segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Passaporte.

Escreverei-te uma carta, esperando não ser de definitiva despedida. Falarei sobre os campos cobertos de girassóis pelos quais passei, e de como quis vê-los contigo, de como imaginei seus olhos atados àquela paisagem intimidadora. Reparando naquela mescla de cores, visualizei seu sorriso infantil ao vê-la. Comentarei sobre o tempo frio, que tornou-se de impossível convivência. Direi o quão bobo pareço coberto de inúmeras camadas de lã e algodão, e imaginarei-te imaginando-me desta forma, sei que há de gargalhar ininterruptamente por alguns segundos, e depois encerrará as gargalhadas com um suspiro, voltando seus olhos para minha letra descuidada. Levará um susto quando minhas letras anunciarem a proximidade de meu corpo a outro, e esperarei que saibas que, no fundo, foi apenas uma maneira de fazer-te preocupada. Direi estar, no momento em que escrevo, bebendo uma taça de um belo vinho, cujo aroma frutado lembra-me de seu perfume, mas nas entrelinhas deixarei claro que tal perfume nunca escapou-me da lembrança. Contarei como a foto tua que carrego, traz-me saudade, escondendo outras sensações. Terminarei dizendo-te que em breve estarei de volta, que sinto saudades de casa. Esperarei que lembre-se de que não tenho uma, e ofereça-me a tua. Aí então eu largaria a máscara por detrás do envelope selado, compraria uma passagem, e apareceria na tua porta, ajoelhado.

Pés.

Buraco.
Mais buraco.
Um rasgo.
Outro rasgo.
Perfura.
Perdura.
Os anos.
Usamos
desculpas,
palavras,
esparadrapos.
E para dá-los
doamos,
vendemos,
trocamos.
Buracos,
só mais
buracos.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Café da Manhã.

Passaria para visitar-te de manhã cedo. Sentaríamos no balcão da padaria, eu pediria um pingado, e você um suco de laranja natural. Você olharia-me nos olhos, puxaria-me para perto, riria quando minha cadeira cambaleasse, lamberia os lábios, respiraria fundo e diria que amava-me. Eu diria que amava-te mais. Tu olharia-me com aquela cara de quem não entendia como, e então eu diria-te os porquês. Tu acrescentaria os portantos, e por pouco não deixaria escapar os entretantos. Eu queimaria minha língua com o pingado, tu dirias que o acontecido só se dera por eu ser tão boba. Jogaria em ti a culpa de minha bobeira. Tu olharia-me com aquela cara de quem não entendia como, e então eu diria-te quando. Tu pediria pela data, mas minha memória mostraria-se fraca. Teu suco viria com gelo, e então eu exaltaria-me como se deixassem-te morrer na maca do hospital. Tu dirias não ter visto problema, e passaria a mão por minha perna. Eu então acalmaria-me, beijaria teus lábios, que já molhados narrariam teu amor por mim. Eu olharia-te com aquela cara de quem não entendia como, faltariam-te os porquês. Diria-te os portantos, os para quê, e o para sempre.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Estações.

Poderíamos ter seguido, mas preferimos sentar-nos para o tempo. Fizemos sala para a vida. Fizemos quarto para o amor. Montamos uma casa, um jardim, um quebra-cabeça. Montamos um ao outro. Esperamos a Primavera, ela veio. Passeamos com o verão. Permanecemos calados junto ao Outono. Escondemo-nos do Inverno que nos encontrou. Foi quando te levantastes e fiquei perplexa. Despediu-se da vida. Deu às costas para o amor. Demolimos a casa, fizemos do jardim um cemitério, perdemos as peças. Demolimos um ao outro. Esperamos as estações, não vieram. Ficamos na mesma estação indefinida. O trem chegou. Você partiu. E partiu-nos em cada pedaço que reescrevo aqui.

http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

Despedi-me sim. Apertei-lhe a mão e o peito. Incomodou-se sim. Acomodou o incômodo até tornar-se imperceptível. Parti pela janela, pulei. Fui notada, louvada, levada para nunca mais e nunca menos. Não sentes pois nunca sentiu. Por meio desta, tento lembrar-te, tendo fazer-te acordar. No entanto, não consigo. Fui apenas uma miragem, cujo frescor e o vento, esqueceram-te de avisar, nunca existiu, nem nunca existirá.

Do blog: http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

Defunto.

Assustei-me. Assustei-me quando enxerguei-te de pé. Parecia uma linha perpendincular ao horizonte. Quando foi que tornou-se tão magro? Assustei-me ainda mais quando enxerguei-te de perto. Nem uma máscara esconderia os buracos abaixo de teus olhos. Quando foi que tornou-se tão mórbido? Desde que lembro-me - e minha memória, sabes bem, nunca foi pouca -, seu corpo escandalizava em carne e vida. Diga-me, o que aconteceu? Caístes de um prédio ou caístes em si? O que mostras agora por fora, parece-me exatamente o que vi quando entrei um pouco em ti. Esquelético, ossos, só ossos, nada que batesse, nada que pulsasse, nada que valesse, ou que vivesse, ou que tentasse. Morto, é isso que sempre fora, é isso que sempre será. Levou bastante tempo para que percebesse. Tirou algum tempo para tentar levar-me contigo. O que levou foi um pouco de vida, de minha vida, em forma de tempo, em forma de coração.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Quereres.

Queria, sem confessar, que a vida fosse feito um conto de fadas. Porém até os vagalumes perdiam suas asas. Queria, no meio da tarde, passar para fazer-lhe uma visita, roubar-lhe um beijo, dar-lhe, em troca, mais um pedaço de seu coração. Queria que saíssem para caminhar na areia, mas o mais próximo que tinham eram calçadas e cascalho. Queria segurar sua mão com força, mas a força que tinha era para manter-se de pé.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Veja Bem.

Com os olhos nos olhos e as lágrimas em seus cantos, relembrávamos de quando fizemos um passeio pela praia no fim da tarde, como se a memória deste pudesse salvar-nos. Relembrávamos dos cafés na cama, dos Domingos esparramados nela. Citávamos velhos amigos e histórias que faziam-nos rir. Eu comentava sobre seus cabelos longos no fim da década de 80, enquanto você criticava minha velha mania de criticar-te. Falávamos sobre quando ficamos sem dinheiro e foi preciso abrir mão das saídas de fins de semana, e de como isso tornou-nos mais próximos. Riu relembrando de minhas juras de amor, tão desconcertadas e ingênuas. Ri do seu sorriso, e de como um dia acreditei que ele fora tudo que eu sempre busquei. Falamos de quando nossa paixão tornou-se fora de moda. Falamos de quando nosso amor tornou-se fim de tarde assistindo televisão. De quando o vício tornou-se apenas um vício, e fomos buscar outros - em outros.

Carta ao Passado.

Começamos com um cumprimento.
Como estás? Por onde andas? Sumistes dos meus sonhos, quero dizer, pesadelos. Um dia desses veio-me à memória a tua lembrança. Veio feito um filme antigo, repleto de cortes, sem sequência temporal. Rebobinei-o, assisti-o ao avesso, mas permaneceu sem imagens nítidas. Vi-me sentada ao seu lado, sem contraste. Assisti, nos meus lábios, o surgimento de um sorriso forçado. E nos teus, a permanência de um sorriso gélido. No enfoque que deram em nossas mãos, vi-as separadas pelo espaço - de tempo. Enganávamos a quem? Pois nem nós mesmos acreditávamos em nós, nem muito menos fitas, nem muito menos laços. Éramos um par de cordas desatadas que, sozinhas, romperam-se. Lembro-me do choro. Chorávamos como se nossas cordas tivessem sido separadas. Sabendo, no fundo, que chorávamos por elas nunca terem unido-se. Não era minha corda com a sua, ou sua corda com a minha. Era corda com corda e a esperança de uma concordância nominal. "Nós amamos, nos amamos". Mas não amávamos não. Eu amei de um lado, e você amou de um outro. As cordas, não nós.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Sóis.

Quando o sol olhou-me pela primeira vez, não enxergou-me como enxerguei-o. Quando olhei-o pela primeira vez, olhei-o de relance, foi preciso olhá-lo de novo para reconhecê-lo. Não queimou-me a retina, ou deixou-me agoniada, seu olhar prendeu-me. Quando o sol olhou-me pela primeira vez, olhou-me pelos teus olhos.

Ctrl C.

Enxergou-me.
Enxerguei-te.
Procurou-me.
Encontrou-me
Viu.
Invadiu.
Abriu a porta.
A janela.
As cortinas.
As pernas.
Deleitou-se.
Deletou-me.
Deletamo-nos.

domingo, 22 de novembro de 2009

Podemos sim.

Sentados à mesa para falar de saudade.
- Poderíamos amar-nos de novo.
Sentados à mesa para falar da vida.
- Poderíamos viver-nos de novo.
Sentados à mesa para falar do passado.
- Poderíamos conhecermo-nos de novo.
Sentados à mesa para falar do futuro.
- Poderíamos um dia sentar-nos à mesa.

Desculpas...

Chuvisco.
Chuva.
Tempestade.
Gota.
O(u)t(r)a.
Tá.
A(h).
Gota.
Tempestade.
Chuva.
Chuvisco.
Gota.
(D'água)
Tá.
(Última).
Já?

Dois de Costas.

O que passava-se por detrás daqueles verdes olhos era uma caixa de Pandora. Eram olhos curiosos, intrigantes, mas seus segredos, quando descobertos, poderiam fugir do controle. Era possuidora de um bom gosto homérico. Degustava dos melhores vinhos, punha para tocar os maiores clássicos, conhecia de cor as mais aclamadas obras literárias. Exibia-se ao público com aquele velho ar esnobe, desprezava qualquer quase todo o tipo de companhia. Quando em festas, checava seu relógio de pulso a cada dois minutos, até que somassem-se dez e ela sentisse-se no direito de retirar-se. Seguia até sua casa, com uma calma irritante, como se estivesse rumo a uma cadeira elétrica.
O que passava-se por detrás daqueles dourados olhos era como um artigo de jornal. Eram olhos explicativos, claros, mas seus erros, quando descobertos, poderiam fugir dos padrões. Era possuidora de um mau gosto mixo. Engolia as piores cachaças, punha para tocar as "melhores da semana", conhecia de cor a programação da televisão. Escandalizava-se para o público com aquele velho ar efusivo, aceitava qualquer tipo de companhia. Quando em festas, dava seu telefone a cada dois rapazes que pediam, até que somassem-se dez e ela sentisse no direito de entregar-se. Seguia até a casa dele, com um ânimo contagiante, como se estivesse rumo ao berçário.

Filme.

Culparia o cansaço de suas pernas finas, ou a vida, ou a falta de apetite. Quisera poder segurar tudo em suas mãos, mas cada uma das coisas dava um jeito de escapar-lhe pelos dedos. Talvez fossem como passarinhos, e a força com a qual segurava-as ia além daquela pretendida. Apertava-as de coração apertado. Quisera que sua vida fosse uma coleção de colares de pérolas e belos penteados, acompanhados de sorrisos imóveis e acenos repetititivos. Uma vida na qual os cordões não rompessem e os fios de cabelo não prendessem-se nos lábios. A vida que tinha era-lhe indigesta, exaustiva. Vivia a tropeçar nas contas que escapoliam de seus colares, a cegar-se com os fios de cabelo nos olhos. A vida dos outros era soma de momentos. A sua fora, até então, a soma de acidentes. No encontro de um acidente seu com o momento de outro, perdeu as raspas de fôlego que entravam por sua boca. Julgou aquela sensação como um momento. Sua vida era, agora, a soma de trilhões de acidentes com um momento só, que valia por toda a cegueira e as cascas de ferida. De cabelos despenteados e com um colar sem contas, entregou-se a aquele momento na esperança de virem outros. Prendeu aquele momento em suas mãos. Mastigou-o até os próximos. Um encontro, um momento. Mais encontros, mais momentos. Sentia como se segurasse uma constelação em suas mãos pequeninas. Em um novo encontro, em um novo momento percebeu que apertou-o com muita força, o bastante para prendê-lo antes de escapar, o bastante para que esse aperto parecesse um erro. Apertava-o de coração solto. Quis libertá-lo, mas não sabia como, já que estava tão grudado em suas palmas que, deixaria-o sem rumo, ficaria sem jeito. Culparia o cansaço de suas pernas finas, a vida, a falta de apetite. Cansou-de mastigá-lo. A vida de antigos acidentes e novos momentos era bem digesta, sem tempero. Cansou-se dela. Queria as contas no chão e novos tropeços.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Pimenta.

O gosto de pimenta fazia seus olhos lacrimejarem e seus lábios tomarem para si um vermelho gritante. Gostava de sentir-se queimar enquanto gotas de suor escapoliam fazendo caminho entre seus seios. Era um pouco do calor que faltava-lhe. O calor barato que viria dos abraços fortes que não receberia. Fazia sol, fazendo a cidade irritar-se. Eram inúmeras as reclamações saindo da boca do povo, queriam um guarda-sol para protegerem-se. Pudera ela guardar o sol todinho dentro de si. Queria deitar-se no asfalto, sentir sua pele queimar até reviver sua carne. Carne viva era vida menos morta. A pimenta tinha a mesma cor de seus lábios e a mesma cor de sangue. Era cor do calor, e da vida que estava procurando.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Tempo.

A bateria de seu relogio de pulso acabou, mas continuou a usá-lo. Acreditando que, no momento em que ele parou de funcionar, o tempo parou junto. Precisava de algo no qual acreditar então, com toda a inocência que restou de sua infância, acreditou no fim do tempo. Enquanto os relógios alheios corriam junto a suas pernas, ela sentava-se no meio-fia e assistia o tempo dos outros passar. Via-os conquistarem novas rugas, enquanto ela havia conquistado um pouco de paz. Por não ter mais o tempo, tinha todo o tempo do mundo, e usava-o para minimizar os minutos, e como consequência, os estragos. A vida iria passar, mas ela não passaria por ela. Tinha o tempo e a vida em suas mãos. Tinha o mundo. Os que viviam sem tempo, não viviam, corriam, tropeçavam, enrolavam-se e caíam. Ela vivia sem tempo porque o tempo não existia, então tinha calma, alma, e sua vida nunca acabaria, pois sem tempo, seu tempo não poderia esgotar.

Maria.

Miúda, cabelos grisalhos. Sorriso estampado no rosto, lágrimas escondida nos olhos. Sua pequineza guarda peso maior do que poderia-se, um dia, imaginar. Veio do Mar, com seus arranhões, veio do Maranhão. Casou-se pouco depois de trocar as fraldas por um vestido feito à mão. Apaixonou-se por seu rádio, pelas vozes que saíam, felizes, dele. Eram vozes de esperança, eram as canções que ela queria cantar em cima de um palco, mas cantava debruçada sobre o tanque. Ainda vivendo o encantamento por bonecas, desencantou-se com a que vinha sendo fabricada em sua barriga, mas que escapoliu por suas pernas abertas antes da data de expedição. Morreu um pouco ali, mas manteve-se de pé, a cantar as canções de esperança. Na espera das vozes saírem do velho rádio, saiu dela uma voz aguda, chorosa. Que precisava de leite, que precisava de tempo, que precisava de calma. Pouco leite, muito tempo, muita calma. Agora cantava a esperança como canções de ninar. E as vozes continuavam a não sair do rádio. Mas outras três vozes agudas, chorosas, saíram dela. Pouco tempo para o leite, muita calma para o tempo. Das quatro vozes, uma chorava mais baixo. Tinha saído pelas pernas no momento errado. Era a mais carente de leite, de tempo, de calma. Voz que vinha de pouco corpo, mas muita alma. Ela continuava a debruçar-se sobre o tanque, o fogão, o berço, cantando as vozes de esperança. O tempo foi tornando-se pouco, a calma foi tornando-se necessária, o leite foi ficando para o café. A esperança, inibida, permaneceu a mesma. As vozes não saíam mais do rádio. E ela esquecia-se da voz, e a voz esquecia-se que sabia cantar. As canções tornaram-se esquecidas, não por ela, pelo tempo. A pouca memória tornou-as vagas melodias que, quando debruçada sobre o tanque, dava-lhe a vontade de cantar. Tinha esquecido as letras. Tinha esquecido o leite. Não esquecia-se do tempo, e a calma havia tornado-se medo da pressa que esse tempo tem de passar - e acabar.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

1996.

Ele amava a delicadeza com a qual ela depilava as pernas, a delicadeza com a qual roçava suas pernas na dele. Ele amava dormir abraçado em seu corpo pequeno e quente. O ápice de seus dias, acontecia pela manhã, quando ela dava seu primeiro sorriso. Nada, para ele, era mais belo do que seus olhos estrábicos depois de algumas doses de tequila. Via graça em sua mania de mordiscar o canto esquerdo do lábio enquanto dedilhava o violão. Ela tinha sido seu presente na madrugada do Natal de 1996. Não tinha sido entregue pela lareira, tinha caído diretamente do céu. Na queda, machucou-se um pouco, feriu suas asas. Sua cicatriz debaixo do queixo doía nele mais do qualquer outra coisa. Era a partilha da dor que tornáva-os tão próximos. Ele via beleza em todos os seus defeitos, especialmente naqueles que, de alguma forma, machuvam-no. Ela não poupava palavras na hora de fazê-lo menor. Nada em seu amor era-lhe suficiente. Ela repudiava a forma como ele assistia-a escolher um vestido, adorando cada pedaço de seu corpo. Dava-lhe ânsia saber que não bastava a realidade, que ele ainda fazia questão de tê-la em seus sonhos. Não que não amasse-o, pois amava. Amava-o com a obrigação de não deixá-lo só como estava na madrugada em que conheceu-o. Perdido, apoiando-se nas paredes. Acima de tudo, ele amava a forma como ela desgostava de seu amor. E por isso, amava-a mais.

Lua.

Juntos, conheceram a felicidade em sua forma mais simples. A felicidade dos olhos nos olhos e das bocas fechando palavras. Sentavam-se à mesa do café da manhã e passavam a margarina para o outro sem precisar que pedisse. Acordavam e iam dormir sempre do mesmo lado, sempre com o mesmo aconchego, mesmo abraço. Ele sabia de sua mania de colocar, sempre, primeiro o açúcar e depois o café. Ela sabia de sua mania de cobrir seus olhos em um filme de terror. Deitados na cama, com as pernas embaralhadas, sentiam-se protegidos de tudo, inclusive deles próprios. Viviam inteiros pela metade. Ela nunca explicou porque sempre pedia seu chá gelado em temperatura ambiente. Ele nunca contou-lhe que colecionava cartões telefônicos. Quando faziam amor, faziam-no de forma lúdica e morna. Programavam-no. E repetiam os mesmos passos, tantas vezes ensaiados. Ela sempre tinha sido razão. Ele sempre ia além da perfeição da forma e a combinação de cores. Em um amanhecer, confundiram a margarina com a geléia. À partir daí, perderam as razões, mas nunca o sentimento...

Ela X Cidade

Ela poderia passar toda a sua vida caminhando pela cidade. Via-a como um organismo em constante mutação, estava sempre a crescer, respirar, engasgar, adoecer. A cidade era sua pior parte e sua melhor amiga. A cidade que deixou-a assim, imponente. O humor de uma, dependia do céu da outra. Quando o céu da menina ameaçava uma chuva forte, a cidade aquietava-se. Intimidade era silêncio, e no vazio de graves e agudos, a menina e a cidade sintonizavam-se. Choravam juntas as lágrimas que produziam sozinhas. E iam vivendo assim, nos dias em que a cidade era caos, a menina embriagava-se até cair, de joelhos, pelas suas calçadas, como se implorasse por um sorriso. Nos dias em que a cidade era festa, a menina saltitava atravessando seus sinais verdes. A menina e a cidade andavam de mãos dadas. Vez em quando degostavam-se, mas nunca desentrelaçavam seus dedos. Apesar das oscilações de humor, das buzinas estressadas, da fumaça mal-cheirosa, da baixa umidade, eram tudo o que tinham. A menina amava a cidade por sê-la em diminutivo. A cidade amava a menina por ser um ser irracional.

Cadeira.

Enlouqueceu, diriam se vissem-na nesse estado. Sentada em uma cadeira de praia, no gramado em frente ao Congresso, olhando para cima. Perguntariam-se para o quê ela estaria olhando. Cheios de ironia perguntariam, "O que foi? Nunca viu o céu não?". Cheia de certeza ela responderia que céu assim, nunca tinha visto não. Extremamente claro em sua escuridão. Limpo, cobrindo a sujeira alheia. Sentada ali, na Praça dos Três Poderes, desprovida de qualquer poder, sentia-se diminuir. Era a imensidão do céu, a multidão de carros, a pequineza de seu corpo pálido. Enlouqueci, diria se visse-se nesse estado. Não disse. Não viu. E ainda que visse, talvez poupasse tal palavra. Guardaria-a junto a loucura, que era a única coisa sua, só sua e de mais ninguém.

Sonhado.

Ele, quando sozinho em casa, vivia a picotar folhas de jornal para entreter-se. Fechava os olhos, segurava algumas folhas em sua mão, e saia a rasgá-las com a outra. Jogava os pequeninos pedaços no chão, e punha-se a procurar pedaços iguais de folhas diferentes. Com sorte, reconhecia os pares que separaram-se no espaço de suas mãos até o chão. Aquele ritual dava-lhe uma felicidade tão pobre, ainda que enriquecesse sua esperança. Aquelas folhas, quando ainda inteiras, eram somente notícias velhas. Porém, quando picotadas, eram o protótipo do trabalho de quem fez cada uma das pessoas. Acreditava terem sido feitas com descuido e olhos trancados para que não houvesse prioridade ou preferência. Um pedaço da parte de esportes poderia muito bem combinar-se com a programação cultural. Para ele, essas combinações eram tais como os pares românticos, as almas gêmeas. Com dizeres e figuras diferentes, mas iguais na forma. Na forma de sentir, não de ser. Ele tinha toda a paciência do mundo para colocá-los juntos, desconhecendo quem é que teria a paciência para colocá-lo junto ao pedaço dele. Diferente da folha, ele e seu pedaço perderam-se no espaço de ser e estar, no espaço da vida. Ele, quando sozinho em casa, vivia a picotar-se, remoer-se, criticar-se. No espaço da vida, perdeu seu pedaço. E no espaço daquelas quatro paredes, chegava a cogitar se seu pedaço havia ficado para uma outra vida...

Insatisfação Crônica.

Aos 6 anos, parada em frente à loja de brinquedos, foi obrigada a fazer sua primeira decisão. A boneca ruiva ou a boneca loira? As duas, por quê não? Levou-as para casa, embrulhadas, enfeitadas com uma fita vermelha. Sentou-se no chão de seu quarto e tirou-as da caixa, tentando decidir com qual brincaria primeiro. Analisou-as milímetro por milímetro em busca de algum defeito. Desinteressou-se. Acabou por não escolher e passou-as para frente. Mais velha, sentada à mesa de um restaurante, passava horas relendo o cardápio, para decidir que não pediria nada. Acostumou-se a ter tudo e a querer tanto, que tinha pouco e não queria nada - que pudesse conseguir com facilidade.

domingo, 15 de novembro de 2009

A Mulher da Mala.

Era sempre vista vagando pelos Eixos, caminhando lentamente pelas consoantes da cidade. Seus cabelos, brancos e longos, chamavam a atenção de quem por ela passava. Viam-na somente como mais uma das personagens do cotidiano. Carregava uma mala e alguns livros. Sentava-se na grama, folheava algumas páginas. Perdia-se em sua literatura sem nunca ser perdida de vista. Estava sempre por aí, a capturar alguns olhares curiosos. Sua saia longa balançava com o vento, contrastava com os ipês. Poucos sabiam o quão aguda era a voz por detrás daquela cabeça cabisbaixa, daquele rosto enrugado, daqueles olhos perdidos. Caçoavam de sua excentricidade olhando-a dos pés à cabeça. Quando pedia por alguma coisa, pedia por histórias novas. Para esquecer-se da sua? Quem sabe...disseram-me que havia enlouquecido e sido abandonada, pelas centos, trezentos, quatro mil e quinhentos, da cidade. Sua loucura era rica em conhecimento e sobriedade. Um dia, sentada na varanda de um bar, vi-a conversar com um grupo de homens, tão sérios e engomados, erguiam seus copos de cerveja enquanto riam escandalosamente de suas falas. Chamei-a, pedi para que chegasse mais perto. Quis olhá-la com cuidado, fotografando cada milímetro de sua existência. Vi, em seus olhos, um punhado de sonhos desfragmentados. Reparei na ausência de sua mala, reposta por duas sacolas de plástico. Tentei fazê-la entender que só queria escutar sua voz, e tudo que essa tinha para dizer-me. Desconcertada, pouco disse. Perguntei-lhe o que queria, achando que falaria-me daqueles sonhos por detrás de sua íris amargurada. Disse-me querer um café. Apenas um café. Dois mínimos reais. Dei-lhe uma nota de vinte, ficou meio sem entender. "Quer que eu traga-lhe o troco?". Não, não, quis apenas que trouxesse-me um pouco da vida.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Véia.

Cheiro de olhos molhados, gosto de chuva. Tinha medo de encontrar-se sozinha no futuro, sentada em um sofá velho, ao lado de seus incontáveis gatos. Também tinha medo de não encontrar-se e ter de imaginar-se repousada por debaixo da terra. O futuro era o grito que quisera calar depois de já ter escapado boca afora. Com um cigarro aceso, tentava apagá-lo da memória. O futuro era passado a ser resgatado mais à frente. Quem um dia tinha sido talvez ressuscitasse depois de uns anos. Forte como uma brisa do mar, esforçava-se a pensar positivo. Se as vidas passadas perdoassem-na, talvez encontrasse-se sentada à uma mesa de jantar, cercada de bons amigos. Amigos que conquistaria assim que sua existência fosse notada. Com a cabeça pesada e o corpo inerte, via-se como estava vendo-se no agora, planejando futuros, onipresente desplanejada.

Impulso.

Precisava nunca lembrar-se dela, para nunca esquecer-se de si. Precisa, mais do que qualquer outra coisa, esquecer que seus sentidos tinham memória, e acima disso, tirar a memória deles. Era sua visão, e a forma como estava estagnada na lembrança dos olhos cor de mel. Era seu tato, e como fingia que qualquer brisa era sua silhueta insinuante. Era seu paladar, e o modo como tendia desgustar da amargura. Seu olfato, caçando no vento o cheiro cítrico da nuca. Sua audição, repetindo a voz rouca. Precisava lembrar-se dela para colocar-se de pé ao amanhecer. Precisava esquecer-se de sua ausência para não voltar ao chão. Precisava de um chão, para não bater de cabeça no teto...

Maresia.

O dia em que ela passou pela porta de entrada, foi o dia em que sua vida passou feito filme pela cabeça. Ele viu o céu dançar com o mar, e o mar fazer chover, e o céu cobrir a areia. Ela passou feito furacão e ele deixou-se levar pelo vento frio. Ficou fazendo elipses em torno dela. O dia em que ela passou pela porta de saída, foi o dia em que sua vida passou feito filme pela cabeça. Ele viu o céu lutar com o mar, o céu fazendo chover o que o mar não pôde chorar.

Mensagem.

Eu quero mudar-me para as montanhas, começar uma plantação de trigo, achar que fertilizante é novidade, fingir que perdi meu marido. Quero ter marcas fortes de sol, calos nas mãos, quero importar-me mais com os outros, envelhecer, perder a visão. Quero ter poucos amigos e sentar-me numa cadeira de balanço para assistir as nuvens dançarem. Quero entender o mundo e quero, no fundo, fazer um transplante de coração. E eu quero ser sol e ver o poeta desaparecer na linha do horizonte. Estou cansada, sou cansada e estou casada com a contradição.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Barraca de Flores.

A agonia é consequência de uma existência amarga. Sendo aquele que sente, nem sempre aquele que dá gosto. Quem nunca quis não sentir? Logo depois de implorar por um toque...sentir à flor da pele, é sentir os espinhos de uma rosa. Paga-se por pétalas. Paga-se por elas com amor. Pega-se as pétalas e joga-as no lixo. As pétalas, como gente, apodrecem com as horas. Na barraca de flores da esquina, não vende-se espinho separado. Ou leva-se as pétalas ou leva-se a rosa inteira. Pego as pétalas e jogo-as no lixo. As pétalas, como as horas, apodrecem a gente. Sentir à flor da pele, é passar pela barraca de flores, e sutilmente, furtar alguns espinhos.

Fim da Linha.

Querer dormir é não querer acordar.
E ele dorme,
de forma singela,
sem ela.
Querer acordar é dormir com pesadelos.
E ela acorda,
de forma singela,
com ele.

Cansa.

Era a tristeza que tornava-a tão sorridente. Era a intimidade que tornava-os tão silenciosos. Era a partilha dos males que tornava-os tão próximos. Era ela sabendo da existência dele. E ele tentando dar, em seus sonhos, uma feição a ela. Era a vontade de acreditar, e a dificuldade de acreditar com vontade. Foram as idas solitárias ao cinema, a pipoca ficando sempre na metade, os dois canudos para uma boca só. Foram os sussurros em forma de música, os sussurros em forma de gente. Foram eles olhando para a gente, e a gente olhando um para o outro. Era a nossa tristeza que tornava-nos tão sorridentes. Era a falta de intimidade que tornava-nos tão falantes. Era a partilha dos bens que tornava-nos tão distantes. Era eu sabendo da sua presença. E você tentando dar, em seus pesadelos, um fim a mim. Era a vontade de desacreditar, e a facilidade de acreditar sem vontade. Foram as idas acompanhadas ao cinema, a pipoca acabando, um canudo só para duas bocas. Foram os sussurros em forma de grito, os gritos em forma da gente. Foi a gente olhando para eles, e eles querendo olhar um para o outro. Foi a tristeza que tornou-me tão sorridente. Foi a intimidade que tornou-me tão silenciosa. Foi a partilha de coisa alguma que tornou-me imóvel. Fui eu sabendo da inexistência de alguém. E alguém, em meus sonhos, tentando dar existência a mim.

Pesadelo Favorito.

O que passava-se na cabeça dos dois era um dos mistérios da vida. Quando em um mesmo espaço público ignoravam a presença um do outro, riam escandalosamente e erguiam suas taças de vinho seco frutado. Ela punha seu tronco para frente, insinuando-se para outros rapazes. Ele encostava-se na parede, cruzava os braços e deixava sua voz soar o mais grave e suave possível. Fingiam não saber, mas todos sabiam de seu passado. Tinham sido amigos, depois amantes, depois inimigos, depois amantes, e então, tornaram-se conhecidos. Disfarçavam dando um a outro um pseudônimo. João era Pedro, depois Henrique, Fernando, André. Fernanda era Gabriela, depois Maria, Júlia, Larissa. E seus fins de semana sempre tinham sido festa, viagem para Paris, curso intensivo de pilates. Quando em quatro paredes, exploravam todo o espaço, desafiavam as leis da gravidade. Elevavam-se à altura do céu, flutuavam. Depois trocavam olhares. Sentavam-se longe. Partilhavam o silêncio. E então era feita a promessa de ser a última vez. E trocavam os olhares por ofensas. E terminavam ali o que não sabiam como havia começado. E despediam-se com frieza, querendo apreender o calor de seus corpos. E exibiam-se em público. Negando sua vontade. E esbarravam-se na entrada do banheiro. E esbarravam seus olhares. E sem querer, esbarravam suas bocas. Esbarravam suas vontades. Esbarravam seus caminhos. E iam parar no meio das mesmas quatro paredes. Negavam a existência do mundo fora delas. E faziam um mundo para eles. Impunham suas próprias regras, quabravam-nas logo depois. E punham seus corações à mostra, quebravam-nos logo depois. E começavam. E terminavam. E toda vez em que começavam, amavam-se. E toda vez que terminavam, voltavam. E quando voltavam, amavam.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Oito.

Despencou aqui, vindo lá da última curva depois do fim do mundo. Trouxe nas mãos alguns anéis, nos bolsos alguns buracos e na bolsa...bem, bolsa ela não trouxe não. Da primeira em vez que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la pronunciar "fiado", não porque fazia um biquinho como quem falasse francês pela primeira vez, mas porque no mundo de cá ninguém falava fiado mais não. Era o mesmo de dizer que sairia sem pagar a conta, ou pegaria um pacote de biscoitos e guardaria na calcinha. Aqui todo mundo pagava pelos seus pecados, problema não era dos outros se não tinha mais dez centavos para completar a fatia de bolo. Da segunda vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la desamassar os dois reais que havia ganhado, como se a notinha lisa disfarçaria seu cheiro de cachaça. Da terceira vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la de mãos dadas com o bisavô de algum moleque bem perdido. Ela segurava a mão dele como se segurasse a mão de Deus, só que esse Deus era provavelmente mais rechonchudo, e diferente do Deus lá de cima, usava umas correntes de ouro com uns dizeres em inglês que nem ele mesmo deveria entender. Da quarta vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la pedindo vodka importada, dessa vez porque ela fez um biquinho como se "importado" fosse palavra em francês. Da quinta vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la saindo de um carro roubado, como se ninguém soubesse que o Deus dela estava em condicional. Da sexta vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la toda vestida de preto, fingindo lamentar-se por Deus ter morrido acidentado, mas na verdade por ter sido perda total do carro. Da sétima vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la pedindo trocado. Da oitava vez em que a vi, lembro-me de gargalhar ao vê-la na memória falando "fiado", se tivesse pagado, incondicional que teria conhecido, seria amor, não um Deus abandonado.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Os Senti(n)dos Muito.

Quantos.
Tantos.
Tatos.
Os fatos.
Olfatos.
Ouviram.
Ouvimos?
Vimos.
Enxergamos.
Negamos.
Agora,
anestesiados,
congestionados,
vendados,
admitimos.
Quantos
tantos
(de nós)
fomos,
tarde demais.

Fui?

Ela foi protagonista da sua vida. Tapete vermelho e tudo mais. Ela foi as quatro estações do ano, que só ele pôde notar. Ela foi abraço e descaso. Foi um caso de polícia. Ele foi louco. Ela foi sã. Ele foi poeta. Ela foi cega. Ele foi músico. Ela foi surda. Ela foi embora. Ele ficou. E eu, quem fui?

domingo, 8 de novembro de 2009

Sistema Digestório.

Na boca, um gosto amargo. Gosto de boca com boca. Gosto de acidente inevitável. Somado ao café frio. Ao cigarro encontrado numa caixa com coisas do passado. Nas costas, uma tatuagem. Com suas cores desbotadas. Com sua forma deformada. De peito apertado, de cabeça vazia. Com mais cara que coragem. Tão minuciosamente despedaçado. Cheio das marcas, dos mais variados remetentes. De nome grande, de corpo pequeno. Maxilar forte, descontando seus poucos músculos. Conhecedor de línguas e culturas. Degustando o gosto amargo da vida, e das vidas que tinha provado. Acendendo um cigarro, para apagar umas lembranças. Queimando as cinzas, para queimar as cartas. Farto do passado. Esfomeado de futuro. Deglutindo quem foi, para depois, excretar quem pretende ser. Na boca, um gosto amargo, da mastigação de si que havia faltado.

Sentidos.

Das tantas vezes que terminaram. Das tantas outras que voltaram. Encontravam-se sempre debaixo do mesmo céu de suas bocas. E abraçavam-se. E aninhavam-se. E embolavam-se. E amavam-se. E odiavam-se. E despediam-se. E reecontravam-se. E seguravam as mãos. E seguravam os pés. E seguravam o choro. E um seguia para um lado. E um seguia para o outro. E um olhava para trás. E um olhava pouco depois. E davam a volta na rua. E davam voltas em seus mundos. E a calçada terminava no mesmo lugar. E entreolhavam-se. E entre olhares viam-se. E entre vias amavam-se. E o trânsito parava. E a chuva caía. E a música tocava. E tocavam os sinos. E tocavam os corpos. E tocavam as almas. Das tantas vezes que voltaram. Das tantas outras que terminaram. Encontravam-se sempre debaixo do mesmo céu de Brasília. E estranhavam-se. E reconheciam-se. E conheciam-se. E apresentavam-se. E despediam-se. E um seguia para um lado. E um seguia para o outro. E um olhava para trás. E um já estava olhando. E então voltavam. E encostavam-se. E decoravam-se. E de cor sabiam,
a cor
o gosto
o cheiro,
e de tato, o tanto que é triste estar só.

Mundo.

Começa quando um olho vê um corpo.
Quando um corpo vê o outro.
O mundo fica pequeno.
Fácil de conhecer.
Mundo do eu e você.
Começa quando um olho encosta no outro.
Ambos fechados.
Quando um corpo encosta no outro.
Ambos se abrem.
O mundo fica grande.
Mundo do eu, você e o resto.
Começa quando um olho enxerga o outro.
Ambos abertos.
Começa quando um olho enxerga um corpo.
Ambos se fecham.
O mundo fica pequeno.
Mundo em que não cabe
mais eu e você.
Termina quando o corpo fica maior que o olho.
E um olho fica menor que o outro.
O mundo fica minúsculo.
Mundo em que nunca coube
nem eu, nem muito menos você.

Foda.

Você sempre roubou-me sorrisos, mas eu nunca consegui fazer-te feliz, nem por um instante, nem por um segundo. Quando eu via-te apontar na esquina meu corpo dava festa, quando você via-me fazendo festa para você, vestia-se para seu próprio enterro. Segurava sua mão por jurar não precisar de mais nada, e embriagado, você confessava-me estar segurando a minha só para que não caísse. Se fosses cair, deixava que levasse-me junto. Fui afogando-me com você. Em você. Você era tão triste. Auto-destrutivo. Levava-me sempre para passear, eu, você e seus demônios internos. Vivia em guerra consigo mesmo. Achava que era artista, achava que isso dava-te o direito de agir assim. Tão distante, tão impenetrável, um dos intocáveis. Queria minha infelicidade para fazer dela literatura. Queria meu corpo eriçado para fazer dele esculturas. Precisava de mim para exibir-se para o mundo. Seu talento em forma de mulher. Sua mulher retratada, ao lado dos grandes, exposta, admirada, criticada. Sua mulher realizada, ao lado da merda, omitida, desprezada, criticada. Sempre quis falar-te a merda que és. Mas o fôlego que impediu-me de ter, impediu-me até então. Fez-me fumar, fez-me beber, fez-me injetar doses lascisvas de você. Quis tanto que amasse-me, quis desde a primeira vez em que o vi, sem poder identificá-lo. Desde quando era, para mim, apenas um ser corpulento chamando atenção na madrugada escura. Quis que amasse-me na cama, enquanto estuprava-me a alma. Molestou-me o caráter. Gozou nos meus escrúpulos. Engravidou-me de ódio. Quando aprontei-me para parí-lo em sua cara, deu-me as costas, pois outra estava dando para você. Foda-a. Coma-a. Sugue-a. Como fez comigo. Lembra-se das três palavras? As que gritei enquanto você puxava-me gemidos: Vá se foder.

Dias de Chuva.

Talvez se fossem fluentes em francês, aquele momento tornasse-se mais poético do que triste. O céu derramava gotas frias de chuva. Os olhos dela derramavam gotas quentes de choro. Ele não sabia colocar em palavras, não sabia explicar porque seus dedos não entrelaçavam mais com os dela. Não sabia como dizer-lhe que já não preenchia mais seus sonhos, que suas noites haviam tornado-se perturbadoras e agitadas, que antes acordava cheio de amor, e agora acordava suado e exausto. Ela dispôs-se a escutar seu silêncio, uma explicação covarde. Não mais escutava, ao fundo, as notas de uma valsa, agora só escutava os trovões. O para sempre estava sendo prorrogado para mais tarde. Consolou-se lembrando dos vários sorrisos que já havia dado a ele. Agora dava fúria no formato de raios.
- Amamos menos na chuva.

- Eu faço o céu abrir.

- Deixa chover.

- Já não está chovendo aqui.

- Está chovendo em mim.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Paternidade.

Quando pequena, sentada no colo de seu pai, sentia-se protegida de todos os males, como se nenhum monstro ou bicho-papão pudesse alcançá-la. Crescida, sentada ao lado de seu pai, sentia-se suscetível a todos os males, como se um raio só caísse com a certeza de cair duas vezes em um mesmo lugar. Seu pai tinha ganhado alguns traços de velhice prematura, perdido um pouco do ar protetor. Agora, parecia sabido e experiente, mas incapaz de carregá-la para sua cama quando ela acordava atordoada com um pesadelo. Os pesadelos, com os anos, tornaram-se mais frequentes, especialmente quando acordada. Antes, sentada no colo de seu pai, encostando sua cabeça na dele, imaginava a vida como um belo sonho, calculado e perfeito. Depois de conhecê-la mais de perto, via o quão devastadora poderia ser. Sentada ao lado dele, reparando em suas marcas de expressão, via marcas da vida. Não eram tão fortes os rastros de sorrisos, não tanto quanto os de preocupação. Tivera tanto medo de seus monstros infantis, que esquecera dos monstros alheios. Todas as vezes em que acordara aos prantos no meio da madrugada, estavam marcadas no rosto de seu pai. Que agora, ali sentado, procurava descanso. Sugerindo que ela deveria procurar outro lugar para proteger-se.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Café e Cigarros / Explicação.

Em um dia nublado, dividiríamos o mesmo pedaço de teto para protegermo-nos da chuva. Trocaríamos um ou dois olhares, depois três ou quatro palvras. E então pediria por meu número. Eu agiria como se achasse estranho, fingiria hesitar um pouco, mas depois entregaria o cartão - que um dia virei a ter. Ele diria que ia ligar-me em breve. Eu fingiria que não ia ficar contando os segundos para isso. Despediria-me dizendo que a chuva tinha diminuído - até mesmo se tivesse aumentado -, e sairia, elegante, para cumprir meu trajeto. Grudaria-me ao telefone, fingindo estar esperando uma ligação do trabalho. E toda vez que ele tocasse, meu coração encontraria minha boca. Quando eu não reconhecesse o número, deixaria que tocasse três vezes, enquanto eu ensaiava minha voz mais esnobe e sensual. Eu atenderia e fingiria não saber de quem tratava-se. Pediria que aguardasse um minuto, pois estaria, imaginariamente, ocupada com alguma coisa. Depois retornaria ao telefone, falando com pressa, parecendo desinteressada. Ele iria propor que saíssemos para jantar, eu diria que para mim era melhor um café no fim da tarde. Eu desligaria no meio de sua última frase e partiria para o shopping, tendo acabado de notar que precisava de roupas novas. Estouraria meu cartão de crédito com apenas um vestido e um par de sapatos. Iria ao salão, tendo acabado de notar que meu esmalte estava desbotando. Faria as mãos, os pés, um novo penteado. Sairia de casa mais cedo. Ficaria sentada no carro até ver no relógio meus vinte minutos de atraso. Ele estaria esperando ansiosamente na porta do café. Extremamente tímido e arrumado. Cumprimentaria-o com um beijo rápido na bochecha, fingindo estar em uma ligação importante. Sentaría-mos na varanda, e faríamos, sem olhar no cardápio, o mesmo pedido. Tomaríamos um capuccino com leite desnatado e raspas de chocolate meio-amargo. Descobriríamos que fumávamos o mesmo cigarro, e quando os dele acabassem, eu cederia alguns dos meus. Demostraríamos interesse pelos mesmos livros e filmes. Reconheceríamos a música que tocaria ao fundo, comentaríamos ser uma daquelas impossíveis de viver sem. Nossos goles coincidiriam. Avisaria-o que estava com um pouco de leite no canto esquerdo da boca, ele não entenderia e eu teria que tomar o gigante passo de limpá-lo com a própria mão. Ele agradeceria meio sem graça. Eu comentaria de suas bochechas rosadas e logo meu celular tocaria. Eu atenderia a ligação, riria na altura certa, com toda graça e cuidado para não parecer escandalosa. Ele ficaria a encarar-me, eu fingiria não perceber. Desligaria a ligação e guardaria o celular na bolsa. Retornaria meus olhos aos dele que, com receio, diria-me que minha risada era a coisa mais bela já vista. Eu discordaria por educação e mudaria de assunto. Ele retomaria o assunto depois, quando eu risse de seu desconcerto. As horas passariam na velocidade da luz, a noite logo surgiria e despediríamos contra vontade. Eu iria para um lado, mesmo que meu carro estivesse para o outro. Ele assistiria-me indo embora. Eu não olharia para trás. Reencontraríamos todos os dias depois daquele no mesmo café. Encontraríamos novos assuntos, beberíamos o mesmo capuccino, dividiríamos os cigarros. Um dia ele decidiria parar. Eu decidiria parar junto. No dia seguinte desistiríamos e compraríamos um maço para os dois. Ele levaria-me para sua casa. Desta vez, dividiríamos o mesmo teto e o mesmo cobertor para protegermo-nos da chuva e de nós mesmos. De começo amaríamos com curiosidade e cuidado. Depois tornaría-mos ousados e agressivos. Ele convidaria-me para morar junto. Eu fingiria não saber a resposta para não parecer fácil e carente. Ele fingiria não ter todo o tempo do mundo para esperar-me, mas esperaria duas ou três semanas. Quando, com uma caneca daquele capuccino na mão, eu aparecesse em sua porta, avisando que ficaria ali até que nosso para sempre se esgostasse. Passaria um ano, o café ficaria para os fins de tarde de Domingo. Passariam dois anos, e na correria do cotidiano esqueceríamos como amávamo-nos. Discutiríamos, ameaçaríamos, até que a cafeteira exalasse o aroma de nosso romance. Eu então engalfinharia-me na pelugem de seu peito, ele enrolaria-me em seus braços. Cairíamos na cama, planejaríamos um futuro, desconversaríamos sobre filhos e casamento. Lembraríamos do café pronto, usaríamos a mesma caneca. Eu estaria vestida com sua camisa, ele estaria a observar-me com desejo. E então teríamos a sensação de estarmos sufocados, não pela monotonia de nossa vida, mas pela grandeza tão simplória de nosso amor.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Durma.

Sonhados.
Dormidos.
Sonhadores.
Domados.
Esperam sentados frente à porta.
Na linha de frente.
Peito aberto,
olhos fechados.
São fortes com suas sobrancelhas arqueadas.
Fracos quando intimidados.
Íntimos.
Dados.
Rolam
e desenrolam.
Sentados frente à linha.
Na porta da frente.
Alvos de um canhão,
de uma metralhadora.
Metáfora.
Meio de fora.
Metade.
Mete a dor.
Estão todos ali.
Destilado de lá.

domingo, 1 de novembro de 2009

Quinze Mil.

Nasceu meio sem querer, sem que quisessem. Criou-se meio sem ter como, sem ter quando. Sua vida fora, desde o começo, um arquivo aberto de obituários e acidentes. Vivia sempre acompanhada, e em especial, da solidão. Quando pequena, demorou a fazer de seus grunhidos alguma palavra. Quando um pouco mais crescida, as palavras que tinha feito, guardara para si. Via em cada dia que nascia, a oportunidade de morrer um pouco ao dormir. Gastou alguns de seus anos perguntando-se porque logo ela vivia em condições tão grotescas. Gastou outros imaginando se existia alguma outra pessoa no mundo vivendo da mesma forma. Não queria aceitar, estava só. Calada escondia-se na dispensa e chorava até adormecer. Com os anos, alguns foram embora, ainda alcançáveis no tempo. Com outros mais, os que foram, foram de vez. Sob olhares alheios disfarçava sua indignação com timidez. Não chegavam perto. Queria - sem querer - que chegassem. Já mais crescida, desaprendeu a chorar, não cabia mais na dispensa. Tinha ganhado corpo para aprender a defender-se. Usou-o mais para atacar. Batia portas, gritava. Não era violência, era falta de amor. Amor tinha sim, em segundo plano. Para que fosse amada, era preciso que fosse lembrada. Não era, a menos que fosse para ser exibida. Que cabelo sedoso, tão liso, tão claro. Que olhos meigos, tão míudos, tão expressivos. Um dia a vida mostrou uma possibilidade de mudança. Mudou, mudou, mudou. Para pior, como se fosse possível. Foi viver em outro lugar. Sem companhias, exceto a de sempre. Não havia dispensa, só a volta do choro. Não escondia mais. Chorava com raiva, como se cada lágrima fosse um tiro no coração. Acabou por descobrir, que chorar não adiantava, nem nunca adiantou. Inevitável, era chorar por dentro toda noite, por todas as madrugadas, enquanto fraca e cansada, desviava-se de uma garrafa, um prato, uma faca. Do lado de fora, parecia tão forte e inatingível. De fato era. Tinha tornado-se. Em algum momento de completo descaso, passou a achar justo descontar sua raiva na felicidade dos outros. Atraía. Encantava. Aproximava. Desaparecia. Achava divertido, quase engraçado. A dor que sentiam não era a mesma que ela conhecia, mas era alguma coisa. Quando foi enfrentada, desistiu parar. A dor tão dela, tão única, não era desculpa para dor nos outros. Outra vez a vida veio mostrar-lhe uma chance de mudança. Mudou, mudou, mudou. As palavras que tinha feito, resolveu colocar para fora. Colocou-as todas. Exatamente aqui.

Tudo Tem Começo.

Um dia acordaram. Maria com seu sorriso, João com seu pouco fôlego. Maria desfilou pelas avenidas. João passou arrastando-se logo depois. O perfume dela ainda estava no ar. Pequenino rastro. Perdido pelo cheiro de cerveja e tabaco, exalado pela existência dele. João viu-a de longe, criticou seu modo de andar. Pararam os dois no mesmo cruzamento. Sinal vermelho. Sinal de quem? Maria reparou em João encostado na lixeira. "Reciclável". Riu. João levou a risada como ofensa. "Descartável". Riu. Acordaram. João com o sorriso de Maria. Maria sorridente por João. Seca e escassez de água daí para frente.

Quarto Azul.

Faça um favor, feche essa janela, hoje o vento não entra. Faça um favor, encoste essa porta, hoje eu não saio. Está frio, mas meu corpo queima. Os raios de luz atravessam a cortina, mas ainda é escuro aqui. Faça um favor, feche seus olhos, hoje eu não me mostro. Hoje estou aqui. Ontem também. Mostrei. Ninguém viu.