terça-feira, 28 de maio de 2013

Um curto conto sobre o sonho de ter sono

"Fazia de tudo para não pegar no sono, para manter a alma dentro de mim, onde era seu lugar".


Eu rolava, de um lado para o outro. Desenhando o infinito nos lençóis. O dia havia sido quente - e sem vento. E mesmo quando o sol já havia baixado, o suor continuou escorregando pelas costas. E com a lua já lá no alto, respirar permanecia insuportável. Madrugada, de segunda para terça. A cabeça se movimentava ainda mais rápido que os pés buscando o sono. Quando parecia que estava perto, vinha à cabeça uma lembrança inesperada.
Um perfume. Um trecho de música. Uma imagem. A voz de alguém que ficou para trás.

Era a lembrança surgir para dar início, então, ao ciclo que foi se repetindo até o primeiro compromisso da manhã. Eu não conseguia deixá-las ir sorrateiras como vinham. Fiquei tentando desmembrá-las. 
Por que agora? E por que essas, se haviam tantas outras?
A luz acesa do poste revestia a parede do quarto de imagens sombrias.
Não conseguindo dormir, eu não conseguia parar de agitar - o corpo e a mente. Vesti o primeiro casaco que encontrei e desci para o carro. O casaco é reflexo das inúmeras vezes em que escutei minha mãe repetir, aos berros, para não esquecê-lo em casa.
- Você não quer morrer de pneumonia, menino!
Ironicamente, foi ela quem morreu assim. E em seus quase sessenta anos, não tenho quase nenhuma memória dela com os braços à mostra.
Então, por ter aprendido a lição - psicanalistas usariam o termo "trauma" -, protegido do vento frio - e imaginário -, saí para ver o céu.
Não sei se por modismo, ou pela violência imbatível com a qual ele nos arremata, o céu é o recanto de todos - único teto comum. Dele, eu tiro, tu tiras, ele tira, nós tiramos, vós tirais e eles tiram, fotos, sempre que temos oportunidade. Um ritual estranho - mas que ninguém mais estranha. Num tratado silencioso, é como se assim guardássemos nosso "terreno nos céus". Como se, desta forma, pudéssemos ter um pedaço só para nós. Um pedaço só nosso. E, com sorte angular e material, mais bonito do que o dos outros.
Só três carros passaram por mim durante a madrugada toda. Naqueles instantes, então, o céu pertencia somente a mim. Era o que eu sentia - e se o sono me vinha sendo negado, pelo menos de pé eu podia sonhar.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Onde o infinito toca o chão.

"Love is a dress that you made
long to hide your knees".

Eu fui te apagando como se tudo não passasse mais de nada. Como se o tempo fosse um pedaço de argila fresca em minhas mãos. Eu não me esqueço da forma como as coisas se deram. A gente repetia assim, com o peito cheio de orgulho: era para acontecer. Achando que isso tornaria tudo tão mais singular. Hoje, eu sei, são assim todas as coisas da vida. Feitas para ser. As que não são, simplesmente não existem ou fogem de nosso conhecimento.
Foi natural. O desenrolar das coisas. Porque eu estava ali e você também. Estávamos cada um de um lado. E depois, um ao lado do outro. Cada vez nos aproximando mais e mais, num movimento assimétrico, mas também contínuo. Já perto do fim, éramos - sem que pudéssemos ser - um só corpo, um em cima do outro, uma figura só. 
No começo, você me olhava. E eu desviava. E aí te olhava. E repetíamos os passos. Prolongávamos essa encenação por horas. E quando dava tempo - entre um olhar e um desvio -, íamos tentando capturar tudo já tatuado na pele, que ficasse exposto. A constelação de sardas, a cicatriz debaixo do queixo, a marca do bíquini, as falhas na barba. Em seguida, foi a vez dos toques. Fechávamos os olhos e ficávamos nos tateando no escuro. Por fim, já sabíamos nossa linguagem em braile. Eu sabia te ler até do avesso, e vice-versa. Até chegar ao ponto de total transparência - ou existência de um somente quando no outro.
Era bem bonito: o sentimento, bem mais que o cenário. Porque tropeçamos, e arranhamos mãos e joelhos. Tínhamos, por dentro e por fora, novas marcas - provocadas, continuamente, por nós.
O sentimento não constava em nenhum dicionário ou enciclopédia - era só nos olharmos por mais de cinco minutos para lembrar disso. Era uma coisa solta no mundo. Completamente desprendida do resto, mas engendrada na gente. Quando tudo em volta se calava - para isso, era preciso trancar o quarto e fechar as persianas -, até o cenário mudava de tom. Quando distantes de tudo, o resto não era nem resto - pois nada mais tinha capacidade de existir. 
É preciso relembrar que houveram rupturas e, fisicamente, deixamos de estar do mesmo lado, por uma, duas, não mais que dez, vezes. E ainda anunciando o fim, o peito continuava a inchar, e a inchar cada vez mais. E quase que estourava - aí, então, eu buscava a sua, e você a minha, mão.
Eu lembro do tempo em que bastava te ver para ser virada de ano novo aqui dentro, outra e mais outra vez. Cada visita sua era uma chance de vida nova. Tudo em mim gritava. E eu te derrubava só para te prender em mim. E eu te levantava para parecer sempre necessário. E a vida era estar junto - erro. E nada mais importava. Pois eu era tão seu e, eventualmente, eu era tanto você, que fora desse casulo nada fazia sentido - engano.
Quando, finalmente, nos tornamos a anomalia de duas pessoas desejando ser uma só, as coisas estavam bem mais que soltas. As coisas: os laços, alguns invisíveis e outros não, que mantém as pessoas ligadas umas as outras. Você estava sentada em cima de mim, e eu debruçado no chão. Tudo variava entre preto & branco e sépia. Eu te lambia e nada tinha gosto. Eu lambia o chão e até isso parecia mais certo. As coisas todas acontecendo a nossa volta. E você espichando o pescoço para acompanhar. Algumas, mas poucas coisas, te faziam dar uns pulinhos. Nessas horas o coração até saltava. Mas o sentimento seguia existindo cada vez mais longe.
Preciso levantar, eu te disse, precisamos ir atrás de uma coisa. E nessa hora, você não quis ir comigo. Eu decidi ir sozinho - mas aí então, a coisa já se tornava outra. E você esperneou até não poder mais - dói abrir os olhos para a luz logo quando acordamos.
- O que aconteceu com a gente?
- A vida...


sexta-feira, 17 de maio de 2013

O significado pleno do nada

"Senti um abraço forte, já não era medo.
Era uma coisa sua que ficou em mim..."



Hoje levei cerca de quarenta minutos para conseguir chegar em casa. Eu só venho de carro para não chegar muito suado. Não é nada longe. Uns dez minutos a pé - se você tiver muita calma. Mas eu suo muito - é por causa da ansiedade.
Eu fiquei pensando nas coisas que ficaram para trás - isso acontece com tudo. Fiquei pensando que o cara, no carro do lado, deveria estar pensando na mesma coisa - outras coisas numa mesma coisa. Fiquei pensando que a gente só pensa nisso. Porque pensar no que virá dá dor de cabeça e insônia. Ficar esperando. Tudo é só isso aqui?
Acordar às seis - escovar os dentes, tomar o café, escolher gravata. Fazer o caminho em cinco minutos - saio antes para não pegar engarrafamento. Entrar numa sala toda bege. Com pessoas beges desejando um bom dia. Computadores escuros. Quadro de recados. Metas a serem alcançadas. Reuniões. Café de má qualidade. Ar-condicionado. Persianas - nem um rastro de sol para nos conectar a humanidade.
Sair às dezenove - recolher os papéis, deletar os e-mails, conferir a maleta, trancar as gavetas, desejar boa noite. Enfrentar engarrafamento. Morrer de calor, de sede, de tédio. Pular de estação de rádio em estação de rádio. Espiar o que acontece no carro ao lado. Pisar no freio - sentir cãimbra, puxar o freio de mão. Tentar manter o bom humor - logo mais, perdê-lo.
Entrar no apartamento. Tudo muito branco, clean - é o termo em decoração para "viver só". Me servir de uma taça de vinho. Comer comida congelada. Assistir o jornal. Tomar banho. Decidir entre cueca branca ou preta. Dormir, só hoje, sem cueca - e repetir amanhã.
Acordar, acordar, acordar...
Sem querer nada disso.
E de manhã, quando se o olha no espelho, perguntar - sem depositar muita confiança na resposta: o que você quer?
Eu quero escrever um livro. Deitado na banheira - como numa velha história de amor que nunca foi. Enquanto tomo, devoro, uma garrafa de merlot - e me lambuzo inteiro.
Quero sentir o mundo girar - e correr atrás dele. Dar voltas e voltas, sem nunca parar num mesmo lugar. Eu quero saber que isso aqui é a vida por vivê-la - não por ter lido no jornal.
Sentir o toque, primeiro, da pele. O frio que sobe pela coluna e desliza para um beijo - ou a vontade dele. Os pés frios quando chega dezembro. A solidão - as experiências que vêm dela.
Viajar para lugares remotos. Sair sem ter para onde voltar. Não dever, absolutamente, nada para ninguém que não queira te receber.
Assim como você é. Assim como você veio. No que você precisa se transformar. Pois ser humano no dicionário não diz "ser uma coisa só".

Primeiro, o tempo...

A impossibilidade de um outro te fazer feliz não pode ser sua incapacidade de ser feliz.


Subir quatro lances de escada. Segurar a maçaneta e todo o seu desgaste. Respirar fundo. Abrir a porta. Dar dois passos. Te encontrar ali. Olhar, abrir bem os olhos, enxergar tudo o que há ali. Tudo o que resta. O que sobrou. Um cheiro, uma lembrança. A televisão ligada, pia cheia de louças, sapatos jogados no chão. Abrir a porta e te encontrar ainda ali, preso a mim por um laço frágil, invisível.  Sentado no sofá. Lendo o jornal. Abrir, outra vez, os olhos. Limpar os ouvidos - em vão, pois nada foi dito. Nada, nunca mais, foi dito. Repetir em voz altas as cores que haviam. Por que desbotaram? O que ficou de mim, de você, de nós? O que pôde ficar - teve escolha - e não saiu correndo? As finas paredes que sustentam todo um apartamento. Quanto peso suporta o amor?
As mãos desencontradas. Rotineiramente, silêncio. As pernas inquietas. Infindáveis desencontros.
Qual dor é maior do que olhar para um amor que não está mais ali?
Não, não porque acabou. Mas porque desapareceu.
Qual dor é maior do que revirar todas as gavetas atrás dele?
Chorar pela morte de algo que não morreu. Não ter corpo para sepultar. Não poder enterrar aquilo que você viu crescer. Chorar pelo pó. Pelo vento, pelo nada. Não ter pistas. Olhar para fotos do que foi perdido.
Quem levou ele embora?
Procurar um culpado. Sem olhar para as próprias mãos.
Tampar os ouvidos - perder todos os sinais.
Te ver infeliz. Me ver infeliz. Nos ver - imaginar. Um coma induzido no outro.
Te esperar chegar - sem nunca mais ter estado ali. Separar todas as coisas. Cada um com a culpa que lhe pertence.
Constatar, ali sim, que não há mais nada - pois sentimentos sem corpo físico não se manifestam, e forças que não se manifestam apenas inexistem.
Tentar demais. Bater cabeça, ombros, joelhos - para nada.
Eu te vi chorar, já era tarde demais - por impulso: culpar o tempo.
Você querendo ficar - mas esse tempo já tendo ido embora.
Todo o desespero. Mas costume é muito diferente de amor.
Eu te vi segurar minhas mãos. Mas já era tarde demais.
Eu fechei essa porta. Bati com toda a minha força. Como se nada me doesse. Como se coisa alguma pudesse me atingir. Pedaços despencaram - da porta, da parede e do impacto.
Fui andando de costas, ainda com os olhos vidrados - esperando algo mais acontecer.
Meus joelhos mal conseguiam dobrar - por um segundo, tive mais medo de ir do que de ficar.
Nada aconteceu.
Foi tudo só silêncio - em mim e ao redor.
Como tivera sido - já antes, e desde então.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Ao cotidiano e ao que o sufocou


Ela continua comendo uma maçã, todos os dias, às duas horas da tarde. Sempre fuji. Sempre das mais vermelhas. Sempre enrolada num pedaço de papel alumínio. Ela sempre se senta e abre o papel de forma a ter controle do seu próprio barulho. Fica olhando genuinamente para a maçã, como num pedido de desculpas: e depois crava nela os seus dentes.

Fica uma marca uniforme – graças aos anos em uso de aparelhos dentários. Um buraquinho miúdo. Que dá impressão de sua boa pequena ser menor ainda. Fica uma marca dela, um pedaço, mas ao avesso – a qual ela encara, e logo depois esquece, alcançando um livro na bolsa.
Ela prefere poesia. E não é muito chegada a contos. Já leu toda a obra de Freud. Na verdade, não é uma pessoa de muitos preconceitos, e vez em nunca, até arrisca algum livro espírita. Ela gosta dos clássicos, e sempre demora mais tempo neles – talvez para se assegurar de ter entendido tudo. Devora biografias!

Ela cruza as pernas – agonia de ficar com ambos os pés no chão. Numa mão, um livro, na outra uma caneta preta – que reveza com o restante da maçã. Ela sublinha e recria. Reinventa. Vai, lentamente, tecendo suas próprias impressões da vida – através de impressões dos outros.
Passa muito tempo sozinha, e nem liga para a gravidade que os outros vêem nisso. Nenhuma coisa no mundo que aconteça lhe choca ou traz tristeza – dos livros, ela aprendeu um pouquinho de cada dor.

Das dores, as que ela mais conhece vieram através da vida - ficam bem claras quando ela fita os olhos no céu. Não fala muito a respeito. Como se a vida não fosse nem passado, nem presente presente e nem futuro - mas uma série de episódios atemporais. Passagens e permanências, ela diz, sobre o que forma a vida.

Limpa os dentes, enrola os miúdos da maçã num guardanapo, quando já muito próximo do pôr do sol. E diz baixinho, que foi difícil estar serena assim, já havia tentado de quase tudo, e não muito atrás, conseguiu encontrar alguma calma. Uma qualquer-maneira de não-destruição.
Eu só afastei as minhas feridas das feridas dos outros...


quarta-feira, 8 de maio de 2013

Carta para alguém bem mais perto

"A obra de arte não deve ser a beleza em si mesma, porque a beleza está morta".

Ainda corro para o telefone. Quando não me detenho, chego a apertar oito teclas. Espero uma voz sem rosto - mas já tão íntima - me dizer que este número não existe. Que este número não existe mais.
Em geral, eu não reajo. Eu mal consigo afastar o aparelho do ouvido. Eu gosto das cócegas que ele faz ao encostar no rosto. Eu que me encosto dele. Fico assim, quase que abraçada, por uns cinco minutos. Depois um barulho grave, estático, se prolonga. E eu acordo.
Não deve ser nada sério, mas tenho me desligado bastante. Eu estou ali, discutindo a ocupação no Congresso Nacional, logo depois entro nos méritos do fanatismo religioso, e então chega a minha deixa: hora de mencionar Durkheim. Mas eu sumo. Desapareço. Meus olhos, disseram, ficam vidrados num ponto qualquer. Um ponto morto. Um ponto nada.
E não adianta repetir meu nome. Nem empurrar meu ombro. Nunca tentaram jogar água, mas não me parece eficiente também.
Não sei no que penso. Aliás, acho que nada-penso. Acho que saio para viajar, e no inconsciente do meu inconsciente - ao qual, nem se eu quisesse, teria acesso -, devem parecer dias. Talvez esta seja a forma que meu organismo arranjou para me dar um descanso.
É que eu tenho vivido sem parar - sem pedir férias, nem um instantinho de morte. Tenho ocupado minha mente, meu corpo, a mente dos outros e seus corpos. Estou ocupando todo o mundo - e nisso de me esticar tanto, tenho sentido cada vez mais vazios. É que aumentei tanto de tamanho, que as coisas dentro de mim começaram a parecer muito menores. Ou elas diminuíram consideravelmente e, a partir daí, eu precisei me multiplicar.
Eu só sei que olho para mim e sou só entulho. Um conjunto de dados, objetos e informações que se desfizeram no caminho. Uma mensagem passada incorretamente.
Se não tomo cuidado, abro a porta de casa e saio chamando seu nome. E fico tão brava quando não responde. Abro a porta com tudo - pronta para te descobrir achando graça de tudo - e não encontro nada. Nada mais existe ali. Constato que, em algum momento, todas as coisas deixam de existir. Outra vez, sem juntar nada, eu viajo.
Não sei no que penso. Aliás, acho que nada-penso. Não resisto ao enxergar sua falta e saio desembestada a te procurar.
Não deixo recados, só o corpo.
Mas no mais, acho que vai tudo bem. Se durmo uma boa noite, com umas boas três horas, consigo passar bem os dias - aguento só ir atrás de você umas duas vezes, voltando rápido sempre.
Quando eu penso até onde eu vou, não me escapa de tentar imaginar onde é que você está. Para onde você foi...
Eu gosto de pensar em um lugar aberto. Com três ou quatro prédios, mais ao fundo, e a maioria do espaço ocupado por casas coloniais, araucárias e pequizeiros - o impossível. Casinhas de todas as cores. O céu sempre arregalado, sorrindo para tudo que o habita. Nuvens só depois do almoço, para você tirar seu cochilo. Umas mesinhas soltas pela rua,  cercando um único bar, onde todos se encontram. Um lugar onde tudo vibra, e ninguém se sente sozinho.
Gosto de te imaginar com seu vestido todo colorido. O que você usava todo ano, no Carnaval. Fumando, ainda, seus cigarros. Mas completamente em paz. Eu te vejo ao lado das pessoas que, a partir de algum momento, te faltaram.
Você nem resmunga mais!
E fica levantando a voz toda vez que pensa em mim. Para contar de quando dei meu primeiro passo. Do meu joelho rasgado. Do resultado do vestibular.
Você sentindo minha falta - e logo sendo preenchida por outras coisas. Saindo e colhendo as pimentas no quintal. Pensando que nunca estivemos tão próximas - não é preciso dar nem um passo.
Eu gosto de pensar que dor é coisa que precisa sair, primeiro, da cabeça para só então chegar no coração - então nada disso me dói.

Ao que o tempo leva e o vento traz

If you don't shoot it, how am I supposed to hold it?

Eu não me esqueço da mochila. Você a carregava para todos os lugares. E ela carregava sua vida inteira. Quando você a colocava nas costas, nada mais te prendia. Nada te mantinha.
Uma muda de roupas, sapato, perfume, um caderno de confissões, calculadora, escova de dente, Esboço de uma Teoria das Emoções, perfume, meias, biquíni, sabonete – mas sempre esquecia a toalha.
Você era toda entregue ao mundo. Abocanhava a tudo com os olhos. Não colocava primeiro o pé para saber quão gelada a piscina. Arrancava as roupas - se possível, todas elas - e saltava em um segundo.
Um piscar e só restava seu cheiro.
Quantas vezes te pus para fora no grito? E ficava pelos cantos, uma figura geométrica cheia de quinas.
Um piscar e não restou mais nada.
O silêncio acontece quando faltam palavras - e reconstruções são sempre óbvias.
Silêncio ao primeiro olhar. Silêncio quando as primeiras palavras são lançadas. Silêncio após o beijo. O coito. O murro. Silêncio quando tudo acabou.
Silêncio aqui - pois eu e você sabemos, e ninguém mais precisaria saber, como acabou o fim se deu.
Eu tive uns sonhos, umas nuances - mas o tempo torna, sempre, tudo tão fácil. Imaginei, por muitos anos, se você imaginaria também e imaginando o seu imaginário, parei de me perguntar. Não existem outros caminhos quando um já foi tomado - existe somente a neurose.

Estive febril - desde que ouvi falar em seu nome. Fiquei repetindo incontáveis vezes - como se assim te trouxesse, de novo, à vida.
Prossegui, é claro, com minhas tarefas diárias: relatórios, análises, reuniões, engarrafamentos, idas ao supermercado. Mas o seu rosto não me fugia da mente. Eu sabia que estava mudada. Sabia que, com sorte, alguma coisa teria permanecido a mesma. Mas não me importave, até cego eu te reconheceria. Eu tocaria logo abaixo dos seus olhos e teria certeza do quanto estava dormindo.
Eu preciso, mais que tudo, te ver.
Só para te escutar dizer que irá chover - para me lembrar que não existem mãos, nem para segurarem umas as outras, nem para suportarem o céu.
Eu preciso voltar para a realidade - é segunda-feira e ainda não recebi meu salário.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

A natureza íntima do calor

Andei pensando no tanto de saudade. Quando ela me invade, parece carregar o mundo inteiro consigo. Meu corpo estremece, perde o equilíbrio. Eu me acabo. Fico sem chão.
Como pode a vida toda, de repente, parecer um nada? Perder o valor. Parecer comprida demais para seguirmos em frente.
Eu decidi ir embora de São Paulo, antes de decidir vir à Brasília. A primeira coisa levou a outra. No final, me vi pousando aaqui. Brasília: onde nascem e morrem os sonhos. Terra da razão e da histeria.
Nunca tinha visitado a cidade. Mas já tinha estado próximo, fiz uma conexão no aeroporto daqui. Fiquei três horas sentado, olhando as pessoas, os aviões e o nada. A utopia é horizontal, pense. E o engraçado é que são as linhas verticais que expressam o plano das ideias.
Não parece fazer tanto tempo. Hoje, oficialmente, sete anos. Parece ontem. Eu estava nervoso, e quando pude olhar do avião: o Congresso. Eu quis voltar. Eu quis voltar porque eu imaginei ela se espichando toda para olhar pela janela.
Fui embora para deixa-la para trás. Eu a deixei trancada no antigo quarto. No antigo apartamento, sem móveis. No passado. Eu a deixei em outra cidade. Fui embora por não conseguir mais viver com ela.
Ela - que me deixou primeiro. Ela dizia bem assim, que cuidaria de mim para sempre. Que nunca me deixaria só. Que eu nunca me sentiria sozinho.
Era feriado e era domingo. Eu só escutei o corpo dela se espalhando pelo banheiro.
Me disseram que foi uma dessas coisas que a gente não pode prever. Tem um nome, que não gosto de lembrar.  Pode ser genético, o médico disse. Que passa de pai pra filho. E eu já sabia, que passa de geração para geração – infinitamente – esse nascer para morrer.
Eu fiz várias perguntas, como: qual o sentido da vida? Mas não descobri. Passei cerca de um mês aéreo. Alheio ao resto do mundo. Eu ria muito, e ria de tudo. Tudo tinha graça, tudo era vivo, as cores e coisas todas mais fortes. Eu via o mundo explodindo como o céu em noite de ano novo.
Depois quis fazer limpezas. Seguir em frente. A vida tem que continuar, né, eu dizia o tempo todo.  Tudo bem? A vida tem que continuar, né. Como você tá? A vida tem que continuar, né. Aceita um café? Sim, a vida tem que continuar, né.
Dessa época, as lembranças são um pouco menos claras. Joguei muita coisa fora, sem precisar. Eu devia imaginar estar tampando um buraco, tampando tão bem que nem me lembraria de, um dia, ter existido um.
Eu a esqueci um pouco. Ao mesmo tempo que me sentia à espera dela. Sei lá, inconscientemente, a imaginava em uma viagem com os pais para o Nordeste. Em reuniões de trabalho, uma seguida da outra, em lugares tão periféricos que nem se tinha acesso a celulares.
Depois ela começou a vir mais para perto, e me assustei. Eu esperava a hora de encontra-la na estação de metrô, para descermos a Augusta, lancharmos na nossa padaria favorita, e chegarmos em casa. Eu a esperava sair do banho. E ficava irritado quando ligava e seu telefone estava desligado. Queria contar para ela o restaurante que conheci, na hora do almoço, com os carinhas do trabalho. A promoção que teria no cinema. Contar da minha dor de cabeça. Ela não estava mais aqui.
E onde eu estava? Aí foi quando veio o choque – já tinham passado cerca de seis meses. Ela não voltaria. E onde eu estava? Porque eu a via atravessando o corredor, batendo a porta do banheiro, desligando a televisão, atravessando a Paulista, molhando o pão com manteiga no café.
Foi quando decidi sair e vim parar aqui. Achando tê-la deixado também. Mas se me distraio, logo tudo explode outra vez.