terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Vulnerant Omnes, Ultima Necat.

A cor de sua barba remetia ao degradê cinzento de uma tarde de chuva. Havia envelhecido precocemente. E morrido há tempos atrás. No pulso esquerdo, exibia um relógio de ouro branco. O brasão da pulseira denunciava sua origem, vinha da Europa, feito à mão por algum prisioneiro de guerra. Abaixo do brasão, via-se um pequeno escrito em latim, "Vulnerant Omnes, Ultima Necat". Pouco entendia de sua língua natal, o castelhano, mas sabia do peso e do significado de cada uma daquelas palavras em relevo. "Todas ferem, a última mata", e foi assim que morreu. Já tão ferido por diversos passados que escondia sob o terno feito à medida, morreu ao último deles. Uma bela moça, uma bela rapariga, portuguesa. Conheceu-a primeiro em sonhos infantis, para depois esbarrar seu caminho no dela em um saguão de aeroporto. Trocaram algumas palavras, até mesmo suas próprias, em uma tentativa pouco eficiente de comunicarem-se. Acharam algo em comum, a capacidade de entenderem-se em silêncio e gemidos. Atraíram-se pela dificuldade de verbalizarem-se. Não podiam definir-se, tampouco analisarem-se, ficavam apenas a trocar olhares e carícias. Na ausência de palavras, ele acreditou que não pudesse iludir-se. "Se não falas, não sinto", pensou, esparramado na cama, enquanto puxava o corpo dela até o dele. O que não percebeu, é que a inexistência de troca de palavras, não impedia a existência das palavras que ele tanto quis e pensou em falar. Entendiam-se tanto sem precisar de conjugações que, quando ela soube arriscar as primeiras palavras em castelhano, riscou-o de seu vocabulário. Estava farta de conversarem na linguagem corporal e portanto, resolveu partir. Deixando-o partido. O único traço dela que restou foi o tal relógio, com o qual presenteou-lhe na primeira vinda para sua vida. Aquele relógio contava as horas desde então. E naqueles escritos, em uma língua sobre a qual nenhum dos dois tinha amplo conhecimento, estava explicado exatamente o que havia acontecido, "Cada hora fere a nossa vida até que a derradeira a roube".

Um comentário:

Aventuras Sobre Duas Rodas disse...

Que maravilha de conto! Não sei se quem enviou a frase em conhece a origem, quem sabe somente a tradução, bem fora do contexto!
Vou enviar-lhe, caso não saiba até então.
Parabéns pela coletânea!