanta a voz, ele abaixa os olhos. Por mais uma vez, ela fala, e ele não responde. Ela suspira alto, e cata as últimas migalhas da cesta de pão. Suja a boca e as mãos, e ele entrega um guardanapo. Vi que, um tanto antes, aquele mesmo guardanapo serviu para que ele rasurasse alguma coisa. Ela se limpa, e depois resolve ler. Não sei o que estava lá, mas sei que teve importância pois, dois segundos depois, ela se mudou para a cadeira ao lado dele. Passou as mãos pelos escassos fios de cabelo dele, apertou seu queixo, e selou o movimento com um beijo. Por mais que eu admire seu silêncio, ainda acredito nas palavras, cegamente nas palavras.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Voltei.

Andei por todos os caminhos, andei sim. Toquei peles mais escuras, lábios mais recheados. Ajudei-as a tirar de roupa, a encaixar-se em minha boca. Andei trocando as pernas, com o gosto de vodka, saliva, hortelã, e secreções das mais diversas. Precisei passar por tudo isso antes de voltar. Não, não precisei, mas eu quis. E serviu como experiência. Enfim, eu disse que nunca mais apareceria na sua frente, e é por isso que estou assistindo você de costas: pegando um pequenino orelhudo no colo e colocando-o no balanço. Deve ser seu filho, aquele que você chamaria de qualquer coisa excêntrica que não me recordo mais. Já estou aqui há duas horas, sem que você perceba. Vi quando o moleque sujou sua calça jeans e você soltou um palavrão. E todas as consecutivas vezes em que você olhou para o celular. Fico aqui parado, e enquanto isso você se prepara para ir embora: cata todos os brinquedos, arruma a blusa e vai. Espero aqui por mais umas três horas. Ainda parado. Fico parado no grau zero da saudade: aquele grau em que não sei se te toco, ou se te esqueço logo de uma vez. Aquele grau em que não sei se te toco porque pode estar dormindo ou por estar tão longe. Aquele grau em que não sei se te esqueço porque não sei se quero ou porque sei que não consigo.

Policronías.

Imagine-me agora: estou sentado na terceira fileira do ônibus, do lado esquerdo, no assento que dá para a janela, ao meu lado está uma senhora de idade caçando palavras. Eu deixei minha barba crescer e, quando viro a cabeça, ela consegue encostar na gola da camisa. Camisa que você me deu quando completei dezenove anos, e nós dois resolvemos vestir nossas mochilas e atravessar a América do Sul. Mesma camisa que eu usei em nossa primeira noite em Buenos Aires, quando fomos admirar a Casa Rosada, e eu lhe disse que a chamaria de Casa Salmão. E você, por todo o carinho, ainda riu, e eu ainda lembro até da risada: que começou no canto direito de seus lábios e terminou em gargalhadas com você montada em minhas costas. Passaram-se doze anos desde então, e a única coisa que peço é que imagine-me agora, no exato lugar em que estou. Não, não há nada de especial por aqui. Nada além do reflexo do sol nas sufocantes janelas, nada além das grávidas procurando uma posição confortável, nada além das crianças batendo com moedas nos ferros. Em questão de cinco ou dez minutos, eu pedirei licença para a senhora ao meu lado, e descerei do ônibus. Precisarei, ainda, atravessar o Eixão. Por cima, como fazíamos, correndo de mãos dadas entre os carros, gritando trechos de uma canção qualquer e fazendo gestos antipáticos para os motoristas. A gente viveu tão fechado em um mundinho-quatro-por-quatro que, quando saíamos, parecíamos dois gatos ariscos. Aquela nossa viagem, até que fez bem. Apesar dos maços a mais de cigarro, dos goles de café e cerveja batendo nas úlceras. Parecíamos até domesticados, não falávamos apenas um com o outro, não saíamos pelas ruas apenas um com o outro, não dormíamos mais apenas um com o outro. Mas não sei o que aconteceu, o mundo de repente pareceu assim tão grande, e a curiosidade pareceu assim tão imediata que, já não dormíamos um com o outro, não saíamos um com o outro, não falávamos um com o outro. E cada um com seu caminho, cada um com seu lado da estrada, você resolveu voltar, e eu quis continuar. Conheci mais, tanto mais, que não há nem espaço para guardar comigo. Contigo, aposto que aconteceram coisas ótimas e, pelo carinho, guardo a ti sem mágoas e com alguma folga. Agora, em questão de segundos, estarei de frente para o Eixão, apertando os olhos contra o sol para poder enxergar o momento. E o momento logo chega, e então eu atravesso. Fico parado no grau zero da saudade. Olho para um lado e vejo alguns ipês e meu prédio. Olho para o outro e vejo algumas mangueiras e seu prédio. Com uma quadra e alguns versos de distância: Es increíble pensar que hace doce años. Que nem eu li naquele poema de Cortázar. Do qual não gostou. Es increíble pensar que hace doce años: e ainda assim eu te gosto. De tudo em ti eu gosto. E de nada em ti eu esqueço.

domingo, 12 de setembro de 2010

Sombra.

O sol despencou e bateu no topo da sua cabeça. E um eu-te-amo-vai-ficar-tudo-bem não foi o suficiente para sanar o descontrole. Você deu para beber, desacreditar em Deus, quebrar copos e lamber seu próprio sangue. Você quis me pedir ajuda, mas quando se lembrou do idioma que falava, acabou por desmaiar em cima do próprio vômito. A lembrança que tinha de seu rosto fino não incluía feridas em carne viva, nem cuspe. Eu te tinha na memória como um anjo moreno, de olhos e lábios brilhantes, mãos delicadas e pés pequenos. Não posso dizer que doeu te ver assim, porque em meu lado mais obscuro, eu já quis até te ver morta. E ao mesmo tempo, no restante de amor que ainda vivia, quis te ver morta para que eu mesmo te ressuscitasse. Porque vai ver, assim, você acordasse e se lembrasse dos sonhos, antes de você os raptar e realizar com outros. Não é o momento para falar de mágoas, o passado não condena, e não vai te condenar, ele apenas me sufoca. E você está aí, na mesma situação que eu, sufocada por sua própria bile. Enfim, não importa. Minha mãe me dizia que se paga sempre na mesma moeda, mas deitada aí, você não parece sentir dor. O que traz às minhas pernas uma vontade de chutar sua cabeça. O que pouco adiantaria, pois a dor só viria quando você, enfim, acordasse. E a dor que eu senti, eu senti até dormindo. Você não teve piedade, nem por um minuto sequer. Eu sei que agora você mesma se condena, pagando pena de morte-vida, se arrastando pelos buracos da cidade, deixando a cidade toda se esfregar em seus buracos. Sabe, se eu fosse um pouco mais altruísta - embora um dia você tenha me dito que altruísmo vem do mesmo lugar que os príncipes encatados -, eu apoiaria seu rosto em meu colo, e tentaria te acordar calmamente. Mas infelizmente, o que me resta fazer, é fechar mais uma vez essa porta, e fingir que nada aconteceu. Porque é, você nunca aconteceu para mim. O que eu vivi, com ou sem tigo, foi um pesadelo. E agora é sua vez de acordar desnorteada. Cuidado com as escadas e ande pela sombra, sombra minha.

Despontuado.

Sete horas da manhã os pássaros cantando enquanto o caminhão de lixo dá a última volta pela rua, sinto cheiro de enxofre sujeira grama molhada garoa fraca e fumaça. Acendo um cigarro sabor de tabaco um tanto amadeirado e cancerígeno preparo um café aguado sem açúcar, engulo junto a um punhado de remédios: anti-depressivos todos coloridos querendo fazer de tudo um pouco alegre e acalmar o coração que ainda vivia doído dum passado ao qual ainda vivo preso. Eu penso que queria ter asas e penso que o jornal está jogado lá na frente da minha porta de frente e penso em tomar coragem de levantar da cadeira e reparo na mancha de vinho tinto ocupando três dos azulejos brancos encardidos. Lembro do almoço às quatorze e penso em ir pelado porque de tudo louco é dispensado que nem daquela vez que fui me alistar no exército e contei dos anti-depressivos e das histórias sobre as marcas no pescoço e nos pulsos e chorei e falei o nome dela repetidas vezes e me olharam até que com pena que por pouco durou. E é quando ligo o som e Caetano começa com aquela voz suave me dizendo que estava com medo e sem cais e imagino que sem qualquer coisa alguma mais sinto até uma compaixão por ele que ainda parece esperançoso, penso que burro sem saber se sou ele ou eu e penso que eu podia ter escrito a letra da música e ter trocado o Congresso pelo Arpoador e colocado um saxofone para deixar mais blue mais triste como eu dizia quando me perguntavam em inglês e colocado alguma frase em outra língua estrangeira para ser cantada com a voz estridente do desespero. Canso do som deixo Caetano cantando sozinho na sala sigo até o quarto empoeirado escuro com uma mulher deitada pelada de bruços na cama de cabelos louros inclusive os que escondem o caminho lembro de repente. Não é ela ainda lembro não esqueço e não quero e nem posso está preso, eu penso. E novamente me deito e cubro as costas da tal mulher e ela pensa que é carinho e prende meu braço entre os braços e peitos dela e aí eu sinto nojo e quero ir embora mas estou preso e não me movo e nunca me movi e fico ali fingindo que estou gostando. E ela tem uma tatuagem tribal delineando as coxas e as unhas dos pés pintadas de vermelho e penso meu Deus! meu Deus! dormi com uma prostituta e lembro que foi somente a quarta vez na semana na qual só se passaram três dias e aí até me sinto meio prostituído nesse trabalho não-remunerado de esqueço não esqueço esqueço sim não esqueço mesmo e enfim desisto.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Tudo Era.

Enquanto você ficava me dizendo que o problema era comigo, era com a gente, que não havia outra, que nunca houve, eu imaginava a vadia deitada em uma cama de hotel, esperando que você retornasse com boas notícias: agora-sou-seu, e estourasse o espumante barato que segurava entre as pernas. Imaginava a vadia experimentando minhas roupas enquanto eu estava naquela conferência em Moscou, alisando os pêlos de nosso buldogue francês, virando os porta-retratos para baixo por "respeito". Calculava os anos que se passaram desde que nos desentendemos pela primeira vez, para deduzir há quanto tempo estava com ela, ou quantas outras vieram antes, e o motivo pelo qual ela se tornou tão especial. E enquanto eu ia pensando, e imaginando, e entrando cada vez mais nos cantos escuros de mim, você continuava discursando: eram os trilhos, e o trem, e o descarrilhamento, e a via de mão dupla, e de repente a contra-mão. E você me pediu atenção, foi quando eu derrubei o bule de água fervente, e amaldiçoei sua família por gerações, feito minha raiva tivesse conseguido se ver na eternidade. E sem que eu pudesse evitar meus olhos derreteram em lágrimas, e meu corpo amoleceu. Você me tomou pelos braços, passou a mão por meus fios de cabelo, e com sua voz aveludada tentou dizer que estava tudo bem. Parecia certo disso, mas a imagem da vida sem você não me fugia da cabeça: seriam dias sem sol, noites trancadas no apartamento, você e a tal mulher desfilando de mãos dadas aos Domingos no calçadão, eu assistindo da varanda - mesmo morando há três quarteirões da praia em um apartamento virado para o centro. E de repente tudo era medo. E de repente tudo era medo. E de repente, tudo era medo.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

Apesar de toda a sua beleza, do que mais sinto saudades é de seus pés sujos depois de passar o dia andando descalça. Não sei o que me vem à cabeça, o que me dá no coração, mas a falta vem mesmo de todos os seus quase-defeitos, e de tudo aquilo que deveria te levar para longe. Sempre disse que me incomodava seu descaso: eram os vestidos mal passados, as meias manchadas, a falta de abraços apertados durante o sono. Hoje, são coisas que me passam pela cabeça, atravessam a memória, dando piruetas e calafrios. E que, surpreendentemente, me trazem sorrisos. Todos muito tristes, pelos motivos que um dia te disse. Eu que te coloquei para fora, então sua ausência me tem como causa. E toda essa tristeza e malemolência como consequência. Não que eu ande perguntando por aí, mas sei que você está bem. Não sei se casou, se já passou por três divórcios ou se agora tem um par de crias em um internato suíço. Sobre essas coisas eu nunca perguntaria. Claro que queria saber, mas sei que, ainda hoje, doeria. Se está casada: que merda. Quero dizer, que bom, que ótimo, que felicidade, meus parabéns! Que ele cuide muito bem de você, e não se esqueça de alisar sua nuca no frio. Se já passou por três divórcios: boas notícias. Talvez não para você. Um dia eu te disse, cheio de segurança, embriagado depois de uma garrafa de conhaque, eu te disse, você se lembra? Disse que eu era não só o homem, mas o amor, da sua vida. E isso não prova nada mais, espero. Se agora você tem mesmo um par de crias em um internato suíço: decepcionante, minha querida. O que aconteceu com os verões na Sicília? Aquela educação toda consciente: plantando árvores, aninhando coelhos, comendo chuchu e separando o lixo orgânico do lixo sei lá e do lixo sei-lá-mais-o-quê? Enfim, se sim, só posso te pedir que se acalme: a vida é dura, isso eu sempre te disse, até mesmo sóbrio. Posso não ser o pai, não aguentar as pestes correndo pela casa, mas tenho vontade e espaço. Além desse carinho todo por ti. Digo carinho para não parecer desesperado. Mas o desespero já está aqui. Não tenho merda de carinho nenhum. Tenho todo o amor do mundo! E todo o arrependimento! E toda a saudade! E toda a culpa! Uma culpa filha da puta, por saber que quando pude te segurar pelo braço, e encostar seu corpo no meu, e pedir para que ficasse, preferi segurar uma garrafa, e pedir para que jogasse no lixo, ali bem do ladinho da minha vida.


Do blog: http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Sorte do Dia.

Dezessete cigarros, apagados na sola do sapato, sujo de lama e solidão. Na cidade, há secura e saudade. Do décimo andar de um prédio comercial, vejo o céu. Irrevogavelmente cinza, e limpo, na medida do possível. Já passaram das três da tarde, já passaram apenas alguns milhares de carros na rua lá embaixo. Alguém insiste em bater na porta, gritando com desespero. Não abro, apesar de não estar aqui escondido. Antes de entrar, tentaram me dizer que seria um dia como outro qualquer. E não duvido que seja. Não há silêncio. As buzinas, os freios, as batidas, as canções, estão todas subindo até aqui. Abraçando minhas costas feridas e cheirando minha nuca. Já pensei em pular, e não me sinto especial por isso. Todos sempre pensam, às vezes somente pela curiosidade em saber o que vem depois. O que vem depois? Não sei, ainda vivo o agora, sobrevivo rememorando o passado, as partes dele que não esqueço. A porta agora parece estar sendo espancada, o que considero uma tremenda maldade. A culpa não é dela, então parem. E parem de gritar. E de chamar meu nome. E de atirar papéis com recados. A janela está suficientemente aberta para o que virá depois. E tenho a certeza de que quando chegar o momento, eles estarão aqui dentro, com outros do outro lado, usufruindo do mesmo desespero. Alcanço meus óculos e dou uma olhada na tela do computador. Sorte do dia: não há sorte. Se depois tiver, depois vocês descobrem. Um abraço apertado em seus olhos chorosos, em suas vozes trêmulas e agudas. Acredito na distância e nas palavras. Distante, agora eu vou.

sábado, 4 de setembro de 2010

Encontrar.

Sempre tive muito apreço pelo mistério, muito apreço pelo mistério das pessoas misteriosas. Com os anos, aprendi a não tentar violá-lo, decifrá-lo, e sim a deixá-lo quieto e sereno. Quando a vi, já tinha entendido a distância do secreto, o sagrado dos mistérios. Nada diziam aqueles dois olhos. E nada eu iria perguntar. Ficaram presos na garganta, unidos àquela vontade louca de sabê-los. Quando sumiram da vista, arrependi-me por nada tê-los perguntado. E saí hipnotizado à procura. Todas as ruas e avenidas, todos os bares e cafés, todo o tempo e o tempo todo: inútil. Eis que, um dia, já tendo desistido, apareceram na minha frente. Aqueles dois mesmos olhos, tão misteriosos quanto o corpo de mulher. Ela quem fez as perguntas. Fui eu quem tanto procurou, mas foi ela quem encontrou.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Idade.

Agora, aos meus lúcidos oitenta e três anos, sei que cada destes foi uma vida, e que, em cada uma delas, conheci muitas outras. Que passaram pela fresta da porta, que segui calmamente pelas avenidas, que me acompanharam excitadas até o apartamento - no qual ainda habito. Não consigo me lembrar de cada uma das lições que aprendi - talvez esteja sofrendo de algum desses males idosos -, mas lembro de cada um dos corpos que explorei. Pela maioria estive apenas de passagem: pés, pernas, cada fio de cabelo. Poucos, muito poucos, conheci à fundo: cicatrizes, órgãos pulsantes, lirismo. Indubtavelmente, cada um deles me deixou uma marca, sejam elas feridas, lingerie francesa, versos frescos, novas posições do kama sutra, ou saudade. E cada um deles, é claro, levou algo de mim consigo: um pouco de amargura, um arranhão, lenços de papel, doses de whisky diluídas no sangue, ou saudade. Cada uma das partidas teve como início um parto, vezes anestesiado e sonolento, vezes doloroso e demorado. É possível que eu ainda conte nos dedos caleijados as vezes em que verdadeiramente sofri. É possível que eu ainda me lembre dos nomes e, com algum esforço, até dos sobrenomes. Mas não que haja relevância em qualquer parte de minha memória. Enquanto citei, por alto, os tais males, lembrei-me de algo mais: nem tudo do que me lembro é mesmo lembrança. Certas coisas me vêem à cabeça, como o pôr-de-sol em Paris, em uma tarde de Outubro, lindo e solitário - como eram os pequenos beija-flores da minha infância -, nunca aconteceram. Tenho certeza de que já estive na Europa, quase certeza de que já passei pela França, mas nunca alcancei um pôr-do-sol em Paris, muito menos em Outubro. Enfim, o que importa é o que há de concreto: houveram corpos nos meus, e algumas das almas deles na minha. E voltando às lições, sei que me lembro apenas de uma, que a mais doce voz me disse durante o parto: Quando o fim chega ao fim - e aí é o fim mesmo -, só ficam as marcas de sol. Especialmente nos dedos. Mal soube ela que, além da bicoloridade do dedo anelar, ficou também uma sombra no peito: silenciosa e incolor. E essa eu acho que não tem salvação - nem sol que cure.