quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A vida é uma história de amor

Eu olho para essa página e tenho absoluta certeza do que ela é: uma página em branco, e nada mais. É uma folha em branco, mas sem precisar, para isso, sê-la fisicamente. E o propósito é que eu vá, devagar, preenchê-la com minhas palavras. Que não são propriamente minhas - pela universalidade das coisas quando significam e encontram seus próprios signos -, mas é o que tenho.

A verdade é que gostaria de escrever numas palavras só minhas, da maneira como tudo está escrito aqui dentro. Isso porque queria que só eu pudesse lê-la, e assim comprovar materialmente, para mim mesmo, o nosso pertencimento mútuo. Ao mesmo tempo, quero que partilhem dessa leitura, para que eu tenha certeza de que ela existiu. De alguma forma, o que eu quero aspira por eternidade.

Não adianta. É impossível. Não vou conseguir.

Eu nunca fui de escrever dessa maneira, tão presa. Pontuando tão incisivamente meus pensamentos. E usando umas palavras que, normalmente, eu nunca usaria. “Incisivamente” só me lembra os dentes. Eu nunca fui de escrever, é por isso que estou travado. Nunca estivesse nesse lugar antes, e estou transformando tudo num drama. Nessa página, folha, espaço em branco, eu não me reconheço. Mas meu objetivo é a liberdade. É me libertar. E liberdade tem a ver com se perder, não tem? Ou deixar de se encontrar, ir do quadrado para a assimetria. Expansão, não é isso? Meu Deus...estou louco! Mas preciso disso, porque também quero, aliás, quero principalmente deixá-la ir, para que eu cesse de tentar materializá-la de novo.

Não adianta mais.

Estou aqui para deixar de insistir. Acredito sim, aliás, tenho certeza: há um pouco de razão em qualquer estado de loucura. Mesmo que dure pouco, quase nada, até menos que um segundo, mas há sim, em um dado momento: aquele precioso momento de sanidade. É preciso que haja. Eu precisei que houvesse. Só dessa forma pude enxergar as coisas com a clareza que tento exprimir agora: ela se foi. Ela se foi e não vai mais voltar. O teor dramático dessa última frase coloca em questão essa sanidade na qual, supostamente, me encontro agora. Mas não é exagero, é a verdade. É a verdade fazendo da vida o que ela precisa fazer: exagero.

Minto se disser que me lembro exatamente de cada detalhe. Mas não me esqueço de algumas coisas, sei que estávamos em meados de dezembro, pois chovia com frequência, dia 12, pois eu tinha acabado de sair do encontro do grupo de leitura – e todos são no dia 12. Estávamos no café mais antigo da cidade, e isso porque todas as histórias de amor precisam ter um café incluso, seja no começo, no meio ou no final. Minto, eu lembro de tudo. Ela vestia um vestido tão preto quanto seus olhos de jabuticaba. Com uma sapatilha...ah, dane-se! A maneira como nos vestíamos, e a hora em que nos falamos pela primeira vez – 19h32 quando ela se afastou da minha mesa -, a música que tocava na hora – Endless Cycle, Lou Reed. Nada disso importa. Nada disso importa. E nem assim eu me esqueço.

Parece que minha cabeça se esvaziou totalmente só para que ela coubesse. Só para que ela coubesse tanto e tão confortavelmente que nunca mais precisaria sair, que nunca mais procuraria abrigo em outro lugar.

A gente primeiro percebe que ama e só lá bem depois se dá conta de que o amor tem sede de posse, né? Uma dependência, um desejo egoísta de propriedade. E não se contenta com um puxadinho na lateral não. Amor quer fazenda com um número tão grande de hectares que nunca será visitada por completo. Amor quer apartamento em Copa com vista pra praia, cobertura, de preferência. Amor quer viajar de primeira classe e se servir de champagne – champagne mesmo, não espumante – quando chegar em Paris. Amor quer tudo, tudo, tudo. E quase sempre acaba com nada.

Amor quase sempre acaba em nada.

Amor quase sempre acaba como nada. Como se fosse um nada.

Eu digo quase sempre porque vai que. Vai que, né?

Ela tinha um sorriso engraçado, e foi a primeira coisa que notei. Que ela tinha uma maneira engraçada de achar graça. Mas era bonito, uma maneira bonita de me fazer rir, porque toda vez eu me lembrava desse primeiro pensamento e achava graça. Que foi a primeira coisa dela que percebi, e que com o tempo mudou de graça. Antes, engraçado. Depois, gracioso.

Toda vez que penso nela eu sinto vontade de arrombar cada porta de cada casa para ver se em algum lugar ainda a encontro me esperando na sala.

Da primeira vez que fomos para a cama, foi no sofá. Saímos para um bar, um happy hour, ela que me convidou. Não esqueço de sua voz falhando ao telefone, dizendo que não queria se antecipar, nem parecer oferecida, que só queria trocar umas palavras e beber alguma coisa. Foi a primeira vez que saímos depois do dia no café. Toda história de amor precisa de um café e de um bar. E de vinho. Tomamos vinho, portanto.

Tínhamos muita pressa, percebo agora, por não ter analisado isso antes. Estranho que pensei e revi tudo tantas vezes na cabeça. Tínhamos muita pressa em tornar aquilo logo um amor. E bebemos duas garrafas e meia de vinho. Eu fingi que sabia escolher a uva. Ela fingiu que gostou. Mas todo o resto era feito de verdade. Tanto e com tanta força que, de início, eu não reconhecia o toque.

Toda vez que penso nela eu sinto vontade de revirar cada sala de cada casa para ver se em algum lugar ainda a encontro me esperando atrás da porta.

Bebemos todo aquele vinho e de uma coisa, ao menos, eu tinha certeza: o vômito sairia roxo e azedo. E daria trabalho limpar todo o banheiro. E eu teria que avisar no trabalho que não apareceria no dia seguinte. Não vou ser cínico, o sangue que me circulava ficava mais vermelho por conta dela. Desejava que sim, mas não pensava que um desejo desse pudesse se realizar tão cedo.

Acabamos indo para a cama, o sofá. Não vou dizer que nunca tinha feito amor daquela forma. Primeiro que não vou me permitir conjugar de maneira alguma isso, de “fazer amor”. Amor a gente fazia, e fez. E não parecia tão cafona. Segundo que ela me escorregava um pouco, sabe? Quando a gente até quer, mas não encaixa? Não sei se por vontade demais, por pressa. A impressão que eu tinha era de que, desde o início, era tudo tanto que era difícil colocar em corpo – tão difícil quanto colocar em palavras.

Isso não deveria importar, mas para que conste, nos acertamos depois. Nos acertamos de um jeito que escorregávamos juntos. Nos acertamos de um jeito que era difícil desgrudar uma pele da outra.

Toda vez que eu penso nela eu sinto vontade de rasgar minha pele pela cidade e ir em cada casa cada sala cada porta de mim para ver se eu a encontro me esperando para ir com ela.

Depois do sorriso, a primeira coisa que pensei dela foi: ela não é daqui. Isso não mudou com o tempo, como sorriso. Começou como certeza e foi assim sempre. Ela não era daqui. Eu sabia porque ficava sem saber como aquela existência dela conseguia existir em mim daquele jeito. Eu nunca fui muito de sentir. Com ela eu transbordava, para cima, para baixo, pelos lados. Com ela até meu sorriso começou a ter graça, que eu ria até dele rindo.

Toda vez que eu penso nela eu saio de mim e não penso em mais nada. Não me encontro em casa, nem em sala, nem atrás de qualquer porta, nem na cidade, e eu fico esperando até eu voltar.

É trágico, e eu sei e você sabe.

Porque se eu disse que histórias de amor precisam de café e de vinho elas, certamente, precisam de tragédia. Essas palavras são muito fortes. “Forte” é uma palavra forte.

Pareço estar na introdução de um livro de auto-ajuda.

Que se foda! Toda vez que eu penso nela eu espero que se foda. Eu desejo que se foda. Tudo, a casa, a porta, a cidade, a espera dela na sala. Tudo o que eu procuro procuro procuro e que é o nada que vou encontrar.

Eu quero foder com isso tudo. Era o que fazíamos eu e ela. Não falei que fazíamos amor, porque era foda. Era de foder com tudo. O que a pele dela fazia da minha era mais que amor. Ela fazia da minha pele mais humana. E o toque dela tocava onde nada no mundo deveria tocar.


Você deve estar sentindo o cheiro de gozo. Mas o que eu sinto é cheiro de lágrima. E gosto.

Eu me diluía...eu me eternizava...e não podia nem ser amor, mas era. Não podia porque me parecia tão maior. Mas isso deve ser amor mesmo. Eu só nunca tinha experimentado...

As doses homeopáticas de amor que recebemos ao longo da vida nos deixam paralisados quando recebemos um amor por inteiro. E dói.

Amor dói. Mas muito por isso que é tão bom. É que nem puxar aquela pele solta no lábio. Aquela pele solta na unha. Nadar contra a maré. Sentir o sol de meio-dia queimando os ombros.

Toda vez que eu penso nela eu dispenso o resto do mundo.

Ela não era daqui. Ela veio de outro lugar. E trouxe luz, onde era escuro. E foi clichê, onde eu era silencioso e mal-humorado.

Eu a amei tanto que me recuso a aceitar. E é por isso que escrevo agora. Porque preciso que alguém leia e me avise: ela foi embora, e nunca mais vai voltar.

O tempo corre e é mentira se dizem que a gente acompanha. Ninguém diz isso, ninguém diz nada. As pessoas só falam e falam e falam.

Por que ela não falou comigo?

Toda vez que eu penso nela eu falo com ela e ela me fala tudo, da casa, da porta, da cidade, da espera na sala. Mas ela não se encontra mais aqui.

Eu gostava muito de relógios de pulso. Eu gostava tanto que ela me dava um a cada Natal, um a cada Dia dos Namorados, aniversário...ela me deu um até numa Páscoa. Foram mais de quinze – multiplicados por essas datas, mais alguns extras. Foram mais de quinze, os anos. E toda vez que a via sorrir, ainda sentia o mesmo gosto do café que tomava quando a conheci.

Toda vez que eu penso nela eu arrombo a porta da sala e a encontro me esperando e a cidade toda se cala. E nada tem lugar.

Que a vida era muito pesada eu sabia. A gente sempre sabe desse peso-morte que a vida tem. Esse peso-se-morra. Esse peso-se-aguente até uma hora que tudo se arrebenta.

Toda vez que eu penso nela eu penso na sala do outro lado da cidade na casa da gente e nos relógios que ela me deu e que eu esqueci todos em casa naquele dia. Naquele dia eu fiquei sem hora. E coincidiu de ser bem a hora dela.

Ela não era daqui, e não a culpo se teve que partir.

Ela me deixou anotado num papel uma frase que a deixava sempre muito inquieta e que gostava de debater especialmente depois de umas garrafas de vinho ou no meio da tarde tomando um café: na natureza, nada se perde, tudo se transforma.

Eu a perdi.
Foi nesse momento que tive certeza, ela não era daqui...

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Coletâna de fragmentos I - As mulheres

Fragmento I - Marília -

Eu preciso rescrever Marília. De todas as mulheres do mundo, é justamente ela a quem preciso rescrever. E não por acaso. Só ela era ela e só ela seria quem só ela poderia saber. Sabe coisa do além? Pois é, ela ia além disso. Marília tinha aquelas bundas-mãe, aquele tipo de bunda-coração. Olhando a bunda despida, virando a cabeça pra baixo, se via um coração grande, ch
eio, polpudo. Sem contar como era incrível, também, a capacidade que tinha de sempre comportar mais um. Bunda-coração-de-mãe. Cabia sempre mais um. Sob ou sobre ela. Tipo de bunda que atravessa, é travessa e travesseiro.

Eu preciso rescrevê-la porque da primeira vez que a escrevi não consegui relatar com precisão a graça que só Marília tinha. Que só Marília tem. Que só Marília terá. Eu a deixei um pouco para trás. É que ela me atrasa o tempo.

(Marília, meu benzinho, se estiver me lendo agora, saiba que quando te vê, meu relógio biológico toca de um em um segundo o despertador).

Eu a deixei um pouco apagada, como se a escolha das palavras valesse mais que Marília em si.

(Marília, minha nega, se estiver me lendo agora, saiba que, para mim, brilha mais que céu de bêbado quando passa das 19h e ligam os postes de luz).


Ela era assim: para mim, coisa que só ela podia, pôde e poderia ser. E como? Ah, parecia aquela canção de amor saudoso com gosto de caramelo de doce de leite que toca, de repente, na rádio do carro, aliviando a insatisfação de estar preso por 3h em um engarrafamento, em um dia de chuva torrencial. Não sei o significado exato que isso tem. Mas Marília era assim para mim, significativamente sem significado. Dessa forma, ela me vinha: temporal que cai sem avisar no meio de uma tarde de segunda-feira e muda toda a sua semana. Ela me deixava sem reação, e sem saber se fugia, se me escondia ou se ficava: me molhava. Eu me encharcava todo dela. Era estranho, que eu olhava Marília e, por isso, olhava mar e ia.

Olhava Marília. Olhava mar e lia, imagine. Imagine que era feito pudesse ler o que as ondas escrevem na praia. Ondas sim contam histórias, e por isso, livros são apenas bobagens. O mar, o mar todo, cada movimento dele é uma frase. E eu olhava Marília e sabia. Sabia dos afogados e que, logo logo, me afogaria. Marília era aceitar nadar por horas para depois morrer na praia.

Ou não era nada disso. Mas uma coisa eu sei, aquela bunda...aquela bunda-coração dela desbundou meu coração.


Fragmento II - das outras mulheres -

Ela me olha. E não sei por qual motivo me olha tanto. Mas me olha. Toda vez que me vê, fica de longe me olhando. Que passem horas, não se importa. Quiçá dias. Se por exemplo, nos encontramos no café que fica logo ali na esquina, ela me acompanha desde o começo, desgrudando o olhar vez ou outra para tomar um gole de seu cappuccino ou tentar se concentrar em umparágrafo do livro que, supostamente, lê. Digo cappuccino assim com tanta certeza porque ela tem cara de quem toma cappuccino, sabe? Eu nunca perguntei, mas ela tem bem cara dessas. Com leite sem lactose, ou de soja. A xícara é sempre muito grande, e não seria um expresso duplo, nem longo, talvez chocolate quente, mas tem cara de quem já superou essa fase, de quem já deixou o chocolate em pó pela canela, e que usa lingeries bordadas, bordô – não consigo visualizar essa cor, mas pelo som, certeza que é essa.

Fica a me olhar com seus cabelos avermelhados caídos nos ombros e não sei nem seu nome. Ela me penetra devagar e é, ao mesmo tempo, um silêncio estranho e uma voz macia cantarolando no pé do ouvido. Só a ouvi falar uma única vez, quando esqueceu seu livro e me levantei correndo para ir atrás e avisá-la: a voz quase não saiu, mas agradeceu timidamente. “Gratidão”, ela disse como quem mastigasse e engolisse cada uma das letras bem rápido para não ter que dividir com ninguém. Era Virginia Woolf, mas eu teria apostado em Jane Austen. “Gratidão”, a única palavra que ouvi dela me desce que nem nuvem quando repito em voz alta. Ela me olha como se fosse leve o suficiente para me atravessar. Não sei o que vê em mim, mas ninguém nunca me olhou assim.

Fragmento III - são muitas as mulheres -

Ela chegou e virou tudo de cabeça para baixo. Quando eu era pequeno, me lembro, uma das coisas que mais gostava era de plantar bananeira. Vivia com calos nas mãos, de vez em quando caía e batia de costas. Mas era uma das minhas coisas favoritas, logo em seguida aos jogos de memória – que disputava com vovô - porque acreditava estar mais próximo do céu. Em dias de céu florido de nuvens, se acertasse o ângulo, meus pés sujos de lama podiam encostar em umas, com muito esforço eu conseguia até segui-las na mesma direção que o vento. Quase sempre escorregava, ou perdia a força nos braços e caía de costas no chão. Às vezes até de cara.

Mas é basicamente isso, ela veio. Em tempos onde nada nunca vinha. Veio e virou tudo de cabeça para baixo e eu tive fôlego para ficar plantado em bananeira, sem nem arriscar cair. Era uma coisa que só ela. Ela era uma coisa que só. Dessas coisas que você pensa que poderiam existir sozinhas, sem mais nada. Não que fosse completa, não era, mas seus vazios, suas ausências, suas rachaduras que lhe davam a leveza tão própria. Ela chegou, sem mais nem menos – como eu disse, ela tinha condições de existir por si só, então quando ela veio a luz do mundo ao redor se apagou por um instante para que somente ela viesse a mim e somente eu a recebesse e somente isso e mais nada, mais nada. Chegou e virou tudo de cabeça para baixo, e a vida daquela forma era muito mais bonita. Muito mais leve, eu pisava nas nuvens com ela e me ardia de sol.

E o mundo assim, com ela, fazia muito mais sentido, porque era muito melhor ter o céu debaixo dos pés. E se sentir infinito. Porque não existia linha do horizonte, horizonte ali era tudo. Fora do alcance dos olhos. Tudo imensidão. Era muito melhor ter o céu debaixo dos pés e nunca mais precisar olhar para cima – só de vez em quando, que de vez em quando eu sentia falta de todo o concreto e da fumaça e dos ônibus lotados e do cheiro de pastel frito com caldo de cana na rodoviária. E de ver as nuvens escorrendo pela cabeça.

Fragmento IV - são muitas, mas tantas, as mulheres -

Eu quero escrever, pai, sobre uma mulher que mudou o mundo, pai. Se não o mundo inteiro, ao menos o meu. Ela inverteu a rotação. Ou parou, indefinidamente. Essa mulher…você sabe, né, pai, espero que você saiba que cada um de nós é um astro um mundo melhor um planeta. Todo um universo! Ela veio assim, sim, todas elas vêm. Mulheres não brotam da terra, nem caem das árvores, eu não sou tolo e ainda as assisto porque não é possível, pai, isso que elas fazem, elas espalham sei lá o que é isso que mulheres têm, mas elas espalham por aí, por esses mundos astros universos, que fazem os dias de sol hipnotizantes e os dias de chuva de sol para serem hipnotizantes da mesma forma. E a melhor parte, pai, é que de vez em quando alguns homens têm a sorte de que uma venha para eles. E ela veio, como veio, veio vindo, assim de fininho, mas arrombando a porta sem nem descascar o esmalte de um dos dedos, sem nem pingar uma gota de suor. Sim, pai, não voltei. Parei, juro, pai, parei com o pó. Não, nunca mais, nem desodorante, pai. Cerveja sim, mas como sem cerveja? Como ser,-veja? Como ser sem ela? Ah, eu já não sei, porque ela se instalou em mim e nem fazia frio, ela se escondeu debaixo da minha pele e de vez em quando levanta meus pelos em calafrio. Ela gosta de silêncio. Eu juro, já faz mais de ano, pai, e nem deus sabe o tanto que suei. Se juro pela minha mãe? Mas ela já tá morta, pai, não acho que vá morrer de novo. Se bem que sei lá, a vida toda é tanta morte que a morte não deve acabar por ser vida não, só cerveja e buzina da alegria, pai, eu juro. Mas nada disso te interessa, eu estava falando dela e você vem e me interrompe e não é alucinação, deus quisesse que fosse e eu não me arderia tanto. Amor arde, pai. Queima o peito. No Carnaval, pai, buzina de alegria só no Carnaval. Sim, e a cerveja. Você pode abrir as gavetas e verificar, não vai encontrar nada, nem pó nem pedra nem nada. Eu sei, pai, você já me disse que quem se mete com essas coisas para de se aproveitar dos melhores prazeres do mundo: nem come e nem fode. E você pode ver, eu tenho comido e me fodido muito. Chega estou mole. Chega estou seco. Mas a vida toda é Carnaval, serpentina som alto cerveja praia sol pele dourada suor gozo gozada essa vida é muito gozada, pai. Você me disse para ser feliz, estou sendo. E tem felicidade maior que pular Carnaval todo dia, pai? Chega estou seco. Chega estou mole. A felicidade, uma hora, cansa. Além disso, perdi uns 10kg. É que lá em casa, desde que ela chegou, não tem mais nem panela. Minha fome só se mata no corpo dela.

Fragmento V - eram muitas as mulheres -

Nós não éramos. Eu era, ela também. Seríamos juntos desde que assim: eu e ela, ou ela e eu. Mas nunca nós. Até tentamos, mas os ossos perto da virilha dela me espetavam a barriga. E ela achava que eu roncava demais. Mas ainda assim, nada me deixava da mesma forma que ela. Que chegava e partia em menos tempo que uma piscada. E nada me deixava como ela – falo da forma como meu corpo ficava. Ele respondia como se tivesse nascido pronto para recebê-la. Como se só ela o pudesse despertar do cansaço da exaustão e do sono da vida quando tudo que ele mais queria era um instantinho de morte. Mas ela me espetava com os ossos a barriga. E achava minha respiração alta demais, mesmo acordado.

A gente tentou. Um pouco mais do que normalmente tentariam. Porque ela gostava muito da minha voz e do meu cheiro. E das palavras que eu escolhia para dizer coisas que ninguém escolheria dizer. Ela me achava meio louco, e eu achava totalmente, mas dessa forma que era bom, que daí a gente nunca se perdia. A gente gostava de sair. A gente gostava muito de assistir a cidade e abordar estranhos para dizer coisas que ninguém diria. A gente gostava de sentar em restaurantes para assistir as pessoas e escrever a história delas em guardanapos.

Ela me achava meio louco e eu era totalmente, mas por ela. Seus ossos me espetavam a barriga, mas era ainda pior, já que seus olhos me espetavam o coração. Eu lembro de uma noite quando saímos, eu e ela, era junho. Festa junina. Nós dois vestidos com o mesmo xadrez, usando umas botas maiores que nossas pernas e uns cintos de fivelas bem chamativas. A gente se divertia com nada e isso era, basicamente, tudo. A gente passou pela barraca de doces, e ela pulou para trás, e abriu bem a boca num grito tão agudo que me abaixei para escapar do tiro. Ela se aproximou do balcão e apontou. Voltou com uma maçã-do-amor, maior que seu rosto, espetada num palito, envernizada de açúcar nas mãos e um sorriso maior que toda a Austrália. E disse assim:

- Eu adoro isso! Como é mesmo o nome? Disso aqui, desse amor duro de maçã?

E eu nunca me esqueci, porque depois que ela falou, sem pensar, se riu que quase se borrou na vida. Quase se desfez em riso. E chega roncou. E seus ossos todos quase explodiram do tanto que ela não se cabia de risada. E foi mesmo engraçado, especialmente a cara que ela fez depois que se escutou. E ela ria que quase se caía e eu a segurei. Seus ossos da virilha me espetando a barriga. E ela maçã avermelhada brilhante se morrendo se vivendo de tanto rir. E de repente vi, que era exatamente aquilo ali que nós éramos, um avesso do que eu e ela éramos. Ela maçã e eu palito.

Era um amor duro de maçã.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Fragmento IV - ou cartas para um corpo ausente

Eu sinto muito. E muito do que sinto é só falta. Como uma parte que me foi arrancada de súbito. Um membro que perdi num acidente - e ainda sinto se movimentar. E foi mais ou menos isso. Não digo qual membro me foi arrancado porque precisaria confirmar ter sido o coração. E dizer isso me daria urticária. Falar do coração, como algo passível de ações de outros, como algo passível de trocas - inclusive na posse dele -, é uma coisa cafona. Diria até desnecessária. Pulemos essa parte. Mas é mais ou menos isso, como um membro mutilado em um acidente - odeio essa palavra "mutilação", é tão dramática. Mas é, é mais ou menos isso, fui acidentado. Atropelado pela vida. Que parecia uma senhora paciente a me assistir brincar no jardim, a me ajudar catar as pitangas nos galhos mais altos, a me ajudar a amarrar o cardaço a cada novo tropeço. Um dia, que parecia como outro qualquer, nem a vi se levantar da cadeira de balanço e quando abri os olhos de novo, no jardim não estavam mais os pés...nada de jabuticaba, nem de amora, jaca, manga...nem mesmo as pitangas! Nenhum pé. Nada mais ali me dava, e nem daria, pé. A grama toda queimada. E um jardim todo feito de vazio. A velha senhora, a vida, acabava de me dar um tapa. E o que escutei, antes de cair me dizia, dentre outras coisas, que a vida não deve ser só feita de flores. Abri os olhos, e olhei aquilo tudo. Por horas, dias, meses. E eu não podia me mover, me via cada vez mais preso ao chão. As cores todas tinham se perdido. E a coisa mais estranha, é que logo depois de abrir os olhos, me pegaram pela mão. Aquela senhora e alguns dos meus tios. Me pegaram pelas mãos e me levaram para um lugar claro, mas que me fazia me sentir escuro. Entrei por uma porta, e todos em volta me olhavam e não me viam. E eu sentia por eles, cabisbaixos, a quem não reconhecia. Entrei pela porta aberta que dava para uma sala toda branca, mas sem sê-la, revestida de granito acinzentado do chão ao teto. Nela, haviam flores. Muitas flores, principalmente brancas e amarelas. Amarradas em círculos, espalhadas. Circulando um caixote de madeira. Madeira feia, avermelhada, que brilhava cheia de...como é? Cera? Era uma presença de extremo mau gosto. Mas haviam flores, ao contrário do que a senhora havia me dito. Me aproximaram do caixote e quando fui olhar, continha dentro dela, além de flores, uma presença ausente, que me foi deixada, pela vida.

E eu sinto muito, pela vida ter que atropelar, às vezes, dessa forma, para nos fazer perceber que nem tudo é feito de flores. Mas que flores são tudo. Dito e feito.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Um conto sobre o amor

Se ficar bêbado fosse uma profissão, eu já estaria perto da aposentadoria. Não passo uma noite longe do bar. Isso é estranho? Mas não acho que eu seja alcoólatra. Eu só gosto desse ritual. De me assistir no processo, entre estar atado ao chão e começar a levitar. A verdade, é que me sinto meio à parte do que acontece no mundo. E quando bebo, qualquer lugar é mundo.

Ontem eu me senti mal, porque entre os copos de vodka e o frio, começaram a falar de saúde doença câncer terminal avc hepatite pílula do dia seguinte anti-concepcionais hipotireodismo, e eu nunca nem fiz exame para saber se tenho alguma disfunção hormonal ou um sinal cancerígena na pele, ou sei lá...pressão alta! Eu não sei nem dizer em que andar vive a minha pressão. Não gosto de médicos. Semana passada eu saí correndo da sala de medicação por não aguentar mais tomar soro, e ver aquele branco todo.

O que aconteceu foi que bebi tanto que passei cinco horas vomitando, depois dei um intervalo de duas horas para me deitar no chão do banheiro e encarar o teto. Nunca tinha percebido o quão feio e embolorado ele está. Dá uma sensação de sujeira, mas aqui em casa é tudo bem limpinho. Minha mãe lava as embalagens de tudo o que compramos, antes de guardar. Sim. Minha barba já está crescida há tanto tempo que logo já deve começar a cair, mas ainda moro com minha mãe. Não sei como deixa-la. Como deixar alguém que lava todas as embalagens antes guardá-las? E as seca. Ela as seca também. É uma coisa meio psicótica paranóica doentia, eu sei lá. Mas acho bom. Acho que é bom sim, de alguma maneira.

Enfim, durante o meu intervalo, enquanto estava deitado no chão do banheiro pedindo a Deus para que por favor me levasse e deixasse essa minha dor esse meu vômito essa minha tontura para trás eu recebi uma mensagem de uma mulher que me ama lá de longe. Ela me ama lá do outro lado do oceano. Rodeada de uma língua que conheço, mas pouco compreendo. Ela me ama inclusive em mais de duas línguas. E eu não sei porque, mas ela simplesmente me ama. Como se nada lhe restasse fazer além disso. Me amar, me amar, mar mar, a distância que seja. Uma vez despencou de lá só para me dar uns beijos. Uns milhares. Na minha língua e nas dela. Foi legal foi lindo porque parecia coisa de cinema e tinha cheiro de pipoca, mas ela andava na ponta dos pés, e eu não consegui parar de odiar isso depois que comecei. Em alguns momentos, até cheguei a achar bonitinho, parecia que ela estava escalando as nuvens, mas aí eu me lembrava que ninguém faz isso, e eu tinha vontade de tirar fora os pés dela. Mas mesmo sem eles, não era, nem nunca seria ela. Entende? Ela pesava demais para pisar nas nuvens. E meu sonho sempre foi amar no céu.

Mas é isso, enquanto eu estava naquilo de encarar o teto, tinha uma outra mulher dormindo quase desmaiada no meu quarto esparramada na minha cama. Ela vive aparecendo por lá, isso já faz uns dez anos. Talvez menos. Com certeza mais. Já mudei a cama de posição, já mudei de cama, mas ela continua indo parar lá. E isso quase toda noite. Ela me chama de amor, e ainda diz que sou dela. Me chama de meu amor mesmo sabendo que já fui amor de outras, enquanto era amor dela. E quando ela me pergunta quantas eu digo que não sei. E ela diz que mais de dez em cada ano. Talvez menos. Com certeza mais. Então deve ser amor mesmo, né? E eu devo mesmo ser dela.

Quando consegui, finalmente, levantar do chão e voltar para o quarto, ela viu que a outra, a que fala mais de uma língua e me espeta com os lábios, apareceu nos meus olhos. Não sei como. Ela simplesmente vê através de mim. E me atravessa não importa a hora não importa o tempo não importa nada. E mesmo assim, vendo a outra em mim, viu primeiro minha palidez e meus joelhos trêmulos e meu cabelo com cheiro amargo e me levou até o hospital, onde ficamos por umas duas horas, sentados. Esperando, e ela sem falar nada. E eu gemendo mais alto que um cavalo – cavalos gemem? Se não, deveriam – para ver se ganhava um olhar dela. Um olhar dela no meu e meu coração pararia de disputar a dor no tapa com o estômago.

Sabe que não sei em que ponto quero chegar. Hoje fomos ao cinema, eu e ela, como fazemos todos os domingos - é quando a gente se despede e se vê quando der -, e eu falei que acho esse troço de amar meio psicótico - pior, ainda, que lavar todas as latinhas. É claro que discutimos, a gente sempre discute. Porque ela sonha em constituir família, e eu só espero ter dinheiro para nunca faltar bebida na geladeira – que ainda é a da minha mãe. Ela é meu amor pão com ovo. A gente até finge que não, mas nada no mundo é mais gostoso.

“Basta querer” é isso que ela me diz quando eu tento dizer que é ridículo tentar garantir que vai me querer para sempre. No começo, me dava vontade de vomitar, mas eu já me acostumei. Eu odeio a hora que ela vai embora, porque só ela sabe me deixar. E só ela volta depois que me deixa. Eu tenho muito medo de que um dia ela vá embora, e não volte no domingo seguinte. Vem muita pipoca no saco pequeno. Às vezes você não fica assustado pensando na possibilidade de nunca ser amado?

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Mais um de amor/ mais de um amor

Era só um instante. Um instante que nos separava daquilo que éramos para algo muito maior. Eram alguns centímetros, entre meus lábios e os seus. Entre seu pescoço e a minha nuca, alguns a mais. E toda essa distância podia ser, era, muito maior. Questão de milímetros e quase, mas quase mesmo, poderíamos desafiar todas as leis da física da química da matemática as leis de todo o mundo e ocupar o mesmo espaço – mas ele não existia. Isso era quase. E eu tenho certeza. Entre nós, quando não nos encostávamos, quando ficávamos só a nos olhar com estranheza – afinal, éramos um estranho ao outro, por mais que uma luz se acendesse no fundo dos olhos nos dizendo que não -, quando ficávamos assim, nesse bem querer distante que se queria desde o cálcio nos ossos, parecíamos dois seres vivos em morte – de tanta vida que nos petrificava. E ficávamos, na distância entre nossos corpos, a nos olhar com estranheza naquela intimidade distante que, tão logo, se revelaria ainda maior. Porque éramos, afinal, um talhado de maneira a caber encaixar em cada ausência rigidez orifício do outro. E por sermos assim, já tanto e já tão depressa, as coisas desandariam um pouco – caminhariam no tempo próprio, onde não caberiam as palavras e só os olhares estranhos que ficariam a se estranhar e se querer nesse bem querer tão grande que se confundia. Ficávamos a nos olhar, os lábios se tocando mesmo distantes, e havia um espaço ali. Naquele espaço entre o meu corpo e o seu: o infinito. Era ali onde se encontrava. E quando nos encostávamos: o infinito escorria pelas nossas pernas, escapava pelos lados e subia, arrepiando os cabelos. Também subia. O infinito era em horizontal vertical e em diagonal. Transcendia, num sambinha meio mole, meio caído para o lado esquerdo, com os ombros encostados na poltrona, sonolentos, esperando só a hora, os pés querendo ir, querendo ser levados, sem nem se importar para onde.

Isso tudo. Isso tudo é besteira. Isso infinito. Que nos possui de uma forma estranha. Onde, mesmo estranhos, nos beijamos a boca e lambemos as feridas. E por um segundo que seja, de uma noite fria de maio, parecemos feitos um para o outro, e nos desfazemos, por meia-hora que seja, um no outro. Isso infinito que se soma as miudezas dos dias e nos arrastam pelas ruas, a atravessar rapidamente enquanto os carros se embaralham, a segurar as mãos. Esse espaço infinito em que nos molham os lábios e eu só penso em algumas palavras para te dizer e espero que sejam ditas sem que eu precise abrir a boca. Essas palavras que nos saem pelos poros e eu te olho e você me entreolha – e na estranheza não lhe deixo mistérios, você me entra e nenhuma porta trancada, nem semi-aberta, nem nada. Eu deixo que entre e espero mesmo que nunca saia, por isso, essas palavras nunca ditas já dizem, imediatamente, que eu espero por algo infinito em tempo, mesmo sabendo que não existe. Ou querendo acreditar que sim, mas homem o suficiente para dizer que não. Não vamos nos assustar. Não vamos nos assustar. E eu te beijo os lábios e você me morde a língua. E nada nunca é tudo e tudo sempre é nada. Eu te beijo com essas palavras engasgadas. E nosso beijo tem gosto de verbo. Que saiba, eu conjugo, com a precisão de quem costura um peito aberto, num volume baixo quase afundado na terra, antes de dormir, e a cada vez que acordo, ao longo da noite, e te olho acordada em sonhos...