sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Esboço para construção do outro I

Estou vento e não vôo. Eu até tento, mas não vou. Eu fico. E com isso, trago de volta a memória daquele tempo: sem datas, só imagens e um cheiro. De erva-doce.

E sua sombra na beira do mar. E a moça na varanda do quarto andar do prédio seguinte, sempre com as pernas para o alto, lendo, tomando um café ou chá, com ou sem leite, não sei se adoçado com mel ou açúcar, ou mesmo puro, mas com muito gosto, lambendo os beiços, com as pernas sempre para o alto, agitando os pés como se regesse uma orquestra.

A lembrança das ervas-daninhas, que crescem em torno e por dentro dos jardins mais bonitos, rapidamente, antes mesmo que se pense em pensar, antes mesmo que não se pense e se pisque. Num piscar de olhos. As pernas postas para o alto. As pernas. O azul do céu. O óbvio, clichê.

Se eu não te enxergasse você nem mais me veria. Seus pés cheios de areia. Atados ao chão.

Estou vento e nem assim vôo. Fico. A pensar nos beiços melados dela, com suas pernas para o alto, quase encostando o azul do céu que ela era.

A orquestra que ela regia em mim.

Eu chego a ficar sem ar. Estou vento, mas me sufoco. Os beiços dela se avermelhavam debaixo do sol. E quando pareciam quase sangrar, se envergonhavam, ainda apurando o tom. Me barganhavam e eu ficava roxo, a custa de nada.

Nosso amor morria, já ali, e morreria, já mais na frente, por inanição. Eu não disse em voz alta, mas mesmo negando, você sabia.

Que eu te olhava e você me olhando não me via.

Estava vento e sem nem bandeira você se levantava. E desembaraçava os fios de cabelo, conferia a bolsa, pegava o elevador, e saía para passear. E passavam horas, quase dias, quando voltava, os braços presos, as mãos quase roxas de tanto segurar sacolas. Os lindos vestidos que vestia à noite, para entornar duas garrafas de espumante e então me despir da minha própria virilidade, depois colocar o pijama e dormir.

A nossa vacuidade.

Vá com cuidado  - me disseram ainda, antes mesmo que te amasse. Antes mesmo, digo, que tivesse qualquer noção desse amor possível. Que, na verdade, foi de cara e tanto que eu te amei bem antes, amei assim, mesmo sem nunca nem te amar.

Amor que nasce no primeiro instante. Nasce assim que a presença aponta.

Eu achava que era culpa das suas pernas muito longas. É bem isso, o conselho a ser dado: não ame mulheres com as pernas muito longas, porque se abrem na mesma rapidez com que se levantam para ir embora e nunca mais voltar. Mulheres de pernas longas, quando se vão, dificilmente voltam. Eu li no jornal. Ou escrevi, com a borra de café.

Estou vento e não vôo. Até briso, mas não decolo. E bem fecho os olhos, e te vejo, e não te culpo. E quase que, ainda, te tenho. Me culpe mas, por favor, me desculpe. Quando angustiado, o amor se enrola pelas pernas e se pendura pelos braços e te sacode pelos ombros: era você e não outra. A gente custa a entender. E a vida cobra caro. Era você e não ela, mas nem isso me impediu de me debruçar sobre a janela e assistir o amanhecer: e assistir a ela. E me enrolar pela língua e me pendurar pelas coxas e me sacudir pelas cabeças: era eu e ela. Se pudesse, até mares-ia, mas já estou marejado.

Nosso amor morria, já ali, e morreria, já mais na frente, e mesmo sabendo com certeza disso, eu não podia acreditar. É que eu não estava nunca pronto para me vestir de preto e nos chorar.  Nunca pronto nem para nos morrer e nem para nos matar.

As pernas...são sempre as pernas. E as dela ficavam lá apontando para o alto, bem quando meu rosto, para te encontrar, vivia olhando para baixo.

Me culpe. Me desculpe. Primeiro foram as suas pernas. Muito longas para acompanhar. Nos matei com ela, dos pés fáceis de alcançar. Bastava olhar na direção do céu.

Estou vento e não vou. Sentado, assistindo da varanda, o tempo passa. E ainda a assisto com os beiços melados tentando fingir para mim que a vida pode ser doce.

Estou vento e tudo o que vejo eu arrasto. Que assim eu te mato em mim me morrendo de saudade.