domingo, 29 de janeiro de 2012

Deusa Urbana.

"Com você eu tenho medo de me apaixonar,
eu tenho medo de não me apaixonar.
Tenho medo dele, tenho medo dela,
os dois juntos onde eu não podia entrar...
Com você eu tenho mesmo de me conformar.
Eu tenho mesmo de não me conformar.
Sexo heterodoxo, lapsos de desejo,
quando eu vejo o céu desaba sobre nós..."



Quantas vezes precisaria repetir que nossos corpos não encaixavam mais para, enfim, entender que a repetição não nos traria novas, e outra vez harmoniosas, formas? Tateando no escuro, encontraria ainda a velha cicatriz atrás da nuca - lembranças da criança inquieta que foi -, mas sequer o perfume seria o mesmo. Nem mesmo o seu cheiro! Depois desta observação, estaria cheio de raiva, inconsolável, porque você nunca mais seria a mesma. Nunca mais me observaria através daqueles olhos miúdos, dizendo calma, está tudo bem, hora ou outra toda inocência vai embora. O lençol sujo de sangue, alguns respingos na minha camisa e na sua calcinha. Por favor, meu Deus, não chore! Você segurava minhas lágrimas soltando as suas. Eu precisava ser forte, ser sempre o mais forte, era só isso que você pedia quando sentava em meu colo e se aninhava, com a cabeça em meu ombro. Agora eu te olhava e você não estava da mesma forma ali. Seu corpo se eriçava todo, e seu pensamento não estava mais em mim. Lembro, às vezes, do primeiro toque. Seu corpo todo se arrepiou, num susto, ao provocar meus dedos ásperos. E você falou tanto de medo. De não saber o que fazer, como fazer: e se eu acordar e você não estiver mais aqui? Com que cara me olharei no espelho? Você ficava tão menor quando procurava abrigo entre meus braços. Suas coxas, suas sardas, seus seios, sua ingenuidade em deixar-se ir ao entregar-se a mim. Somente a mim, você repetia, mordendo minha orelha e bagunçando meu cabelo. Apertava minha cabeça contra sua barriga e ia embora, para sonos e sonhos profundos. Acordava, de vez em quando, no meio da madrugada para somente abrir os olhos e assustar-se com minha permanência ali. Simulava um medo tão grande de que eu partisse. Flutuava, sabia que era assim, que sempre havia sido, e que só lhe faltava que abrissem uma das portas. Sabia que desfilava para o mundo, que não tinha laços tão estreitos com nada. O tempo foi passando arrastado para nós, até aquele momento em que meu amor começava a fazer feridas em sua pele. Que meus pêlos te davam alergia. Que você me empurrava para dormir mais confortavelmente. Eu via você rindo à toa e não era por mim. Eu imaginava ele subindo e descendo, com a mão na sua nunca, em cima da sua cicatriz, sentindo seu perfume novo, tirando seu vestido de marca, beijando seu quadril, agora mais largo. Você exibindo maior desenvoltura e dedicação, mordendo as orelhas dele como se fosse um dos seus costumes mais antigos. A sua prática em fazer alguém feliz sem esperar o mesmo. Eu via você passeando pelas ruas, com o pensamento nele. Ele indo para os bares, e se gabando de ter alguém como você. Que ainda dormia comigo, por sentir pena, do tempo que passou por mim tão rápido e que já começava a me deixar texturas no rosto. Você dormia abraçada com a ausência dele, do lado oposto da cama. Dele ou dela, quem sabe. Quem sabe até havia se engraçado com aquele seu casal de amigos que tinha vindo da França. Os dois tinham aquele discurso de amor livre, sem rédeas, sexo, idade, e tentaram me convencer da sinceridade disso depois de perguntar se eu era seu pai. Pai não, nunca, mas talvez criador, causa e culpado pelo rumos que te levaram, que você levou. A foto sua que eles me mostraram, bata branca e a alça do sutiã aparente, cara de quem temia o mundo, os braços cruzados, fechada para tudo. Uns seis meses depois, nua sob mim. Parecíamos ter sido esculpidos para estarmos daquela forma, você disse, envergonhada. Os anos se passaram e seus interesses atravessaram a porta de casa. Seu corpo adquiriu maior flexibilidade e então eu não pude mais acompanhá-la.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Me Arrependo.

"Eu não me arrependo de você,
cê não me devia maldizer assim...
Vi você crescer,
fiz você crescer,
vi cê me fazer crescer também.
Pra além de mim..."


Tem gente com medo de abelha, pensou, tentando justificar os motivos que levaram-na a sentir-se como sentia-se naquele momento - só, esquecida, castigada por uma força maior. Seu telefone não tocava, ou esboçava qualquer tipo de reação, há mais de dez dias. As únicas coisas que entravam no apartamento eram feixes de luz - permissivos demais - e acúmulos de poeira. Estava com medo de sorrir. Pela possibilidade de perder seus dentes em toda aquela bagunça. A solidão atrasa os limites da imaginação. Há tanto mundo na gente! Lembrou de uma frase dita por seu pai quando tentava acalmar seus ataques de pânico, suas fobias de gente. Não podia ligar para ele. Podava-se: não podia, sequer, pensar em pensar ligar para ele. Também não podia recorrer a sua mãe, que viajava despreocupadamente pelo interior do país. Se morresse, confabulava, só seria encontrada umas três semanas depois - isso com sorte. Que seria quando o síndico procuraria seus pais a respeito do atraso no pagamento do condomínio. Seu pai atenderia o telefone, e ao saber do motivo da ligação, bateria com os ombros, alegando não ter nada a ver com isso. Depois voltaria para sua poltrona, sua televisão de quarenta duas polegadas, e suas latas de cerveja. Numa propaganda de sabão em pó lembraria das roupas sujas que precisou lavar na casa da filha e que, por causa do tempo chuvoso, precisou deixar secando lá. Só então procuraria contatá-la. Obviamente, ela não atenderia. Três dias depois, dúzias de ligações não-retornadas, fariam com que ele caminhasse sete quarteirões até o apartamento. Depois de interfonar, e tocar a campainha, sem sucesso, tentaria abrir com a chave reserva que guardava. Havia esquecido de colocar junto ao molho com as tantas outras, e só percebera naquela situação. Arrombaria a porta, e lá estaria sua filha - a caçula entre quatro -, estirada, gélida, mortinha da silva. Mortinha da Silva! - exclamaria o zelador por todos os andares do prédio, nas semanas seguintes, contando sobre o acontecido. A imaginação desconhece seus próprios limites, por isso muitos acabam loucos sem nem saber o porquê. Concluiu, depois de criar, e quase encenar, sua própria morte. Eu estava pensando, viajando, comecei a acreditar nos meus pensamentos, e acabei acordando num corredor estreito, com dois usuários de heroína e um psicopata cheirando meu cabelo. Pensou que sua autobiografia ficaria suficientemente interessante se começada assim. Outra vez, mergulhava em si, alongando-se até tomar formas estranhas. Invadia espaços até então desconhecidos. Mas quem nunca planejou o próprio fim? Quem nunca acreditou ter pensado em algo único? Questionava, como se assim amenizasse sua imensidão disforme. Queria sentir-se normal, sabe? Sorrir como fazem por aí. Sem nem mesmo terem motivos reais. Apenas sorrir porque existem os dentes, existem os lábios, existe a boca, e está tudo disponível para isto. Chorava por horas mas, se pedissem, não saberia apontar de onde vinha tanta dor. Tanta vontade de largar tudo. De se desvencilhar de todos. Teve tudo enquanto criança. Um tanto mais do que era comum. Via os pais chorarem, os avós também, e achava que aquilo era só reflexo de como eles admiravam aquelas telenovelas. Levou lá suas décadas para perceber que corações respondem sim a toques. Abria caixas velhas e relia todas as cartas que havia guardado. Imaginou como teriam sido as coisas se ela sempre tivesse sabido reconhecer sentimentos. Legitimá-los, pensou. Pensou em todas as pessoas que deixou ir, sem nem importar-se. Como num retrato de turma, todos ressurgiram na parte imaginativa de sua íris. Lembrou-se, especialmente, de uma dessas paixões com cara de inigualável, e espírito universal. As coisas todas já foram tão simples. A caixa de correio dela desconhecia cobranças. O céu era sempre azul, raramente estremecia. As pessoas que amava estariam para sempre ali, sua inocência duraria também. Eu aprendi que coisas ruins acontecem com pessoas boas. Parou de sonhar, e foi responder uma das cartas antigas.