Estou vento e não vôo. Eu até tento, mas não vou. Eu fico. E
com isso, trago de volta a memória daquele tempo: sem datas, só imagens e um
cheiro. De erva-doce.
E sua sombra na beira do mar. E a moça na varanda do quarto
andar do prédio seguinte, sempre com as pernas para o alto, lendo, tomando um
café ou chá, com ou sem leite, não sei se adoçado com mel ou açúcar, ou mesmo
puro, mas com muito gosto, lambendo os beiços, com as pernas sempre para o alto,
agitando os pés como se regesse uma orquestra.
A lembrança das ervas-daninhas, que crescem em torno e por
dentro dos jardins mais bonitos, rapidamente, antes mesmo que se pense em
pensar, antes mesmo que não se pense e se pisque. Num piscar de olhos. As
pernas postas para o alto. As pernas. O azul do céu. O óbvio, clichê.
Se eu não te enxergasse você nem mais me veria. Seus pés
cheios de areia. Atados ao chão.
Estou vento e nem assim vôo. Fico. A pensar nos beiços
melados dela, com suas pernas para o alto, quase encostando o azul do céu que
ela era.
A orquestra que ela regia em mim.
Eu chego a ficar sem ar. Estou vento, mas me sufoco. Os
beiços dela se avermelhavam debaixo do sol. E quando pareciam quase sangrar, se
envergonhavam, ainda apurando o tom. Me barganhavam e eu ficava roxo, a custa
de nada.
Nosso amor morria, já ali, e morreria, já mais na frente,
por inanição. Eu não disse em voz alta, mas mesmo negando, você sabia.
Que eu te olhava e você me olhando não me via.
Estava vento e sem nem bandeira você se levantava. E desembaraçava
os fios de cabelo, conferia a bolsa, pegava o elevador, e saía para passear. E
passavam horas, quase dias, quando voltava, os braços presos, as mãos quase
roxas de tanto segurar sacolas. Os lindos vestidos que vestia à noite, para
entornar duas garrafas de espumante e então me despir da minha própria
virilidade, depois colocar o pijama e dormir.
A nossa vacuidade.
Vá com cuidado - me
disseram ainda, antes mesmo que te amasse. Antes mesmo, digo, que tivesse
qualquer noção desse amor possível. Que, na verdade, foi de cara e tanto que eu
te amei bem antes, amei assim, mesmo sem nunca nem te amar.
Amor que nasce no primeiro instante. Nasce assim que a
presença aponta.
Eu achava que era culpa das suas pernas muito longas. É bem
isso, o conselho a ser dado: não ame mulheres com as pernas muito longas,
porque se abrem na mesma rapidez com que se levantam para ir embora e nunca
mais voltar. Mulheres de pernas longas, quando se vão, dificilmente voltam. Eu
li no jornal. Ou escrevi, com a borra de café.
Estou vento e não vôo. Até briso, mas não decolo. E bem
fecho os olhos, e te vejo, e não te culpo. E quase que, ainda, te tenho. Me
culpe mas, por favor, me desculpe. Quando angustiado, o amor se enrola pelas
pernas e se pendura pelos braços e te sacode pelos ombros: era você e não
outra. A gente custa a entender. E a vida cobra caro. Era você e não ela, mas
nem isso me impediu de me debruçar sobre a janela e assistir o amanhecer: e
assistir a ela. E me enrolar pela língua e me pendurar pelas coxas e me sacudir
pelas cabeças: era eu e ela. Se pudesse, até mares-ia, mas já estou marejado.
Nosso amor morria, já ali, e morreria, já mais na frente, e
mesmo sabendo com certeza disso, eu não podia acreditar. É que eu não estava
nunca pronto para me vestir de preto e nos chorar. Nunca pronto nem para nos morrer e nem para
nos matar.
As pernas...são sempre as pernas. E as dela ficavam lá
apontando para o alto, bem quando meu rosto, para te encontrar, vivia olhando
para baixo.
Me culpe. Me desculpe. Primeiro foram as suas pernas. Muito
longas para acompanhar. Nos matei com ela, dos pés fáceis de alcançar. Bastava
olhar na direção do céu.
Estou vento e não vou. Sentado, assistindo da varanda, o
tempo passa. E ainda a assisto com os beiços melados tentando fingir para mim
que a vida pode ser doce.
Estou vento e tudo o que vejo eu arrasto. Que assim eu te
mato em mim me morrendo de saudade.