domingo, 28 de fevereiro de 2010

Farinha.

Poucas eram as horas do dia quando sentava-me à única mesa na varanda da padaria. Dava ainda para sentir a brisa fresca da madrugada, e os rastros da lua nas pequenas lamparinas acesas. Mal era preciso erguer o braço, e logo vinha, em uma caneca de barro, meu sossego sem açúcar. Vinha acompanhado do calor de um forno à lenha, uma farta bolinha de trigo, que feito pecado derretia em minha boca ansiosa. Aquietava-me ler o jornal, com o cheiro novo de atraso. Acostumei-me com o pouco, com a solitude, e era com eles que saía, toda manhã, para tomar o café.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Decisões.

Estou há exatas dez horas sem fumar. Sim, o sol apontando na beirada da janela entrega que algumas dessas horas foram passadas em sono profundo ou amassando os lençóis da cama. O que importa, na realidade, são as horas que estou sem fumar desde que acordei. Duas, talvez três...está bem, duas horas e trinta e sete minutos, para ser mais exato. É como se eu não tivesse dormido, nem acordado. Mais do que fundamental é o escorregar da fumaça pela garganta no nascimento de um dia. A ausência de um cigarro é irremediável. O único momento que talvez tenha a mesma necessidade de um trago, é o momento em que acaba de se conceber um amor - ou um capricho da carne -, e aquelas milhares de substâncias sejam necessárias para suprir um suspiro - ora de encanto, ora de tédio. Mas sem o tóxico "Bom dia!", sem o abrir dos olhos ao riscar o primeiro fósforo, sem que possa desenhar círculos projetando a fumaça na boca, um dia não é dia, é excesso de fôlego.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

20h45

O ruído de um velho motor estranha-me os ouvidos, logo depois a cidade se cala. Passando pela calçada, gargalhadas escapam das persianas, logo somem. Murmúrios, e espirros, e passos, e as folhas secas a serem despedaçadas no gramado. Escuto o acender das chamas e o suspiro de um primeiro-último trago. Caminho só, tão só que quase acompanhada. Pudera meu ouvido ser absoluto, a cidade tem se calado tanto...

Não Tão Bom.

Voltaríamos famintos de uma madrugada boêmia de Sábado, e ele acharia cabível minha mistura agridoce. Aceitaria minha incapacidade de dormir do lado esquerdo, minha rouquidão matutina. Não interferiria em minha preferência por café aguado. Não fugiria das poças no asfalto, que tanto traziam-me uma emoção de criança sapeca. Adoraria meus gaguejos românticos, e meus textos gramaticalmente ofensivos. Ele amaria meus excessos e as sobras escapando pelo cós da calça jeans.

Carta(da) Final.

Livre de todos os vícios, tendo acabado de abandonar o ócio, cá estou eu, sob um teto infiltrado, dedicando-lhe palavras que furtei de um dicionário. Empoeirado, deu-me uma crise alérgica terrível, enfraqueceu-me os pulmões. Sempre fui, por natureza, fraco, e enfraqueci-me ainda mais com o tempo que tanto soneguei. Frente a esta tela, de tantas polegadas que não fui capaz de contar - sim, queria sabê-las, para dar tamanho as letras -, escrevo-te uma carta de ano novo - por tantos dias envelhecido. Quero que saibas que aparei os cabelos, cultivo agora alguns cachos dourados de velhice. Tirei todas as tentações do meu cardápio, alimento-me agora de vento, e oras, como tem faltado nessa cidade desértica. Quero contar-lhe também de meus planos, pretendo escrever um livro de memórias, daqueles tempos que quis passar na Dinamarca, mas acabei por passar trancado em casa. Há duas semanas fui ver um médico, de óculos sutilmente largados no nariz, deu-me uma notícia ótima! É maligno, indestrutível e tarado por novos territórios. E, minha cara, caríssima minha, para sua imensurável felicidade, estou parando de fumar, mas antes, pouco antes, pararei de respirar.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Sincero.

Estava cabisbaixo, lembro-me bem. Meus pés inquietos ensaiavam tropeços na calçada íngreme. E minhas mãos ensaiavam o toque preciso para acender a chama do isqueiro. Olhastes-me com pena e um pouco enojada. Estava eu ali, às avessas, cigarro dependurado nos lábios ressecados, as calças sujas de lama, cabelos desgrenhados. Pôs-se a reparar primeiro em todos os meus defeitos, as falhas gritantes que entregavam-me meramente humano. Desde que te conheci, comprei calças novas e um pente. Guardei o isqueiro no bolso, livre de qualquer toque. Desde que te conheci, ninguém mais fora o suficiente. Nem mesmo você.

Sem Cravo, Sem Canela.

Cortou seus cabelos com a tesoura de costura que restou da última personalidade. Tingiu-os de um marrom mórbido. Lutou para não reconhecer suas sardas nos espelhos. Seu rosto rosado carregava marcas de sol em demasia, e marcas de quem sempre fora. "Excesso, por favor. Encha até que o líquido derrame do copo.". Tinha para lá de seus poucos anos e muita versatilidade. Há tempos atrás, trajada de princesa, servia aos Domingos um banquete medieval. Há tempos mais para frente, vestida em uma saia que cobria os pés, catava orquídeas nos túmulos do cemitério. Havia nascido ruiva, quase um incêndio, mas nos tempos em que evitava-se, havia sido até parcialmente indígena. Sua casa vivia cheia, muitos homens, todos presos a algum marco histórico. Lordes, viajantes, descobridores, magos, magoados, homens. Os incontáveis álbuns de fotos entregavam sua alma aventureira. Louca, diriam. Insana, exclamariam. Segurando um copo d'água, deixava que o líquido incolor escapasse. Tinha sede de vida, de todas menos a dela. O que pudesse ser, sempre seria. Mas nunca, nunca, nunca, Gabriela.

Estômago.

Negativos eram os graus naquela tarde esbranquiçada de Sábado, quando pôs-se a declamar um pedaço de Drummond em plena Place de la Concorde. O sol iria pôr-se em breve, e nenhum momento seria mais justo. Mais tarde pegaria um avião, tendo aquele momento filmado em preto e branco. Estaria de volta a América, e depois de diversas piruetas no estômago, entregaria o gesto em mãos. Precisaria tocar a campainha três vezes, para que ela enfim atendesse. Ela através daquele pequeno buraco e reconheceria sua feição cansada. Estaria ele com a filmadora e flores em mãos, palmas gélidas, trêmulas. Antes que ela tomasse a iniciativa de cumprimentá-lo com um abraço distante, ele convidaria os lábios dela para uma dança. E acabaria cantarolando um trecho da música que teria acabado de escrever. Ela olharia-o com escuridão, trajando poucas vestimentas, negaria a valsa, não sabia os passos. Estranharia-o o bastante para pedir que saísse dali, acompanhada estava. Inconsolável, ele deixaria os agrados no chão. Partiria dessa vez para o oriente, atrás de novos costumes. Sentia ter feito tudo tão certo, mas descobriria, mais tarde, que seu amor entrou em desuso.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Secreto.

Apaga esse teu cigarro nessa alma minha.
Pois há brasa.
E da brasa, há fogo.
E há cinzas.
Apaga essa minha brasa nessa cinzenta alma tua.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Vinte Mil.

Quando abri esta página, esta exata página em que vos escrevo, estava de olhos fechados, de cílios atados pelo grude do sono, por tanto atrasado. Quando abri esta página, fantasiei estar abrindo uma porta, porta que talvez, apenas talvez, devesse ter deixado fechada. Quando abri esta página, abri a tantos meu corpo, a poucos minh'alma. Nesta exata página em que vos escrevo, abri caminho. Perdi-me nele.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Vícios e Vísceras.

Segurava tuas seringas, enquanto tu quebravas todo meu conjunto de copos de cristal. Manchavas o sofá e o tapete. Esquecia-se de agradecer. Mais preocupante era quando esquecia-se, que desacordada, acordava-me o desespero. Apoiava teu corpo molengo em meu colo, saculejava-o. Pertubava o quanto fosse tuas vísceras, bastava-me que abrisse os olhos, ainda que eles não reconhecessem-me, e assustados, fechassem-se de novo. Não era sequer preciso que a noite chegasse, ou que o sol colocasse-se do outro lado do globo. Era só teus olhos tomarem cor de fogo, e teus braços desobedecerem, que punha-se novamente no chão. Apontava para o isqueiro, pedia-me para segurar um instante, pedia-me para que acendesse um cigarro, chacoalhava o líquido, ignorava o precipitado e pulava. Precipícios foram tantos, pudera eu ter sempre pulado e, de mãos dadas, sobrevivido. Quisera eu ter pulsado em seu sangue, como uma heroína travestida de amor.

Concreto no Twitter.

Palmas para a modernidade, certo?
https://twitter.com/ascartasnamesa
Atualizações e trechos por lá.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Corada.

Viu graciosidade quando deixei a fatia de bolo cair em seu colo, e desconcertou-se quando roubei o primeiro beijo. Prendeu os dedos quando tentou acalmar meu cabelo, acostumou-se a comer fora do horário. Pediu-me um trago e engasgou-se. Ofereceu-me um gole de seu chá gelado, e fora sempre egoísta. Cedeu-me seu casaco quando começou a chover. Entendeu que coçava meus olhos por estar sonolenta demais para acompanhá-lo. Oscilou com meu humor montanhoso. Colocou-me para dormir com sua voz aveludada e suas mãos avermelhadas. Ensinou-se a gostar de mim.

Senhor.

Estava sentado na maior poltrona da sala de estar. Os poucos feixes de luz que escapavam pelas cortinas, davam-no um ar desgraçado, uma melancolia manjada, uma sabedoria invisível. A fumaça marcava seu território, e o cheiro forte de café confirmava sua presença. Ao seu lado, estava um livro que acabará de folhear. "Apenas desinteressante", diria caso perguntassem. Apoiado na prateleira, o velho toca-discos ameaçava quebrar o silêncio. "Deixa o homem quieto!", exclamaria a enfermeira rechonchuda e queimada de sol que havia despedido mais cedo. Perturbava-o mais a falta de apetite do que o corpo coberto de pêlos esbranquiçados. Senhor de muitas mulheres, agora era senhor de idade. E sozinho ali, segura firme seu cigarro, como se isso fosse poupar-lhe a vida.

Teríamos Sim.

Teria te visto sentada na escada, enquanto tentava passar despercebido. Você teria olhado para meus sapatos sujos e cumprimentado-me com um "Bom dia!", ainda que já fosse tarde. Eu teria achado engraçado seu sotaque de interior, e soltado um riso tímido. Eu teria escondido meu relógio e perguntaria as horas. Você perguntaria meu nome, eu gaguejaria na primeira tentativa de dizê-lo. Ofereceria-me para fazer-te companhia, e sua solidão tocaria em um ponto secreto de minha vida. Haveria uma cumplicidade na forma como dividiríamos histórias. Eu ousaria a olhar em teus olhos verdes, e quando olhasse, veria-me afogando lentamente neles. Eu teria apaixonado-me...mas teus olhos eram castanhos.

Parquinho.

Sentei-me no pequenino balanço do velho parquinho enferrujado. À minha volta estavam três moleques, todos avermelhados de sol, sujos de areia. Abri meu caderno, e fiquei a rascunhar algumas de suas expressões. A mãe de um deles fez cara feia quando acendi um cigarro, tentou afastar a fumaça do filho, como se eu estivesse dando-lhe um sopro de câncer. Não dividiria minha enfermidade assim, ou partilharia minha queda de cabelos, ou a oscilação de humor. A fraqueza, tão minha, era indivisível. A mesma mãe, esticou o pescoço tentando enxergar minhas folhas, como se fosse assim tão suspeito sentar-se para um desenho. Pressionava meus pés contra a areia para fazer com que o balanço balançasse-me, mas o máximo que consegui foi escutar o barulho agudo de suas correntes mostrando-se parcialmente imóveis. Sorri para um dos moleques, depois de ter atirado uma miniatura em minhas costas. Não queria amizade, apenas uma resposta para rabiscar. Senti no olhar das mães, a vontade instintiva de chamar a polícia, "Veja bem, senhor, há um louco no parquinho, talvez seja demente, talvez um estuprador...". Pedofilia era sim um crime, talvez acusassem-me disso, talvez eu parecesse mesmo suspeito. Mas eu ali, sentado, caderno e lápis em mãos, ousado a ponto de não levar uma borracha. Poderiam talvez imaginar que eu estivesse ali a arquitetar um plano, fantasiar alguma situação. Pediria desculpas pelo engano. Não nego, sou louco. Mas antes, antes e depois, poeta.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

(D)Eixo.

A ausência de melanina e a cerveja quente, pudera o sol ser maleável a ponto de aquietar-se um pouco. Escasso era o fôlego que restava-lhe para chegar onde queria, demasiada era a sede, o bastante para engasgar-se com a ventania em sua direção. Tirou o passeio mais para fins espirituais do que físicos. Poderia muito bem resolver-se com seu corpo sentada na terapia. O que buscava ali, bem...talvez nem ela soubesse. Não era a luz no fim do túnel, pois o túnel era aberto e iluminado. Estava indo ao encontro do horizonte, despreparada para o que viesse depois de lá.

Senhoria.

Gosto de ser cortejada, como a mulher de tantos anos que sou. Fios acinzentados, caídos sobre a testa, entregam a muita história que a poucos quis contar. Assisti a muitos Outonos, ví-los virarem Invernos. Despretenciosamente, recebi alguns buquês de flores roubadas. Contive meus choros forçados, e recebi, como uma grande surpresa, as mais elaboradas palavras. Ouso ao disfarçar a idade com camadas de juventude em pó. Mas de outra forma, meus vasos estariam eternamente destinados ao vazio, às velhas orquídeas que teria comprado na porta do cemitério. Jamais cedi a um cortejo achando-o fuga. Senti-os todos na barriga, gelados. Aprecio todas as tentativas de roubar-me pedaços colocando-me em um papel, embora nenhuma delas tenha sido incontestavelmente eficiente. Deixo que roubem-me sorrisos, e embalem-me em uma valsa à meia-noite. Mas não desejo amor, a esse, na verdade, agradeço. Foram muitos fios acinzentados e estações a sua procura. E oras, como esconde-se bem o tal rapaz...

Ordem Natural.

Ainda haverá a demora de identificarem-se de olhos cobertos. Ainda hesitarão ao ouvir vozes familiares. Deverão, talvez, ainda julgar o encaixe. Ele contará de suas manias, gravará um disco com suas músicas favoritas, cantarolará a lembrança de uma velha música que colocava-o para dormir. Ela arriscará alguns palpites: tem pernas inquietas, cutuca o rosto sempre com a mão esquerda, prefere Caetano a Chico, não vê graça em orquestras, sentia sonolência com Vinícius. Ele a consertará: mania de perseguição, não aquietava-se até apoiar as pernas numa altura superior a do chão. Prefere Chico, tocava violoncelo às Terças-feiras no Teatro Nacional. Repousava os olhos escutando Elis. Levarão um tempo para conhecerem-se. Outro mais para entenderem-se. Talvez desistam, talvez ela insista. Permanecerão de olhos descobertos, descobrindo sardas e cicatrizes.

Pesada.

Acordava silenciosa. Seus olhos, arregalados, davam a impressão de ter passado por um susto. Punha-se a cuidadosamente analisar seu reflexo no espelho. Não tivera envelhecido tanto desde o dia anterior, mas suas olheiras entregavam o aumento de um cansaço. Estava fatigada, dispensava qualquer companhia. Acendia logo uma bituca de cigarro que restasse, e preparava um café. Mantinha-se acordada, e preguiçosa, atirava-se na cama. Protegia-se com uma manta peluda e ficava a pensar sobre a vida. Tantas vezes fora despertada por olhares curiosos, retribuídos com sorrisos desconcertados. Mas nesta época, em que vivia o Inverno, preferia o apito do relógio, e os lábios selados.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Pouco Tempo.

Na necessidade de ensinar-se a me amar, aninhou seu corpo no meu. Olhava-me de uma forma pura, quase infantil. Sorria, achando que sua falta de vontade seria imperceptível. Talvez fosse, se eu não quisesse vê-la. Enxergava-a tão bem, tão escura. Aninhei-me no corpo dela, como um recém-nascido querendo voltar para a barriga. Fingíamos estar enganando-os, mas entregávamo-nos procurando encaixe entre os dedos. Quem éramos ali fazia pouca diferença, quem queríamos ser...não queríamos.

Verbalizando Devaneios.

Você deve tê-la reparado na fila, enquanto aguardava por algumas migalhas de felicidade. Felicidade barata, quase gratuita. Prestou atenção em seus cabelos amendoados, nos nós de suas pontas. Fitou os olhos em sua saia cor de Carménere, que escancarava a travessia para um outro plano. Quis conseguir, da distância em que encontrava-se, escutá-la sibilar alguma história. Aproximou seus ouvidos o suficiente para parecer atordoado. Ela poderia ter oferecido-se para ajudar-lhe em alguma coisa, mas manteve-se da mesma forma, como se nada visse. A fumaça que brotava de sua boca era esnobe, fazia desenhos abstratos que desmereciam a presença de qualquer um. Apoiava uma garrafa de vidro entre as pernas amareladas, e desdobrava-se para alcançar algo na bolsa. Você logo descobriu que era um batom, e invejou seus movimentos suaves. Você nunca reparou tão milimetricamente em algo. Então é, talvez, eu devo tê-la reparado.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Menina Moça.

Movimentos circulares, a cada hora do dia os mesmos. Migalhas de pão preto, pão integral, alguns gergelins. Umidecia aquele balcão vermelho, deixava-o escandalosamente brilhante. Não era isso que havia desejado para sua vida, mas fazê-lo era inevitável. De Segunda à Segunda estava ali de pé, saudando os que entravam, explicando a obviedade do cardápio. Paciência havia sido a dádiva com a qual fora presenteada pelo Deus no qual insistia acreditar. Não sonhava com uma casa de madeira na beira de uma praia, ou um carro conversível. O máximo que queria era estar próxima de pessoas, proximidade limitada pelo jornal posicionado rente aos olhos. Servia o café fraco, repunha o conteúdo dos saleiros, comemorava a conquista de um agradecimento e algumas moedas. Como havia chegado ali...como? Saiu de casa com dezessete abandonos, foi recriar-se da forma como queria. Quando miúda, assistia o pai lustrar os copos de requeijão, servir neles um café ralo, reclamar de quem pagava fiado, e depois embriagar-se com uma pinga barata, quebrar os tais copos, queimar-se com o café. Escapou de um destino para acabar em um que, de longe, parecia o mesmo, mas lustrava copos de marca européia, e curava a inaceitação de estar ali desejando não estar em outro lugar. Não, não podia dizer que era feliz, mas também não era triste. Apenas lustrava seus sonhos, com um pano alaranjado de realidade.

2035

Trajada de dor foi procurar frescor reconhecendo a cidade. Fazia tempo que não punha-se a vasculhar cada subterrâneo, cada comercial, cada milímetro de seu espaço terreno de céu. Duvidava de onde havia surgido a mudança, se era de sua miopia incorrigível, ou do rejuvenescer de uma W3 idosa. Não reconhecia os primórdios urbanos, o paleolítico Mercado Central, que estava ali antes mesmo de um centro. O tão polêmico metrô leve, que de forma grotesca, pesava a vista cinzenta. Não sabia mais daquela avenida à beira-mar, a última vez em que passou por lá, fora para pular as sete ondas e abrir seu peito para o ano que estava por vir. Doze anos haviam se passado, e a poça d'água no asfalto refletia seu rosto que nunca mais fora o mesmo. Desejava ter acompanhado todas as mudanças. Diziam-lhe que, antes, ali não havia mar, era um oceano de pequenas casas, todas cinzentas ou mal-tratadas. Queria ter visto, queria ter entendido como o mar foi ali desaguar. Mas compreendia, era coisa daquele céu, que um dia, abriu-se tanto que acabou parando lá.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Mentira Para Dar Pé.

Foi falando de amor que fez com que eles chorassem. Tinha aquela presença de homem derrubado pela vida, um cavanhaque mal-feito e cílios dourados. Em momento algum tornou o amor que partilhava físico. Não citou as pernas torneadas que a ela cabiam, nem a forma como seu corpo saltava por seu vestido florido. Limitou-se ao modo como ela negava um abraço antes de dormirem cansados, e ao modo como ele acariciava o corpo dela apenas flutuando sua mão sobre o ar e satisfazia-se. De pé, em frente a todas aquelas pessoas que, desinteressadas, olhavam para ele quando lembravam-se, contou a estrada que havia tomado para estar ali. Falou de todas as drogas, especialmente daquela que escorria dela. Esqueceu-se de apresentar, mas ali era alguém apenas, sem nome algum. Estava com sua ferida parcialmente aberta, e dela escapava um pouco de sangue. E foi falando desse amor ensanguentado que fez com que eles chorassem. Demorou até que conseguisse falar o suficiente para olhassem-no nos olhos, e quando conseguiu, emprestou suas lágrimas para eles. Aqueles eram seus velhos amigos, aos quais havia abandonado. Ela não gostava deles, nunca gostaria, nunca gostou de ninguém. Foi olhando nos olhos de quem havia abandonado que, envergonhado, disse: "Poderia perder a todos vocês, duas vezes por dia, setecentos e cinco por mês, podia matá-los com minhas próprias mãos. Mas nada faria sangrar-me tanto, e agora eu só preciso que escorra...".

Fora.

"Que morram todos os amores, mas nunca a poesia", disse embriagado de tristeza. Abandonado pela musa, enfraquecido pelos anos, esquecido pelos amigos, estava ali, sentado no balcão do mesmo bar no qual jurou nunca deixar-se levar dessa forma. Não eram as perdas que, latentes, doíam-lhe. Era a falta de tinta na caneta recém adquirida, e o branco cansativo e insistente das folhas de seu caderno. Fora sempre poeta, nunca apaixonado. Precisava sugá-las, não amá-las eternamente e dividir-se em almoços dominicais e decoração de berços. Fora poeta e nunca soube ser nada além. Fora artista plástico, fotógrafo, amante e gourmet, mas respirava a poesia do oxigênio alheio. Mas agora encontrava-se ali, asmático. Sua taça de vinho tinto, marcada pelo batom de uma moça que encarava-o do outro lado do bar, havia tornado-se apenas um contentamento. Tinha perdido as palavras e a si. E agora, o homem poeta que fora, era apenas um simples homem, embriagado, perdido, descascado.

Vulnerant Omnes, Ultima Necat.

A cor de sua barba remetia ao degradê cinzento de uma tarde de chuva. Havia envelhecido precocemente. E morrido há tempos atrás. No pulso esquerdo, exibia um relógio de ouro branco. O brasão da pulseira denunciava sua origem, vinha da Europa, feito à mão por algum prisioneiro de guerra. Abaixo do brasão, via-se um pequeno escrito em latim, "Vulnerant Omnes, Ultima Necat". Pouco entendia de sua língua natal, o castelhano, mas sabia do peso e do significado de cada uma daquelas palavras em relevo. "Todas ferem, a última mata", e foi assim que morreu. Já tão ferido por diversos passados que escondia sob o terno feito à medida, morreu ao último deles. Uma bela moça, uma bela rapariga, portuguesa. Conheceu-a primeiro em sonhos infantis, para depois esbarrar seu caminho no dela em um saguão de aeroporto. Trocaram algumas palavras, até mesmo suas próprias, em uma tentativa pouco eficiente de comunicarem-se. Acharam algo em comum, a capacidade de entenderem-se em silêncio e gemidos. Atraíram-se pela dificuldade de verbalizarem-se. Não podiam definir-se, tampouco analisarem-se, ficavam apenas a trocar olhares e carícias. Na ausência de palavras, ele acreditou que não pudesse iludir-se. "Se não falas, não sinto", pensou, esparramado na cama, enquanto puxava o corpo dela até o dele. O que não percebeu, é que a inexistência de troca de palavras, não impedia a existência das palavras que ele tanto quis e pensou em falar. Entendiam-se tanto sem precisar de conjugações que, quando ela soube arriscar as primeiras palavras em castelhano, riscou-o de seu vocabulário. Estava farta de conversarem na linguagem corporal e portanto, resolveu partir. Deixando-o partido. O único traço dela que restou foi o tal relógio, com o qual presenteou-lhe na primeira vinda para sua vida. Aquele relógio contava as horas desde então. E naqueles escritos, em uma língua sobre a qual nenhum dos dois tinha amplo conhecimento, estava explicado exatamente o que havia acontecido, "Cada hora fere a nossa vida até que a derradeira a roube".

A Segunda.

Poderia chamá-la de primeira, e também de efêmera. Era um som contínuo, de timbres que oscilavam. Ia e voltava, escondendo-se na sombra. Havia algo que atraía-nos e repelia-nos na mesma proporção. Essa eu não deixei entrar, quis que ficasse na porta, controlando a entrada e a saída. Vez em quando, sentia-me só e aparecia na janela, e sem que víssemos, alguém passava sorrateiro pela porta, e puxava-me pela cintura. Indignada, sentava-se no gramado, trocava sentimentos com alguém que por ali passasse, mas logo voltava. Ela sempre fora o porto, que de tão seguro, seguramos tanto que soltou-se.

A Primeira.

Tinha, no lugar dos olhos, um par de buracos negros. E a tênue linha de seus lábios era metáfora do que separa o amor do ódio. Primeiro amor, ou primeira lição de reciprocidade. Quando a conheci, parecia mais miúda do que é hoje. Grandeza nunca aplicou-se a ela, mas ainda assim meu amor foi maior que seu corpo. Havia uma pureza quase estúpida nas palavras que trocávamos. Substituída depois por um rancor primitivo. Lembro-me do toque de nossas mãos, aveludadas ainda. Lembro-me de acreditar, de forma deveras juvenil, na eternidade do pouco espaço entre nossos rostos. Vi esse espaço aumentar, e o sentimento tornar-se desprezível. Vimos várias chances de regressos e retornos, mas deixamos que ficasse, da forma como tinha ido embora. Havíamos acenado, vergonhosamente, um primeiro cumprimento. Mas dispensamos um último.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Calle.

Quando desembarquei em Buenos Aires pela primeira vez - nesta vida -, deparei-me com um céu cinzento. Achei, primeiro, que minha visão estivesse corrompida pela fumaça de meus pulmões. Achei, segundo, que deveria parar de fumar. E entre achismos e nuvens tristonhas, acendi meu primeiro cigarro em território estranho. O céu dizia-me que já havia passado das seis da tarde, mas o relógio entregava o erro, duas horas e alguns quebrados. Carregava uma mochila nas costas, e nela, uma muda de roupas para entregar-me a vida. Resolvi sair a desvendar o cinzento preso ao chão. Centenas de edifícios, jovialmente envelhecidos, que sussurravam passados em meus ouvidos. Ao entardecer, sentei-me na pequena escada do Cementerio de La Recoleta para familiarizar-me com as palavras que escapavam das línguas que desconhecia. Uma língua despertou-me a atenção, e sequer palavras deixou escapar. Mas familiarizei-me com ela ainda assim. Assisti-a suavizar a secura dos lábios que guardavam-na, e esticar-se um pouco para alcançar o canudo disperso em seu copo plástico. Quando desembarquei em Buenos Aires pela primeira vez - nesta vida -, fui com a coragem de abandonar a poesia que cabia a mim enxergar nos outros. Mas chegando lá, percebi que talvez, a poesia tivesse sim aqui ficado. Mas na muda de roupas que levei comigo, ainda restava uma mancha insistente de solidão.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Falso Poeta.

Encondi-me dentro de tuas olheiras, e evitei-me no teu cansaço. Olhava-me torto, quase que desconfiado. Tossia escassas palavras, e evitava-me no silêncio de um beijo mal dado. Sorria com a mesma frequência em que chegavam os invernos. E pausava-me as batidas a cada gota de chuva que caía. Despreza-me? Pois bem. Desmereça o que nunca pôde ser, e que foi a ti liberto. Então vá, vá e pise em teus próprios calos. Porque se tu não fostes capaz de fazer-me feliz, nunca terás como fazer-me triste.

Poética Dialética.

Não há tempo para reconstruir-se. Apenas para interditar-se.
Então pare e lacre-se.
Largue-se.
Nas mãos de quem perdeu os dedos.
E jogou os dados.
Entre palmas,
entre almas.
Entretanto,
entre( um )pouco,
e fique por alguns instantes.

Leminskando.

Quando boca sabe-se boca,
vai à Roma.
E quando boca vai à boca,
prolonga-se o
t
r
a
j
e
t
o.
E quando boca, de alguma outra,
procura Romas a serem vistas,
é porque boca,
de secura pouca,
precisa de um boca à boca
para enfim
r
e
s
p
i
r
a
r.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Texto de Bem Te Quero.

De maquiagem borrada, tenta esconder-se do bom dia solar que atravessa a janela. Sonolenta, amansa-me as costas e o peso. Por tantas vezes, segurou meu corpo mole, sem endurecer-lhe o coração. Pela madrugada, aperta-me a vida contra a parede. Divide a cama como quem divide as dores, e amansa-me. Deixa que eu desperte para então despertar-se com um sorriso. Sábias palavras que tantas vezes disse-me, sábias vezes em que escutei. A vida é a mesma rua, sem bifurcações. Sonolenta, desperta-me o carinho. E com os olhos borrados de preto, colore-me os dias.

P.s.: Capuccino é o mínimo que posso lhe dar.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

SQS.

Amei seu amor errado. E cheio de certezas, amei seu amor incerto. Com fios crescendo debaixo do queixo, apoiava meus olhos em tuas pernas que, libinosamente tortas, faziam-me perder o equilíbrio. Já com o rosto coberto de um manto grisalho, de olhos cansados, e libido exausta, encontrei-me farto de amar seus amores e suas diversas faces. Não pude acompanhar a disritmia de tuas batidas cardíacas. Porém assisti o retardamento das minhas. Descompasso. E passado o tempo que passou por nós, desconcerto. Era irreparável o falecimento de amor em nós.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Msn na Madrugada.

- Sabe qual é a forma ideal de amor?
- Fale.
- Amar as estações da pessoa.
- Prossiga...
- Eu amei aquele menininho boboca que me puxava os cabelos. Apaixonei-me pela forma como ele fazia-me doer e depois tirava sarro. Amei a gargalhada e a forma como ele engolia a saliva depois. O amor mais...amor, é acompanhar as estações. É amar quando esse menino escreve a primeira carta de desculpas. Quando ele entende que meninos e meninas podem ser amigos. Quando ele começa a carregar os livros. Quando ele começa a escutar as mesmas músicas que eu. Quando ele começa a ter minha mania de usar "mas não é?" no fim das frases. Entende? É amar desde as flores brotando até as folhas secas caindo...