segunda-feira, 13 de maio de 2013

Ao cotidiano e ao que o sufocou


Ela continua comendo uma maçã, todos os dias, às duas horas da tarde. Sempre fuji. Sempre das mais vermelhas. Sempre enrolada num pedaço de papel alumínio. Ela sempre se senta e abre o papel de forma a ter controle do seu próprio barulho. Fica olhando genuinamente para a maçã, como num pedido de desculpas: e depois crava nela os seus dentes.

Fica uma marca uniforme – graças aos anos em uso de aparelhos dentários. Um buraquinho miúdo. Que dá impressão de sua boa pequena ser menor ainda. Fica uma marca dela, um pedaço, mas ao avesso – a qual ela encara, e logo depois esquece, alcançando um livro na bolsa.
Ela prefere poesia. E não é muito chegada a contos. Já leu toda a obra de Freud. Na verdade, não é uma pessoa de muitos preconceitos, e vez em nunca, até arrisca algum livro espírita. Ela gosta dos clássicos, e sempre demora mais tempo neles – talvez para se assegurar de ter entendido tudo. Devora biografias!

Ela cruza as pernas – agonia de ficar com ambos os pés no chão. Numa mão, um livro, na outra uma caneta preta – que reveza com o restante da maçã. Ela sublinha e recria. Reinventa. Vai, lentamente, tecendo suas próprias impressões da vida – através de impressões dos outros.
Passa muito tempo sozinha, e nem liga para a gravidade que os outros vêem nisso. Nenhuma coisa no mundo que aconteça lhe choca ou traz tristeza – dos livros, ela aprendeu um pouquinho de cada dor.

Das dores, as que ela mais conhece vieram através da vida - ficam bem claras quando ela fita os olhos no céu. Não fala muito a respeito. Como se a vida não fosse nem passado, nem presente presente e nem futuro - mas uma série de episódios atemporais. Passagens e permanências, ela diz, sobre o que forma a vida.

Limpa os dentes, enrola os miúdos da maçã num guardanapo, quando já muito próximo do pôr do sol. E diz baixinho, que foi difícil estar serena assim, já havia tentado de quase tudo, e não muito atrás, conseguiu encontrar alguma calma. Uma qualquer-maneira de não-destruição.
Eu só afastei as minhas feridas das feridas dos outros...


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