quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Maria.

Miúda, cabelos grisalhos. Sorriso estampado no rosto, lágrimas escondida nos olhos. Sua pequineza guarda peso maior do que poderia-se, um dia, imaginar. Veio do Mar, com seus arranhões, veio do Maranhão. Casou-se pouco depois de trocar as fraldas por um vestido feito à mão. Apaixonou-se por seu rádio, pelas vozes que saíam, felizes, dele. Eram vozes de esperança, eram as canções que ela queria cantar em cima de um palco, mas cantava debruçada sobre o tanque. Ainda vivendo o encantamento por bonecas, desencantou-se com a que vinha sendo fabricada em sua barriga, mas que escapoliu por suas pernas abertas antes da data de expedição. Morreu um pouco ali, mas manteve-se de pé, a cantar as canções de esperança. Na espera das vozes saírem do velho rádio, saiu dela uma voz aguda, chorosa. Que precisava de leite, que precisava de tempo, que precisava de calma. Pouco leite, muito tempo, muita calma. Agora cantava a esperança como canções de ninar. E as vozes continuavam a não sair do rádio. Mas outras três vozes agudas, chorosas, saíram dela. Pouco tempo para o leite, muita calma para o tempo. Das quatro vozes, uma chorava mais baixo. Tinha saído pelas pernas no momento errado. Era a mais carente de leite, de tempo, de calma. Voz que vinha de pouco corpo, mas muita alma. Ela continuava a debruçar-se sobre o tanque, o fogão, o berço, cantando as vozes de esperança. O tempo foi tornando-se pouco, a calma foi tornando-se necessária, o leite foi ficando para o café. A esperança, inibida, permaneceu a mesma. As vozes não saíam mais do rádio. E ela esquecia-se da voz, e a voz esquecia-se que sabia cantar. As canções tornaram-se esquecidas, não por ela, pelo tempo. A pouca memória tornou-as vagas melodias que, quando debruçada sobre o tanque, dava-lhe a vontade de cantar. Tinha esquecido as letras. Tinha esquecido o leite. Não esquecia-se do tempo, e a calma havia tornado-se medo da pressa que esse tempo tem de passar - e acabar.

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