segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O Amor é Ligeiro.

Uma travessia rápida por um corredor pouco iluminado. As imagens trêmulas, causadas pela câmera instável, nas mãos de um indivíduo que corre. Os sons saídos de um piano. Das mãos de alguém que mais acaricia do que aperta as teclas. Alguém que parece ter medo de ferí-las. Para a cena seguinte, imagino nós dois, cabelos molhados em decorrer da chuva. Que logo passará - saber disto é o que, afinal, nos faz permanecer estáticos, apenas olhando um para o outro. Não era imprescindível que usássemos das palavras, mas era preciso que algo ali, pelo menos alguma coisinha que fosse, nos desse algum tipo de suporte. Já que não seríamos capazes de nos abraçar. Nem mesmo para tentar assegurar de que tudo ficaria bem. Você permanecerá firme, para que eu não estremeça. Estremecerei. Precisarei de um cigarro, talvez o maço inteiro, enquanto você não decide se aperta meu ombro ou se entra de uma vez no carro. Não demorará muito, aparecerão uns feixes de luz. Você nunca me deixaria sozinho ali. Mas se questionará se fez o certo quando eu começar a resmungar. Dizendo que é um desperdício, já é quase noite, mas ainda assim, o sol se abre. Como se não tivesse culpa de nada, como se já não fosse tarde. Se ele tivesse aparecido mais cedo...e você me calará, dizendo que já não aguenta mais minha voz. Dirá que, antes, ela era macia, fazia cócegas ao pé da orelha, e que, agora, só serve para noticiar o podre, o absurdo. Você alegará não saber quando foi que me tornei tão triste. Não jogarei minha culpa em você. Haverá um único estabelecimento com varanda aberto. Por sorte, seremos apenas nós dois. O resto das pessoas não suportou o vento frio. Tudo bem, faríamos bom uso de um pouco de privacidade - apesar dos olhares vindos do outro lado do vidro. Ainda assim, não poderíamos levantar o tom da voz. Ia contra as leis de paz que estabelecemos. Somos muito geniosos, temperamentais, donos da verdade, e nunca esqueceremos o episódio em que três dos seus dedos da mão saíram deslocados. Sua mãe quis me processar, junto a sua iniciativa de pedir o divórcio. Ficou tudo só no início da língua mesmo. Você resolverá fumar também, porque, apesar de tudo, meu nervosismo ainda te deixará inquieta. Nenhum de nós se sentirá culpado. É um acordo, silencioso, mas nem por isso deverá ser quebrado. Não sentimos mais nada. É isso. Nem quando nossos corpos se desnudem. Nada além de uns orifícios e umas extremidades. Ficará tudo mais manso quando você melar a boca e, ao limpar, perceber que nós dois ainda temos sim a vontade de rir juntos. De sermos cúmplices de algum crime que existirá, pelo menos, na imaginação. Como atirar o vizinho do 503 pela escada, ou roubar o jornal ao passar pela porta do 301. Vou te amar mesmo se o amor tiver acabado. No fim, certos de que chuva passa e que a gente, há muito tempo, já parou de cair, iremos juntos para casa. Colocaremos um filme para assistir, e dormiremos abraçados. Porque mesmo não sentido mais nada, ainda teremos o sentimento de culpa. Aquela ligeira impressão de pertencermos um ao outro para sempre.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Laços são laços por poderem ser rompidos.

É uma grande viagem para lugar nenhum. Estar aqui dentro e lembrar que a Terra gira. Estamos todos de mãos atadas. Deixando tudo e qualquer coisa acontecer. Você conhece uma pessoa e em seguida prefere que isto nunca tivesse acontecido. Destrói todas as fotos que já tirou com ela. Resolve escutar músicas novas. Todo sentimento definha. Alguns conseguem se reerguer depois. A maioria não. Você acaba com raiva de tudo, mas tenta poupar quem te quer bem. Quem, ainda, quer bem a alguém? Alguém que não a si mesmo. Os polegares, a capacidade de raciocinar, mas o que melhor se desenvolveu foi a capacidade de sermos egoístas. Fica tudo bem, é só esvaziar uma garrafa, o mundo começa a girar e te chama para ir com ele. Aí então parece que há um destino final. Algum lugar mágico, e secreto, cujo nome não deve ser pronunciado em voz alta. Tem dias em que surge uma vontade visceral de ser feliz. A felicidade extrema. De estourar os tímpanos. E estou ficando cansado de reclamar. De me sentar no ônibus e disparar a reclamar. Parece ser somente isso o que, atualmente, nos conecta uns aos outros. Digo, conexões imediatas. Reclamar do calor, do atraso do motorista, dos gastos indevidos no governo. Cansado de me sentar na poltrona de cinema e reclamar de quem fala alto ao lado. Esgotado de estar sempre sentado reclamando de tudo. De estar sen-ta-do! Ao lado de uma parcela enorme da população, reclamando de tudo, só pela falta do que fazer. De umas mudas de roupa para lavar. Dá uma preguiça de viver e parece que não sabemos fazer mais nada. Estou desgostoso do mundo. Desesperançoso também. Sem luz no fim do túnel, sem vontade de cavar até, quem sabe, encontrá-la. Dei tanto amor e acabei sozinho. Com síndrome do pânico, morando com a saudade em uma quitinete. As portas dos armários precisam ser pintadas novamente. A louça está acumulada há cinco dias. Estou lendo uma monografia sobre o estreitamento dos laços afetivos. Como existe amor verdadeiro em tempos de microondas? Em tempos nos quais as coisas começam e terminam sem nem girarem os ponteiros? Tenho medo de esquecer como se dá um abraço, como se eterniza um beijo. Essas coisas que estão se tornando cada vez mais automáticas. Tenho tentado caminhar com calma. Sem me apressar, nem me perder.

Parece grande...e é.

Já iam marcar sete horas no relógio quando, finalmente, resolvi abandonar o ar-condicionado do escritório para pegar o trem. Não era a pior hora mas, também, não era nem de longe uma das melhores. Não era um dia nublado, mas o sol parecia ter acordado um pouco tímido, acanhado. E como estávamos, ainda, em horário de verão, pude sentir um pouco da presença dele pedindo para se ausentar. No caminho entre o edifício e a estação de metrô, há uma cafeteria. Na verdade, consiste em uma porta minúscula, um balcão espremido entre as paredes, e a curiosa mistura de cheiro de água sanitária com os grãos de café recém torrados. Acostumei-me a estar, em todo fim de tarde, debruçado sobre o balcão engordurado. Tomando um expresso duplo, conversando amenidades com os donos do lugar - um casal de velhinhos, fugidos da Segunda Guerra Mundial. Não entendem, até hoje, as conjugações "deste tal português", mas bem gostavam de falar do passado, e falavam, riam, gesticulavam, até perceberem uma movimentação nas glândulas lacrimais. No fundo, acho que ninguém se sente confortável o bastante para desabar em público. Geralmente, quando chega Sexta-feira, enchem um saco de biscoitos amanteigados e insistem para que eu leve comigo para casa. Não sabem que eu precisaria comê-los todos sozinhos. Não imaginam o risco que isso apresenta para a minha barriga, meu colesterol, minhas crises de depressão. Já iam marcar sete horas deste dia em que, infelizmente, senti-me forçado a ficar no escritório por horas além do meu fim de expediente. Juntei todos os papéis e pus na pasta. Não aguentava mais a garganta ressecada pelo ar-condicionado, nem o café de garrafa insosso. O elevador sempre demora mais de vinte minutos para chegar até o décimo quarto andar, então costumo me antecipar e descer logo pelas escadas. Foi o que fiz, mesmo preguiçoso, cheguei ao térreo antes de escutar duas músicas inteiras. Caminhei distraído pela calçada, quase fui atingido por uma moto, mas ainda restava-me um tanto de sorte. Não sabia que precisava disputar por um pedacinho do balcão naquela hora do dia. Não sabia que, em alguma hora do dia, tanta gente se dispunha a espremer-se num lugar daqueles. Fui então saber que serviam a melhor coxinha de frango da região - antes, olhava para eles da forma que fosse, mas nunca imaginaria isto -, e a cerveja, disseram, estava sempre gelada. Meu café não teve muito espaço, e logo não vi solução se não substituí-lo por uma bem gelada. Três ou quatro colegas de trabalho estavam lá, então não fui de todos o mais solitário. Eles eram de outro departamento, mas sabiam meu nome após termos nos apresentado em uma confraternização de fim de ano. Eu confesso, era bem vaga, quase inexistente, a lembrança deles. Mas logo parecíamos amigos de longa data. Uma série de interesses em comum, e coisa e tal. Lembro-me que, na hora, a voz de Caetano procurava espaço para crescer naquele minúsculo espaço tomado por discussões fervorosas e cheiro de suor. Era uma das músicas mais populares, alguma das que findavam os dias de Tropicália. Ela já havia, por várias vezes, estado no mesmo elevador que eu - espero até duas horas para não ter que subir os vinte e oito lances de escada. E sabe quando acontece aquela coisa que ninguém sabe o nome? Aquilo que fica entre um calafrio e um estalo? Que sobe pela coluna? E trava a mandíbula? Não sou tolo, não vou me antecipar. Tornaria-se sim amor, mas depois, mais para frente. Ela andava com o nariz empinado. Tão empinado que seus olhos pareciam estar grudados ao céu. Tinha os lábios perfeitamente desenhados, daqueles que não poderiam ser se não daquele mesmo jeito. Os cabelos soltos no mundo, raramente contidos num coque. Logo fiquei sabendo que ela gostava daquela música, mas preferia as mais recentes. Fiquei sabendo, também, que ela preferia empada à coxinha. Tinha se proibido de comer fritura, só se não controlava em frente de um doce. Era apaixonada pelo Rio de Janeiro, queria ter nascido lá. Achava que assim seria menos dura, teria o nariz mais voltado para baixo. Tinha lido tudo do Nelson Rodrigues, gostava de escrever nas horas vagas, mas era difícil encontrar inspiração. A casa andava tumultuada, a irmã tinha se separado e precisava ficar uns tempos dormindo no sofá. Não se davam bem, mas ela não se perdoaria se não honrasse os valores familiares. Tinha, recentemente, dado sua cadela para a sobrinha de uma amiga. Não tinha tempo para o carinho que precisava dar, disse. Nem imaginava o tanto que esperei saber seu nome. O tanto da sorte que dei ao ter ficado, um dia, mais tempo no trabalho. Encantamento, foi o que a destacou de todas as outras. Tornou-a objeto de interesse. A gente se fala, com alguma frequência. Ela me recomenda um livro, comenta sobre um artigo que leu. Vê em mim coisas que eu nem sabia que tinha. Um apreço pelas coisas bonitas. Ricas de vida. Nem sabe que durmo pensando nela. E que, quando eu falei de amor, é que meio que foi virando essa coisa. Em que eu amo a forma como ela sobe no palco e desregula a vida. Como ela se sente pequena e mesmo assim não recua. Ela nem imagina, mas vou dormir abraçado com a vontade que tenho dela. Ela nunca imaginaria, só me vê caminhar por aí. E só caminhando ninguém alimenta um querer tão grande. Ela acha que, tudo bem, só a conheço, mal sabe o tanto que a desejo.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Amar; Deixar Ir.

Temos nos afastado, sinto, tornado os planos de eternidade mais flexíveis. Temos acrescentado umas interrogações, umas talvez férias. Talvez, talvez só planos. Planos servem para termos o que desfazer e refazer depois. Não é? Algo para ocupar a mente e o tempo...você disse que sim. Não era tão tarde, você entrou pelo apartamento, sentou no sofá, escolheu uma almofada e disse que seria sua. Não tinha pretensão alguma. Nem de tomar algo para si, nem de atravessar o corredor. Quanto mais de acabar sentado na escada em frente a porta, todo dia, com medo de entrar, de querer rapidamente sair. Você, ainda, não sabe, mas já te espiei através daquilo...como é o nome? Olho mágico? Enfim, eu sei que, antes de girar a maçaneta, você pensa uma, duas, três vezes, sobre o quanto isso ainda vale à pena. Você se pergunta pelo que há lá fora. Pelo tempo que perdeu. Sim, você já chama o tempo que passou comigo de tempo-perdido. Mas a verdade é que eu te amo tanto. Eu te amo até mais por saber que seu amor escapa, rotineiramente, de mim. Eu te amo achando que só o meu já bastaria para nós dois. Eu te amo porque não sei mais o que seriam dos meus dias sem este apreço que nutro por ti. Esta dependência. Não sei viver fora dos seus braços. Mesmo quando eles se esticam para alcançar outros - e te perdôo, pois sei que, vezes ou outras, você hesita. Pensa em mim, nos meus cabelos queimados, das vezes que eu te fiz sorrir só por estar sempre rindo da vida. Morro de sede, deixo todas as luzes acesas, eu sei que você está do outro lado da parede, sentado, com os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça apoiada nas mãos, inclinado para frente, querendo deitar em posição fetal, se enrolar todinho e arrumar alguma forma de me dizer que não sabe se dá mais. Meu estômago embrulha só de te imaginar criando borboletas em algum outro. Dói de um tanto que nem palavras conseguiriam alcançar o estrago. A agonia é tanta que às vezes me pego esperando que seja logo. Que você entre de uma vez, jogue suas chaves na poltrona, e diga que vai embora para nunca mais. Você se martiriza, eu te conheço, e se odeia por achar que antecipou o fim. Mas está tudo bem. Eu ainda rio à toa. Nem tudo perdeu a graça. Eu queria te abraçar, pedir para não se importar tanto comigo. Afinal, o que importa, depois de tudo, é a nossa própria felicidade. Odeio te ver carregando um semblante tão pesado. Como se voltar para casa, no final de um expediente, fosse mais um fardo do que um conforto. Agora você está lá fora, tentando descobrir quando se tornou tão infeliz. E eu estou aqui dentro, pensando em como te devolver sua felicidade.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Nenhum tapa olho cobre coração.

A princípio, eram só olhares. Desejosos, mas "só olhares". Só olhando foi como nossos olhos acabaram se encontrando. "Só encontrando". As pupilas dilataram. Foi quando "só desejo" se tornou pouco. Não foi previsto, tampouco evitado. Talvez tenha sido uma destas coisa já rabiscadas em um caderno milenar que chamamos "destino". Destino ou não, eu era seu. Contrariando-o ou não, você era, a princípio, distante. A princípio, nunca minha. As coisas se desconectam, às vezes, mas no tempo certo vão se ajeitando. A vontade era ver o estrago que sua pele faria na minha. As marcas do atrito. Acho que seria como limpar asfalto com seda. Você tinha lábios famintos, ariscos. Os cabelos caíam nos ombros diariamente despidos. Eu era magro, raquítico, morto de fome. Diziam que eu tinha um coração grande demais para aquele corpo, que talvez eu estivesse todo encolhido, acuado, lá dentro. Esperando algum tipo de conforto para poder, finalmente, sair, me mostrar além dos fios ralos de barba. Eu precisava comer e você também. Possivelmente foi isto que nos interligou à primeira vista. Identificamos um semelhante. Através de raríssimos amigos em comum, passamos a nos assustar um com o outro mais vezes. Confesso, quando o buraco no estômago era muito, eu te seguia por aí. Impossível te perder, mesmo naqueles mares de gente na Avenida Paulista, aqueles pares de pernas apressados. Suas panturrilhas eram bem mais firmes, bem mais fortes, e decididas. Sabiam, sempre, muito bem para onde queriam ir. A hora que deveriam chegar - mesmo assim, se atrasava, parando na calçada para acender um cigarro, fumá-lo até o filtro, assistindo o movimento da cidade. Engraçado, mas o tabaco nunca, em meu olfato, conseguiu superar seu perfume - o de grife misturado com o já natural. Ele tinha alguma responsabilidade em tamanho charme. Sua voz rouca intimidava muito mais quando saía junto da fumaça. Seu batom vermelho, num rosto já satisfeito de cor. As sobrancelhas impecáveis. Bem, parecia ter saído direto de um editorial de moda, mas não escondia a simplicidade de um tipo de raro entre os seres: aquele que carece de toques. Dos toques certos. Não tapas ou cutucadas. Afagos, a pele na pele certa, calor...enfim. Depois de certo tempo, não adiantava disfarçar, você já tinha percebido o número de noites em claro que foram gastas para que existissem tantas coincidências, tantos caminhos e destinos semelhantes. Mesmo assim, não recuei. Eu nos imaginava sendo um a comida do outro. Nos lambuzando. Eu devorando a sua presença. E vice-versa. Talvez isso fosse uma forma de contornar as coisas ruins da vida, as angústias, qualquer coisa que já houvesse nos machucado, ou perturbado. Nós dois comendo a presença um do outro. Depois roendo as unhas, até chegar aos ossos, na ausência. Depois de uma série de tentativas sem sucesso, eu tinha conseguido me livrar da dependência à nicotina. Mas a ansiedade em saber que você era totalmente minha e que não conseguia, ainda, enxergar isso, levou-me de volta para aquela espécie de roleta-russa. Por sorte, não sobrevivi, com minha sensatez quase intacta. Adorava quando você caía de sono em minha cama, quando eu ia até a cozinha para buscar a garrafa de vinho. Nada me trazia mais inspiração do que suas bochechas se tornando ainda mais avermelhadas quando saímos de madrugada para caminhar, assistir a cidade. Em um momento desta minha jornada até você, parecia impossível que, um dia, eu faria parte do seu ritual. Caminhar obstinada para, de repente, pausar tudo, acender um cigarro, e sentir a cidade. As luzes, os ruídos, os olhares. A princípio, você era tão distante. Mas com alguma teimosia, eu consegui permissão para tocar seu corpo, para ter certeza de que era mesmo de verdade. De que era completamente feita de seda. Seda, mais um oceano de sentimentos e sensibilidade. Bem mais viva e pulsante do que aquilo que mostrava ser à primeira vista. Devagar, eu fui sim matando sua fome. Fui tentando me tornar mais homem, mais humano, para que te bastasse e não te faltasse mais nada. Quis ser totalmente amor, mas não pude me livrar de alguns espinhos. Nos devorávamos de manhã, de tarde, de noite. Nos machucávamos, mas nos minutos seguintes, éramos a única forma de cura, de apaziguar a dor. Só olhando foi como se deu nosso encontro. Só olhando por aí, sem querer nada. Sem esperar, sem amarras. Descansa, o coração disse, e por isso não esperávamos por nada. Nada que fosse tão definitivo. Não esperando foi a forma como me desesperei na possibilidade de estarmos caminhando numa mesma rua que, sem aviso, bifurcasse. Se eu não estivesse tão acostumado a permanecer calado e não deixar de observar um gesto sequer, talvez algum desses planos que estavam escritos para nós tivesse que ser substituído. Eu me arrependeria amargamente se, por acaso, tivesse te perdido. Se algo eu tivesse feito de errado. Voltei sim a fumar mas, agora, com você ao lado, o ar nunca foi tão puro, sereno, com vontade de viver mais, viver tudo - desde que seja contigo.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Nossas Flores.

Estive me lamentando por horas. Tentando entender os motivos que nos levam a esta briga. A este quase rompimento. A este decisivo momento em que não sabemos mais quais as vantagens de termos, um dia, cruzado os dedos. Apertado uns contra os outros. Fechado os olhos. E dito: o sentimento durará até o fim, até depois dele, quando formos somente pó, ele vagará por aí. Ainda não desisti. Procuro rastros de quem você foi. Do tamanho amor que você me despertou - ele ainda, enraizado em mim, mas órfão de mãe. Tento te resgatar quando amanhecem os dias. Quando estamos banhados em luz, e as coisas parecem mais claras - ao contrário do anoitecer, quanto tudo se torna mais melancólico, me tentando a aceitar o estar só. Os ossos, expostos em seu corpo, ainda me perfuram fazendo cócegas ao adormecer. Todo o ato de pensar está ligado a você. Relembrar de quando sua respiração me causava calafrios. Das discussões que, em certos momentos, prefiro esquecer, mas que, agora, revelam um amor pelo qual valeu à pena lutar. Ainda vale. Quando, na correria, restam forças. Pois, mesmo com a pressa, sobra tempo. O amor será sempre atemporal, universal. Para o amor, o tempo inexiste. É apenas consequência. Datas que anotaremos em livros, bons motivos para celebrar, dias que sempre serão mais duros. Virá sempre a brisa fresca. O cheio de mar. Seu corpo envolvido por uma daquelas músicas sem ritmo que tocam sozinhas na cabeça. Lembrança e desejo de tempos bons. Momentos de calmaria. Se você precisar mesmo ir, irá. Não adianta remendar tecidos que não os próprios. Mesmo inquieto, meu coração se enche de paz. A ausência só existirá porque, um dia, houve a presença. Não mais te reconheço vista daqui. Há um brilho nos seus olhos que ainda é o mesmo, mas está distante, podendo escapar de um olhar distraído. Tenho te observado tanto. De um tanto que nunca nem imaginaria. Até a forma de cruzar os braços já não é mais a mesma. Soltou-se um pouco do mundo, parece. A gente conhece umas pessoas tão nada a ver. Cultiva por elas uns sentimentos tão pesados. Rói as unhas até arrancar a ponta dos dedos. Fica na expectativa de transformar qualquer formiga em encanto. Se estressa pelo sinal vermelho. Pela fila do banco. Reclamamos de tudo, mas não nos contentamos com nada. Com sorte, as coisas mudam. Tive sorte ao encontrar você. Dei de cara com a sanidade. Coloquei-a em teste. Quase nos perdemos. Das coisas ruins, pode ser que fique o asco. Das coisas boas, algo que sirva de lição. Não sei se sobreviremos a este já-nos-perdemos-de-tudo. Não sei se será, de fato, eterno. Mas de uma coisa eu sei: a consciência e o equilíbrio ficarão em mim. Mesmo falhos, em dias muito nublados. Não queira dar amor só quando há a certeza de que irá recebê-lo de volta. Queira dar amor como um ato involuntário. Tal como respirar. Queira dar amor para manter a si mesmo vivo. Queira dar amor sem importar-se com a pureza do que virá em resposta. Por enquanto, para você, para nós, só alguns simples desejos. Que encontre sua liberdade. Que seus pensamentos voem. Mas que volte para mim, fazendo crescer vontades e flores.

Protesto.

Eu tinha mania de repetir meu próprio nome, como se houvesse a necessidade de me convencer de que eu realmente existia. Também gostava de dar nome a coisas que fossem abstratas, a umas sensações que julgava muito particulares. E de identificar graus de entrega em sentimentos e classificá-los através de cores. Nunca, na vida, suportaria um dia sem pisar, primeiro, com o pé direito no chão. Esgotaria, se precisasse, todas as minhas chances de tentar tornar a vida mais leve. Escutava umas mesmas músicas em uma mesma ordem todo dia antes de deitar para dormir. Repetia um mesmo ritual todas as noites. E respeitava meus horários com uma disciplina inquestionável. É para dar sorte, exclamava, embriagado de esperança, toda vez que me perguntavam. E perguntavam com uma grande frequência. Meus tiques despertavam curiosidade. Quando eu nasci, eu era uma tela em branco. Você também. Hoje em dia, detesto burrice. Detesto, desprezo, não tolero. Não consigo achar uma relação entre condição social e inteligência, como muitos que andam cínicos por aí. Às vezes, me ocorre a existência de uma diferença entre inteligência e sagacidade, que é recorrente na gaveta das conclusões. Quando nascemos, acho, somos todos umas telas em branco. Que vão sendo pintadas ao decorrer dos anos, da vivência. Pintadas por si próprias - brotam de partes internas, inperceptíveis -, ou através do contato com outras - como beleza ou na forma de poluentes. O que eu quero dizer é que as cores e os formatos - estrelas ou lanças - vão variando com as circustâncias e as aberturas que temos embutidas em nós. Com as coisas que vão sendo suportadas ou repelidas. Os laços que vão sendo arrebentados. Em suma, somos meio que responsáveis pelo resultado final da equação do que somos. E ainda há quem ache que é possível viver sozinho. Todos precisamos do contato, das rodas fazendo faíscas dos trilhos, do álcool fazendo perfume das flores. Vocês gastam tempo demais planejando salvar o mundo, mas se esquecem que, para isso começar, precisam salvar a si mesmos. Prefiro permanecer calado durante a maior parte do tempo. Não interferir no trajeto de ninguém. Abster-me. Anular-me. Tornar-me maior em mim para ser mais para os outros, depois. É triste. Mas, agora, sinto vontade de falar. Sem realizar sonho, mas aliviar o peito. Assistindo a todas estas revoluções de meia-boca, todas estas badernas disfarçadas, todos estes jovens - digo, em sua maior parte - fingindo ter uma ideologia, com a vontade de fazer barulho, de aparecer na televisão, só deixam que eu conclua uma única coisa: o ser-humano está precisando de doses severas de realidade. Ou de seriedade.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Verdade Nua, No Entanto...

A verdade é que não há porquê decorá-la. Tentar torná-la mais leve, mágica, em tons mais vibrantes. A verdade é que a verdade é bruta, e por isso tem esse nome. Bruta como uma pedra, que encontra formas de ser mais apreciada, bonita. Mas, também, bruta como as coisas que assim são: indelicadas, dilacerantes. As coisas tomam a forma que precisam tomar. Olhou. Apertou os olhos. Enxergou. Sorriu. Recebeu algo semelhante de volta. Resistiu. Tremeu. Soltou as armas. Cedeu. Soltou a armadura. Virou para o lado. Piscou. Perdeu de vista. Reecontrou. Perdeu. Chorou. Endureceu. O processo amoroso pode sim ser sistematizado. Vemos por dores que são, ao menos, em essência, semelhantes. Mesmo quando queremos nos apropriar de sentimentos que, certas horas, parecem tão particulares, tão nossos. Tão visceralmente nossos. Escrever a história dos outros é, ainda, a melhor forma de livrar-se da sua. Falar da dor é a melhor maneira de torná-la aceitável. Fingir aceitá-la. Sentar-se no bar e ver alguém balançar a cabeça positivamente, alguém que ao menos simule entender do que é falado. À primeira vista, não, eu não te quis. Era extrovertida demais, estrábica, falava alto, gesticulava demais. Mas até que era bonita. Sem precisar de muito mais do que já era naturalmente seu. Devagar, você foi entrando em mim. Se adaptando a mim. Quando menos esperávamos, já havia se tornado difícil encontrar a posição certa na cama. Quando estávamos sozinhos, cada um em seu quarto. Um dia, abrindo a porta do carro, descobri que te amava. Ocorreu-me então o, até então, impensável pensamento. E fui te amando mais e mais. Fomos. Foi tudo muito recíproco, suave, gostoso de se contar por aí. Contar que surgimos deveras de repente um na vida do outro. Que fomos abrindo portas até encontramos um ambiente em comum. Onde poderíamos ter permanecido para sempre - acho, até hoje. Tolice, mas eu acreditaria em tudo outra vez. Caso você retorne, ainda, e repita os desejos de eternidade, eu acreditaria outra vez. Diria que, desta vez, menos. Mais pés no chão. Mas bem provavelmente, mergulharia com uma sede ainda maior. Consequências de uma saudade. Uma falta sua em mim. Pois, não sei se sabe, mas me incomoda só sentir seu perfume em outro corpo. Reanimando o cômodo, sem ter partido de você. Derrubando-me outra vez. Incomoda sentir que não está ali comigo. Que não está mais comigo, em lugar algum. Apenas no mundo abstrato. Na memória de um gosto, um gesto. Achei que morreria, disse que sim, mas por enquanto não. Só tenho andado com menos vontade, mais peso. Tenho dito por aí que desenvolvi um medo de te encontrar, por acaso, pela rua. Tenho tentado me convencer de que, talvez, tenha sido melhor assim. Você ter ido assim que teve vontade, ao invés de termos prolongado e manchado algo tão bonito. Ficarão os sorrisos e as flores. Sem mágoas. Sem muitas delas. Ficarão abertas portas para novos amores. Com algum medo. Com algum muito medo que sobe pela coluna em forma de calafrio. Mas vai ficar tudo bem. A verdade é que vai demorar um pouco. Que eu ainda chorarei um bocado. Que eu tentarei te substituir sem sucesso, até perceber que um lugar será sempre seu. A verdade é que essa minha tristeza, embora sinta tão minha, pode ser partilhada com outros tantos...

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Permaneça Então.

O cheiro de canela saindo do forno. Suas pernas atravessando rapidamente pelos cômodos. Ziguezagueando, cheia de pressa. Vivia cada segundo como se fosse o penúltimo. Reservando um sorriso enorme para o ato final. Surgiu de repente, tão de repente que não consigo firmar uma data. Foi se espremendo, até conseguir passagem pelo canto. Estava sentado, subitamente, ela apareceu na tela. E seu corpo foi tomando forma. Sua pele, nem morena, nem pálida, pele viva, destacava-se encoberta por uma bata de dimensões sete vezes maiores do que seu próprio corpo. Mas cabia perfeitamente. O par de olhos arregalados, meticulosamente encaixados na face rosada. Com traços tranquilos. Os lábios untados em manteiga de cacau e paz. Tão bela que chegava a ser quase - ou totalmente - pecado. Ridiculamente simples para um ser tão especial. A escoliose pesava seu corpo para o lado direito, algo que ninguém notaria. Mas meu encanto não deixaria passar. Para mim, aquilo parecia interferir um pouco na rotação da terra. Na velocidade em que passavam os dias. Como se tudo, na vida, tivesse algum dedo seu. Se bebesse, roncava durante o sono. Nos outros dias apenas resmungava, em lapsos de sonambulismo. Tinha a íris escura mas, ainda assim, transparente. Andava desengonçada, sem importa-se em ser assim. Esticava bem o corpo, num ritual de toda manhã. Olhava para o relógio incontáveis vezes durante todo o dia. Sofria de ansiedade. Sem saber muito o motivo. Esperava que algo grande acontecesse. Algo muito, mas muito, grande. Algo que mudasse sua vida de uma hora para a outra - mesmo aquela vida que vivia já sendo, relativamente, boa. Eu a observava por horas, todos os dias. Um ritual que criei para eternizá-la em mim. Por horas, destes dias dias, até tornarem-se anos. Amava suas bochechas constrangidas em público. O avermelhado no tempo frio. A delicadeza que tornava única cada uma de suas partes. Acho que é natural ao homem querer isolar do mundo aquilo que tanto lhe apetece. Mesmo querendo: nada tem dono. Nada, nem ninguém. Resta exotizar o objeto e mantê-lo o mais próximo possível. Mas sem marginalizá-lo ou corrompê-lo. Algo como não alimentar animais silvestres. Ou deixar que a lua permaneça inalcançável. Lindo amar assim. Alimenta a escuridão que resiste do lado de dentro. Amar sem querer manchar seus vestidos. Amá-la querendo-a sempre assim. Da forma que despertou-me. Sem sujá-la de mim. Sem alimentá-la com minha insegurança, com minha incerteza. Não pedir para que fique. Deixá-la seguir os caminhos que quiser. Sem fazê-la escrava de um amor que nunca pediu. Entende? Que corra...que voe...que ame...seja aonde for, quem for e, caso se for, que permaneça assim.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Mais Amor Demais.

Por que você não vai embora? Ainda é cedo e não abriram as cortinas. Ainda não é tarde demais para começar de novo. Para encontrar a si em outro. Encontrar-se na companhia de outro. Já estourei os meus, os seus, os nossos, miolos. Já nos apertamos forte demais. Nos re e de - batemos. Batemos, fomos um contra o outro. Nisso de pensar que pensamos tão diferente. Que somos tão exclusivos. Tão especiais. Quando, na verdade, só somos imensuravelmente egoístas e mesquinhos. Só somos iguais a todo mundo. Lutando por causas sem pé nem cabeça. Falando demais em coração. Nos corações que nós carregamos, tão pulsantes. Nos corações que dizemos estar em falta nos outros. Tentando preencher o vazio que não está nem em mim, nem em você, mas no mundo. Já viu como fotografam a lua? Como a enquadram toda vez que ela se destaca? Como tudo mudou, como antes queriam formas de subir até lá, e agora uma captura basta? Basta olhar a cor da camiseta, a harmonia do corte de cabelo. Basta olhar. Por que você ainda está aqui? Se onde há caos, ninguém encontra o ângulo certo. Onde há algo atípico. Um volume a mais. Deus queira que eu esteja errado, mas se está explorando ao máximo a superfície. E somente ela. Jurei que mudaria minha vida. Pareci até tolo. Mas jurei, ao te ver. Que mudaria meu modo de vestir. A posição ao sentar. A determinação de querer as coisas: e alcançá-las. Olhei seus olhos e não tive dúvidas. Se não fosse naquele momento, seria daqui a pouco. Existem corpos que se conectam até antes de amadurecerem. E estão predestinados, e logo, condenados ao encontro. Foi tudo muito lindo. Houveram as cartas e as flores. As caixas de chocolate. Os abraços macios. Gosto de coisa rara de se ver. Eu me via escolhendo outro time. Largando o pão pelo cereal. Deixando você me moldar do jeito que melhor te coubesse. Não vi você se mudar de mim. A gente se mudar um do outro. Você, de repente, se tornar uma destas pessoas que parecem ter descolado da televisão. Por que você ficou depois de tanto ameaçar ir embora? Você existia para mim de um jeito tão sincero. Tão puro. Pisquei os olhos e seu corpo reagiu ao mundo. Concordou com os rumos dele. Seus pedaços mais amáveis sumiram de mim. Não me amavam mais. Por não condizer com o esperado. Nenhuma mudança é eterna. Nenhuma eternidade é permanente. Estão todos se deslocando. Indo e vindo. Quase nunca voltando. Está tudo, incontrolavelmente, se transformando. Estamos transbordando. Nós dois, cada um escapando para um lado. Sem querer deixar isto claro. Na intenção de ser menos doloroso. De ser menos insuportável. De ser menos. Enquanto eu, eu só quero mais. Para você, e para o resto do resto do mundo. Mais carinho, mais cuidado. Menos espera, menos ansiedade. Mais unhas, menos cigarros. Mais amor. De preferência, espontâneo e gratuito. Menos brigas, mais entregas. Menos discursos, mais vontade. Mais amor. Só mais amor demais...

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Quanto Conto.

Eu queria que você se interessasse. Que você viesse, por vontade própria, e me perguntasse como foi meu dia, o que eu ando lendo, se peguei chuva, se passei frio. Que tivesse curiosidade em saber o porquê de, algumas vezes, eu ser tão pessimista. Porque eu te espero todos os dias. Mas mais no fim deles. Para você colocar a palma quente em minha nuca, dizer que está tudo bem, que o mundo não é assim tão terrível, que são só dias ruins. Para que você me entenda e, de alguma forma, queira dividir os mesmos medos. Medo de que tudo acabe. De que nada, nunca, seja eterno ou verdadeiro. Afinal, estamos nós dois juntos nisso. Na tentativa de sermos um par, de sermos parte um do outro. Podemos acabar os dois sentados no meio-fio, olhando para nossos sapatos, por vergonha de olharmos um nos olhos do outro. Podemos acabar, e é isso que quase sempre acontece, com quase toda a certeza. Mas a possibilidade, não importa o quão grande seja, é só uma probabilidade. E não quero pensar nisso. Não agora. Eu queria que você entendesse. Aparecesse aqui só para checar minha temperatura. Não basta dizer que ama. Nem dizer como é imensurável o amor direcionado a mim. Eu queria que você não se satisfizesse só em abrir os botões e soltar as palavras. Afinal, de que servem? Qual o uso delas? Não vão cobrir meus pés, nem me servir de escudo. Não direi o que me foi dito e me livrarei de qualquer julgamento. De que serve um amor que não se concretiza no tempo-espaço? Amor conjugável, transferível. No fundo, eu sei que ele existe. Mas eu queria que você me colocasse entre seus braços, só para comparar nossos batimentos cardíacos. Só para trocar energia. Queria que você me trouxesse a minha revista favorita. Uma caneca fervente de chá. Essas coisas de menina. Que fica cutucando as unhas para não se render e fazer um telefonema. Que tenta disfaçar o quanto precisa de você perto. De você querendo estar perto. Aquela vontade de se esconder, só para ver se você procura. De fazer bico. Fazer birra. Eu queria que, para você, as coisas tivessem o mesmo peso que têm tido para mim. Essa âncora que me prende aqui contigo. E que eu não tenho forças para levar para nenhum outro lugar. Para mim é tudo tão original. Novidade, cheiro de plástico. Destinos cruzados. Quero morar junto e ter filhos. Só andar de mãos dadas, trocar tudo para estarmos os dois sempre juntos. Para você não é nada de novo. Nada, de novo. E você fala e deixa claro como tudo é tão fácil de esquecer. É tão fácil seguir adiante. Foi assim, sempre será assim. Num ciclo. Vários deles. Eu queria que você me desse esperanças mas, ao mesmo tempo, você me dá e não as quero. Dicotomias do amor romântico. Quem tem tudo a oferecer é, justamente, quem pode levar tudo embora. Se for isso, se for mesmo tudo igual, não se esforce em me enganar. Por favor, apenas não faça isso. Já que tudo acaba de um mesmo jeito. Cada um em seu quarto. Um pote de sorvete ou uma garrafa de vodka. Se para você não for nada de especial, se o ritmo da música for o mesmo...dureza é se permitir à insensatez de acreditar. Frieza é permitir isso a outro que se entrega sem medidas. Eu queria que você me impedisse. Mas já é tarde.

Liberdade.

Não me importo se, um dia, acabarem as primaveras. Eu ainda te colherei flores. Correremos de mãos dadas pelos jardins, nos serviremos de vinho perto do sol se pôr. Eu te amarei para sempre. Criarei este tempo, se for preciso. E se um dia você precisar virar as costas e ir, seu lugar ainda será o mesmo no meu peito. Se um dia não for mais recíproco. Se o amor não for mais o mesmo. Se esgotar o desejo. O que o amor tem de enlouquecedor se harmoniza com os pés no chão, que me foram deixados pela vida. Eu aguentaria as pontas, você sabe. Cuidaria bem da saúde e do resto das minhas coisas. Ficaria tudo bem. Quando se tem as músicas certas, nenhuma dor é insuportável. Os livros e as doses certas. As garrafas e as palavras cheias. Ninguém morre de amor saudoso. Se você sentir vontade de ir, quero que não pense muito em mim. No que restará de mim. Se sucumbirei às tentações. Livrai-me delas. Coisa que cobraria de Deus, se julgasse necessário, mas nunca de você. Isso se você realmente fosse e a dor surpreendesse, sendo pior do que o previsto. Se isso - nós dois - estiver te apertando muito, apenas peço para que me avise. Apenas me diga: não dá mais, estou indo. Para não haver susto - nem surto. Se quiser fazer as malas e sair para conhecer o mundo, eu não vou pedir para que me carregue junto. Muito menos implorar. Eu sei como você voa. Como você simplesmente abre as asas e alça vôo. Vai embora. Foge do alcance. Não olho para trás, você disse. Nunca olhei para trás, frisou. Às vezes eu me pego te olhando. Às vezes seu olhar tão triste nem me percebe ali. As coisas que você vê e guarda para si. As coisas que você vê e só não conta para mim. As inúmeras vidas que cada ser vivo vive. As horas a mais no trabalho. Um capítulo de um livro. Um pensamento solto no engarrafamento. Coisas que estão sempre nos alterando, nos movimentando. Algo que acabará por te movimentar para longe. Infelizmente, não tenho controle sobre os fatores. Ninguém tem - mas nem por isso deixamos de desejá-lo. O que te corrói por dentro, o que te estremece por fora. Não posso isolar sentimentos. Para que os seus sejam sempre bons, sempre grandes, sempre direcionados para mim. Não posso te forçar a orbitar em minha volta. Se você quiser ir, não hesite: vá. Mas me avise e já vá logo. Não peça nem um minuto para ver a ferida. Para checá-la ou apalpá-la. Também não tente bisbilhotar. Só quero que vivencie tudo aquilo que aguçar seus sentidos. Não quero, nunca, tentar te privar de nada. Amor tem dessa inocência derivada dos burros. Esse infantil aceitar. Se quiser viver sem fronteiras, ser cidadã do mundo. Não pense duas vezes. Zelarei daqui. Estarei aqui. Dando o braço a torcer. E também, depois, se quiser voltar. Não me importarei com vestígios, ou com os carimbos nas folhas do seu passaporte. Com a marca de mordida em seus lábios. Alguma virose. Se tiver que ir, por favor, vá. Se puder voltar, mais que agradeço.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Ainda Existirá.

Você quer ser ninado. Quer que alguém te pegue para criar. Quer ser colocado no colo. Para que passem a mão nas suas costas dizendo que uma hora tudo fica bem. E ficará. É pior para muitos outros. Essa dor toda é só solidão. Ao menos, você pensa que sim. É muito pior para outros. Mas você não se lembra disso. Você sequer cogita essa possibilidade - tão gigantesca. Porque ainda vive na lembrança dela. Diz que perdeu a vontade. Ainda pior, o coração. Que endureceu. Mas chorou nos minutos finais da novela. Chorou quando viu o pote de margarina vazio, a cigarra morta na janela, quando não conseguiu atender o telefone antes que parasse de tocar. Chorou por respirar, porque aquilo ali doía. Como sobreviver na ausência dela? Você se pergunta. E planeja formas trágicas de fazer tudo terminar. Sangrar um pouco só para ter a atenção dela. Desmaiar no chão do banheiro. Arrumar briga no bar. Aparecer no jornal. Você só quer que alguém reconheça sua dor. Que alguém a legitime como dor gigante só sua. Só sua. Particular e singular dor sua. Mesmo assim, quer que se identifiquem. Que alguém compadeça do seu sofrimento. Que tomem e retomem suas dores. Num ciclo sem fim. Onde você morra sem deixar-se morrer. Quer que te falem sim que vai ficar tudo bem. Mas não quer que essa hora chegue. E se irrita. A gente nunca escuta o que precisa. Nunca fala o que quer. De que servem as palavras? Se o silêncio, dizem, fala muito mais. Se há, também, o olhar. O toque. A ausência. Se só é dito o que convém. E palavras vão e vêm. A imagem dela te perturba durante o sono. Antes. Depois também. Olhando uma foto, você se lembra dela. Olhando um conhaque, você se lembra dela. Olhando, a imagem permanece. Parece que cada dia perde mais um pedaço. Tanto dela, quanto seu. Não se compara dor de um com a dor de outros. Mas certas coisas podem ser tão piores. Você tenta se lembrar disso. Vai fazer trabalho voluntário na Nigéria. Salva um passarinho que caiu do ninho. Doa todas as suas economias para alguma causa. Se te segurassem no colo, não necessariamente você encontraria a calmaria. Você ainda odiaria o mundo. Odiaria, muito mais, as pessoas. O vazio em cada uma delas. Cruxificaria o vazio de achar-se o ser mais magoado do mundo. Perceberia a tênue linha entre se magoar e se amargurar. Salvar o mundo, quem sabe. Encontrar o significado de salvação. Deixar a barba crescer e peregrinar por anos. Perder o rumo. Sublimar em espírito. Encontrar o que estava perdido. Qualquer essência que tenha se adulterado. Navegar por desertos em busca de paz. Perceber que dores tão pequenas resultam em desejos tão grandes. Vezes ou outras, maliciosos. O meio faz o homem. Livrar-se das pavimentações. Abster-se do dourado dos cifrões. Ver o mundo com olhos perceptíveis às rotações. As fases da lua. Acompanhar o ritmo das cores. Todas elas. Poder ver o céu e não reclamar se está fechado ou se está aberto demais. Pensar que tem gente que não vê nada. Lembrar que cada homem, todo homem, é feito de porpurina e coágulos. De labirintos e flores. Que não há porquê se perder, há sempre um caminho. Amar. E não desistir nunca. Se não for um mesmo amor para sempre, que sejam novos e outros. Mas amores. Nunca menores, nunca mais algo, ou menos outra coisa. Mas completamente amores. E se seu amor parecer errado, então é amor de verdade. Todo mundo tem medo de perder. Mas é todo mundo orgulhoso demais para fazer o que é preciso para manter. Olhar para os lados, esquecer a marca da camiseta, o país de origem, o número de reais que foi desembolsado. Ser-humano. Ser-mais-humano. E ainda há quem ache possível viver sozinho.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Sentidos do Amor.

Era ela. Eu sempre sabia quando era ela. Ela sabia como ser por somente estar neste mundo. Ser daquela forma inigualável. A imprevisível existência dela. Que, primeiro, surgiu para mim na forma de mistério. E refletiu-se, em mim, como curiosidade. Aqueles ombros preguiços, aqueles cachos caídos. Não sorria, mal abria a boca. Mas existia. Digo, existia nos mesmos ambientes que eu. Nos corredores da repartição, queimando a ponta dos dedos com o café da lanchonete, balançando os quadris para outros homens. Na verdade, quando muito inspirada, balançando-se até para outras mulheres. Tudo para ela era assim, muito simples por não precisar ser explicado. Não devo, dizia. Em voz alta, e só assim eu podia escutá-la. Berrando, com um copo em cada mão, e um cigarro, quase na ponta, pendurado nos lábios. Não por deselegância, mas é que, geralmente, ela precisava repetir várias e várias vezes tudo que dizia para poder ser ouvida. Na copa, toda manhã, às oito, os homens se reuniam para discutir a final do Brasileirão, as quedas na bolsa, o comprimento das saias que desfilariam ao decorrer do dia. Ela era sempre colocada em pauta. Diziam que era difícil escutá-la enquanto seu decote berrava. Acho que ela só podia não perceber para tentar fazer-se entender tanto. Ou ela gostava desses jogos de desejo e carne. De vez em quando ela me olhava. E eu sempre lá, olhando-a de volta. Olhando-a mesmo quando estava de olhos fechados. Não sei o diagnóstico, mas sei que bateu forte lá no fundo do coração e, ao contrário do que se espera, nunca mais voltou. Sei que naquele dia, de sol insistente, ninguém imagianava que a chuva desabaria tão repentina-e-intensa-mente. O que se seguirá depois deste imprevisto, não tem nada de previsível, daquele tipo: ficamos os dois nos protegendo da chuva na portaria e aquela umidade toda nos arrepiou mais do que pelo frio e acabamos os dois atravessando a madrugada investigando nossos corpos, não. Não há nada disso. Antes houvesse. Pois ouvi dizer que, quanto mais se tenta guardar um desejo, empurrá-lo para dentro, para que ele não transpareça, mais ele vai se ocupando de nós. E multiplicando-se também. Então desejos crescem numa progressão mais que geométrica quando tentamos nos desviar deles? Bem, não sei do resto do mundo, com ele não me importo, mas comigo foi assim. Então, quando pus minhas mãos, pela primeira vez, na pele dela, meu corpo todo entrou em ebulição. Meu coração quis sair pelos olhos. E antes ficasse só na superfície. Isto de querer e ter e, se quiser de novo, repetir. Não. Precisou me roubar a atenção, a vontade, os olhos e...veja bem, até parte dos meus colhões. No dia da tempestade, ela só quis saber meu nome. E eu quis fingir não saber o dela. Depois dali, os bons dias e boas tardes, as conversas quando nos encontrávamos, uns drinques no fim do expediente, as pernas por debaixo da mesa. Uma sinfonia de aproximação. Um dia eu não bastei mais. Mas ela nunca nem falou nada. Esteve sempre quieta, me escutando. Enquanto eu ficava sem fôlego elogiando cada uma das coisas que mais amava nela. Ela nunca sequer disse se havia algo em mim do qual ela gostava. Mas eu entendia que sim, eu precisava que sim. Até parece que foi fácil. Depois de uns meses caminhar por aqui. Tendo largado o emprego. Mas saber que era o carro dela, estacionado na vaga favorita dela. Uma marca de sola de sapato, possivelmente também dela. Umas lembranças do perfume. E o saber ser sem estar com ela. Que através de anos mantiveu-se calada. Só estando ao meu lado. Ouvi mesmo falar que o amor era cego, mas nunca que fosse mudo.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O Amor Morreu.

O homem usa as palavras da forma que lhe convém.


Amor. É como um dia te chamarão. Eu te chamarei. Que serei chamada. Nome que, antes de sê-lo, é conjugado. Em primeira pessoa, com a esperança de não ser apenas uma só. Só mais uma. Paixão. É aquilo que dá, mas passa. Que, na maioria das vezes, não se sustenta sozinho. Que, muitas vezes, ninguém vê acontecer. Mas que não precisa realmente ser visto. Desde que seja mútuo e, então, muito provavelmente, concretizado. Concreto é aquilo que sufoca a gente. Que transforma, molda, ergue, ou nos enterra junto aos vermes. Nos prende por lá para sempre. Sempre no sentido de eternidade e, por isso, ingenuidade. Como acreditar em santos, sem nunca ter assistido um milagre. Como ser que nem todos os outros, e alimentar em si o que há de mais indigesto: a eternidade. Eternos serão todos e tudo, desde que não vivam em nós. Qualquer ser, que for realmente humano, tende ao pessimismo. E até prova da depressão. Nada do que é belo pertence a aquele que tem a palavra. Só é o ideal se não for meu. Como se nossas próprias mãos só fossem capazes de manchar e destruir as coisas. De desvirginar as flores. Através das flores a gente diz as coisas que não sabem ser ditas sozinhas.
Bom dia, amor. Meu amor, em carne, osso, com cheiro de lavanda, abrindo a boca perto da minha nuca. Nossa, como eu te amo...já disse isso hoje? Contei desse amor tanto? Pois se ainda não, é porque o dia só começou agora, há uns cinco minutos. Hoje eu acordei mais apaixonado do que nunca, percebe? Eu cosigo achar lindas até as remelas enfeitando os seus olhos. Se eu nos tivesse previsto, eu não teria me assustado. Se nos tivessem visto, isto não seria contado. Não teriam me acalmado. Sufocado por tanta pressa e concreto, você ainda conseguiu me apertar mais. Contra mim, contra seu corpo ossudo, suas voltas retangulares. Por todo o sempre é somente metade do tempo em que eu te quero comigo. Todo o tempo do mundo de um mundo que não tem mais tempo. Nada na vida vigora. Mas você é tudo para mim. Seu rosto de porcelana se arranha na minha barba mal feita. Eu te estrago, quase te anulo. É o medo de te perder. É um tremendo medo de te perder. Que me faz querer estar sempre contigo. Todo o tempo contigo. Eternamente só eu e você. Mas eu sei que tudo acaba. Sei que quase com certeza tudo acabará. Sei que não sou dos males, o pior. Também que não sou dos mais atraentes ou interessantes. E vivendo a gente se depara com tanta gente. Eu não te trocaria por nada neste mundo. Nem em um outro. Suas mãos miúdas, tenho certeza, são aquilo que me mantém de pé. De pé, cabeça erguida, vontade de ir adiante. Suas mãos, seus olhos, você dá cor a tudo. Bom dia, amor. Eu poderia repetir isto pelo resto desta vida, e das próximas que estejam por vir.
Bom dia, amor. Sinto muito mas, ontem, me ocorreu que nada disso existe. Nada. Nada de amor, nenhum resquício. Não só em mim. Em mim por você. Mas no ser-humano. No mundo. Não é amor. É uma relação de interesse. Não queria te entregar assim, logo de cara, já nas primeiras palavras, a verdade. Te dizer assim, como se não me doesse, que eu nunca te amei. Que nunca foi nada disso. Troca de secreções, sensibilidade nas genvivas, lábios inchados, o atrito entre nossos corpos, o afago. Nossos troncos dormindo encaixados. Um sono que parecia nos elevar para algo muito além da realidade. Distração, amor. Mesmo tendo dito, nunca senti saudades. Achei que sim. Egoísmo é querer que alguém seja seu para sempre. E a gente se prometeu ser assim por tantas vezes, né. Encostados na sacada, uvas moscatel e seu cheiro de flores recém-colhidas, eu apertava os olhos e jurava que não seria possível existir uma vida sem você. Eu me apertava contra suas dobras e te pedia para que, por favor, não escapasse. Nunca, nunca, em hipótese alguma, me deixasse. Confundimos tanto as coisas. Deixamos que elas nos confundam. Amor é coisa que dá e passa. Que só dá quando a gente quer que algo fique. Algo fique ali conosco para suportar a existência. Porque existir pode se tornar tão doloroso ao ponto de parecer insuportável. Não, não julgo a crença dos outros. A gente faz o que for possível para nos manter sãos. Agarra com unhas e dentes. Eu achei que precisava tanto de você, só de você. A única coisa que é natural ao homem é a sobrevivência. E a gente enfeita tanto. Porque não basta beber da fonte, não basta ter a mesa farta, temos que enfeitar a existência, torná-la mais agradável aos olhos. Quando na verdade só precisamos percorrer do começo até o fim. Inventamos problemas e, para isso, sentimentos. Nunca fomos amor, nem muito menos seremos eternos.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Agradável.

Nada dura para sempre porque ninguém está imune a mudanças - em si e no mundo.

Eu não te esquecerei. Não porque foi um amor maior do que os outros - pois isto não foi. Mas porque será impossível me decidir se não sei viver sem você ou se não sei viver sozinha. Isto, é claro, num destes momentos em que a solidão parecer insuportável. Um destes momentos em que qualquer coisa parecer solidão. Coceira, dor de estômago, fome, parecer solidão. E esta "solidão" parecer saudade. E tudo ficar confuso. É verdadeira essa curiosidade sobre a cor da grama do vizinho, eu vou pensar. Vou pensar que quis sair para ver, e não mais te quis, e então te perdi. E a grama? Você iria perguntar, e eu perguntaria a mim mesma, imaginando você me perguntando. Diria: era tão esverdeada quanto a minha, quanto a nossa. E se eu me arrpendi? Você me perguntaria: e você, se arrependeu? Por enquanto, parece que sim. Porque até o som das folhas lá fora me lembra sua voz. E me dá saudade. E parece que vou me arrebentar de saudade. De tanto me sentir tão longe. Uma saudade que queima, que arde. E o pior é que, depois de um pouco, talvez depois de três horas, já quando estiver finalizando o dia, pode ser que nem seja mais saudade. Digo, eu posso descobrir que não seria, não era, não havia sido, saudade. E concluir que era só solidão, e o medo de me sentir para sem assim. Para sempre em si. Em mim. Digo, para sempre só. Não sei se não posso viver sem você, ou se não posso viver sozinho. Não sei a origem do meu medo. As raízes das quais ele brota. Nunca mais te ter ou só ter a mim mesmo. Será se daqui uns anos a gente se rencontrará? Se tudo aconteceu para terminar assim, e recomeçar mais tarde? Ainda assim, nada nos impede de escapar dos planos. De conhecer outros corpos, de tatuar novos nomes. De sentir vontade de passear de mãos dadas, de ter filhos, e comprar uma casa na praia. De sucumbir as tentações. Iremos nos afastando. E diremos que o tempo foi quem quis que desse tudo errado para nós. Mesmo pensando que, afinal, se ele quis, é porque deve estar certo.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Quase Infinito.

Escrever é como pincelar o retrato de uma mulher, completamente nua, de costas, sem se deixar esquecer de uma pinta ou sarda sequer. Depois, esta mesma mulher de lado, de frente, inclinada sobre um escorregador, plantando bananeira, agredindo alguém. Novamente, sem se deixar esquecer de uma pinta ou sarda sequer. Sem deixar nenhuma pincelada para trás. Nenhum traço, que alongue ou diferencie o contorno dos olhos. Sem omitir, ou disfarçar, nenhum detalhe.
Escrever é expôr. Tornar comum – e até familiar - ao leitor aquilo que, anteriormente, era secreto ou sagrado. Seria, usando ainda o exemplo da mulher, como aproximar o rosto do leitor ao corpo dela, e abrí-la toda – desde as pálpebras, até as pernas -, para que se possa, enfim, conhecê-la tão profundamente a ponto de afirmar: não há sequer um ponto preto em seus pulmões – ou algo do tipo.
Antes, ultrapassaria qualquer uma das minhas piores intenções, pensar em expô-la desta forma. Ultrapassaria qualquer conceito que eu havia adquirido de valor moral durante a vida. Digamos até, ético. Ultrapassaria, também, qualquer um dos meus impulsos mais tenebrosos.
Eu precisaria pensar cento e cinquenta vezes – no mínimo – para decidir se conseguiria arregaçar, de graça, para o mundo, aquilo que eu havia de mais precioso. Ainda assim, mesmo depois de cento e cinquenta pensamentos, de listas e mais listas de prós e contras, de noites mal dormidas, de pele e olheiras arrebentadas, eu não me renderia. Eu te manteria, para sempre, como o meu segredo.
Você era mais bonita preservada por mim.
Os sentimentos se contradizem mais do que nós mesmos. Os sentimentos são, na verdade, a raiz de toda a contradição humana. Não dá para ignorar a forma imbecil como os ratos se mantém sempre os mesmos.
Que óbvio.
Liricamente, eu podia, e te chamava de segredo – fingindo ser o único conhecedor de seus sabores, ao negar qualquer passado seu. Mas este meu segredo só tinha a forma de um quando éramos apenas nós dois encarceirados por quatro paredes. Quis manter as coisas assim, mas é claro que não pude evitar que todos soubessem – o amor tem dessa dicotomia entre intimidade e exibicionismo.
Caminhávamos durante a tarde no parque, com sorrisos maiores do que nossas próprias pernas. E, à noite, você me agredia, e vinha com suas críticas severas, com seu punho fechado. Nos atracávamos, e nos violentávamos – na comoção do sexo ou do sangue. Por mais que viver contigo fosse sempre guiado por um repertório novo ou inesperado, nós tínhamos nossos rituais.
Não posso dizer que deixávamos de ser felizes quando estávamos sozinhos. A violência, por menos sádico que o agressor seja, tem um quê de felicidade. A alegria de controlar um outro. De ser mais forte. E tem mais, sobre nós dois, todo ritual tem sua finalização, e a nossa era jurar eterno ódio com nossas línguas rigorosamente entrelaçadas.
Mas, afinal, o que é a felicidade? E sem sequer saber definí-la, será se conseguimos – ainda que por um instante – a proeza fazer um ao outro feliz?
Éramos mais sensíveis a nós mesmos do que ao resto do mundo. Acho que talvez fosse isso. Mas, no final, por mais que tentássemos escapar da rotina, acabávamos sendo um casal como todos os outros. Felizes para sempre. Felizes para algo que não existe. Felizes por nada.
Embora os sentimentos tenham mudado, e a idade nos evoque a posicionação de questionadores mais do que tudo, eu ainda consigo afirmar: você me fez feliz. Ao menos, aquele estado eufórico e taquicárdico, parecia felicidade. Nunca fui ver um médico para confirmar. Mas sei que isto só acontecia – e se repetia - quando eu estava contigo. Então são duas as opções, ou você foi a minha única experiência com a felicidade, ou você poderia, facilmente, ter me levado à morte.
Bastava que quisesse, você bem sabe que, de verdade, poderia.
Às três horas da manhã, quando você, sonâmbula, me acordava, era quando eu mais tinha certeza: meu amor ultrapassava os limites humanos.
Não, não era mesmo saudável. Você deve sim ter entupido algumas das minhas artérias.
E leve em consideração que, para os humanos, parecem não haver limites.
Hoje, com mais fios grisalhos na cabeça e no coração, não tenho mais garantias de nada. A gente vive achando que crescerá e aprenderá. E eu acho que ainda estou engatinhando. A verdade é que eu precisaria de mais vidas para sanar minhas incertezas. O ócio deve ter sido o procriador da Filosofia.
Quem sou?
De onde eu vim?
Que merda é essa?
Do que estou falando?
Que horas são?
Cadê você?
Para onde você foi?
Será se você volta?
Será se está com outro?
Alguém realmente já amou?
Ou foi tudo mesmo solidão?
Se nossos corpos inteiros se movimentassem por, pelo menos, metade do dia sem precisarem de nossos pensamentos, sentimentos, idiotices, ou decisões, eu acho que nossas vidas seriam mais fáceis.
E eu não teria te beijado naquela quase tarde de Dezembro.
E nós também não seríamos humanos. Seríamos o que poderíamos chamar de semi-humanos – por funcionarmos na forma de um por apenas metade do tempo.
Acho que seria melhor até do que ser um semi-deus.
Se releio isto, parece que estou escrevendo como uma forma de me livrar de você. Pois juro, você já se foi. Mas, se por acaso, me engano, e você ainda está aqui, ao menos, dorme. Dorme um sono longo e profundo. E por favor, não acorde. Estou melhor assim, mais leve...
Durante anos eu afirmei que, depois de você, nada mais faria sentido. Afirmei mil outras coisas, como se me desfragmentasse estando naquele estado febril da paixão. Eu só não afirmava minha loucura por não ter tido, tão cedo, conhecimento dela. À respeito do sentido, por enquanto, só consigo me provar que estava certo. Não há nada que, ainda, faça sentido. Mas acho que, mesmo com você, nada fazia.
E é quando tudo perde o sentido novamente – feito houvessem graus de razão para as coisas.
Eu realmente te amei como jurava que sim?
Parece impossível agora. Ninguém tem o direito de agir de tal forma sobre outra pessoa.
Deus, como você era cruel. E como me pesava.
Eu tirei meus sapatos, me acomodei no sofá, e te dei o controle da minha vida.
Mas, se tudo não se passou de um engano – o amor e sua dramaticidade toda -, eu não preciso me dar o trabalho de me desculpar. Sabe, eu tenho a certeza de que, para mim, ao menos, tudo que vivemos foi verdadeiro. E, por isto, valeria à pena perder algumas horas e, já de antemão, me lamentar.
Lamento termos chegado nisto.
Quero dizer, lamento termos vivido o que vivemos para, finalmente, chegarmos nisto. Lamento, primeiramente – e infelizmente -, por termos vivido. Pois, antes não tivéssemos, e então, agora, eu não passaria por esta crise de meia-idade - que passou uns dez anos presa no engarrafamento até chegar aqui.
É de rasgar o peito pensar que, para você, tudo pode ter sido apenas uma brincadeira.
Você tem que me dizer que ficará tudo bem.
Você precisa fazer isso.
Como sempre fiz, te imploro.
Montei em você para, só no fim de nosso passeio, perceber que se tratava de uma montanha-russa – e eu nunca conheci uma na qual fosse possível brincar eternamente, sem intervalos. Então, se eu tivesse percebido o que você era antes de ter embarcado, eu teria palpites de que chegaríamos, logo, logo, ao fim – como toda brincadeira. Ou, logo de cara, entenderia que era tudo uma armação.
Toda moeda tem dois lados.
E você só pode ter planejado tudo.
Caberia somente a mim decidir se estava disposto a me divertir – apenas me divertir – um pouco. Obviamente, tendo em mãos esta decisão, eu teria recuado. Impossível resistir ao seus olhos. Ainda mais impossível, desvencilhar-se deles.
Você tinha cara de quem não se deixava guiar pela ordem das coisas, mas era capaz de fazer qualquer um implorar por bis.
Enfim...
É sabido que montanhas-russas se sustentam em cima da idéia de oscilação – uma coisa meio ying-yang, meio clímax e resto do enredo, meio ups and downs. A mesma idéia que, de certa forma, se criou em você.
Só agora eu percebo como teria sido fácil ter escolhido te odiar.
Achei que viveríamos um romance. Achava que vivíamos. Mas, depois que terminou, pude me virar para e perceber que se tratou de tudo, mas menos de um.
Tudo bem, posso admitir que este foi um julgamento meio raivoso. Era sim um romance, com intervalos publicitários – você sempre foi bonita, e sempre soube disso -, uma mescla de romance com suspense, às vezes com drama, outras um romance policial. Um romance com trilha sonora de filme de terror. Um filme educativo. Um documentário sobre animais selvagens. Um pé no saco. Um berro. A maior felicidade do mundo.
Eu gostaria de ter sido o autor da nossa história.
Mas quando eu era pequeno eu também gostaria de ser invisível. A realidade
é que é bom sonhar.
Eu gostaria de ter sido o amor da sua vida.
Olhando para trás, eu sei que foi tudo muito bonito. Mesmo quando trágico, ou desnecessariamente triste.
Para mim, relembrar “felicidades” foi sempre algo muito duro. Ainda mais triste do que relembrar de qualquer outra coisa – outros momentos ou sensações. Relembrar, na verdade, é algo que me dói muito. Sempre fui covarde. E um dos meus maiores medos é nunca mais sentir alguma coisa que me envolveu profundamente.
E se eu nunca mais me sentir “feliz”?
E se eu nunca mais amar alguém da forma como eu jurei te amar para sempre?


Eu nunca fui bom em colocar tempo nas minhas histórias. Assim sei que tudo sempre sairá alheio aos dias e horários, como se minha vida nunca tivesse seguido uma ordem cronológica. Então, por exemplo, pode parecer, em algum momento, que eu tenha te amado antes mesmo de te conhecer.
E eu amei.
Só não sabia.
Mas, racionalmente, as coisas nascem – antes de poderem sentir qualquer coisa, aliás, de terem consciência -, depois crescem, aperfeiçoando o tato e a sensibilidade e, finalmente, se percebem sendo o que realmente são.
Como eu não quero me prender muito aos fatos cronológicos – por não ter memória, nem disposição -, esta análise poderia muito bem ser como uma esquematização atemporal da minha vida. E assim, chegaríamos, rapidamente, aos fatos que importam – será que algo, nesta enrolação toda, realmente chegará a importar?
Eu jurei que nunca mais amaria ninguém na primeira vez em que “partiram meu coração”. Fui excessivamente fraco e covarde ao afirmar uma coisa como esta, mas, ao mesmo tempo, só confirmei ser igual a todo mundo. Quem nunca acordou de ressaca jurando que nunca mais colocaria um bombom de licor na boca? Sempre juramos não poder suportar mais nenhuma dor, quando recém-casados com outra. Mas, ao menos, uma vez na vida, atingimos maturidade suficiente para entender que um coração é pouco perto do que, realmente, pode ser partido.
Ou para entender que há uma diferença entre corações e empolgação.
Por anos me rendi às tentações. E, doloroso mesmo, é se perder de quem te quer bem. É perder quem sempre te quis bem. Nada como uma vida partida para te ensinar que, aos 15, 16, anos, coração algum se parte. O que acontece, no máximo, é um arranhão no ego.
A gente passa a dar valor quando tudo já foi perdido.
A gente passa a dar valor quando já teve que dar adeus.
Não poder voltar atrás para, quem sabe, ter a oportunidade de salvar algo que realmente importasse, talvez seja a maior forma de ter algo verdadeiramente partido.
Engraçado como coisas pequenas podem salvar coisas tão grandes que nem sabemos dar a elas um tamanho.
Eu lembro, ela tinha olhos verdes, e neles, umas manchas amareladas. Olhar nos olhos dela era quase como dar uma volta na praia. Mas aos 15, 16, anos, tudo que a gente menos quer é a sensação de tranquilidade. Na metade do recreio, ela disse que preferia um outro, que já tinha carro, e me deu às costas, carregando uma lata de refrigerante. E eu, com lágrimas nos olhos, permaneci parado por uns minutos. Jurando que sabia o que era amor, jurando que a amava. Jurando que sabia o que era sentir dor, jurando que estava acabado.
Ainda bem que, alguns de nós humanos, crescem.
Melhor ainda: ainda bem que eu fui um desses.
No primeiro encontro você me perguntou tudo que era possível de alguém querer saber sobre a vida de uma outra pessoa. Meu nome, qual número eu calçava, meu lugar favorito na cidade, minha cidade favorita no mundo, a música que me definiria, as coisas que eu gostaria de ter feito e não fiz. Em contrapartida, você não me contou nada. É claro que, pensando bem, parecia mais um interrogatório do que uma conversa. E, se estivéssemos em um lugar mais vazio eu, com certeza, estaria fantasiando com algemas e uma arma bem aquecida entre suas coxas. E talvez uma cautelosa revista e um tipo mais delicado de tensão.
Não ouso dizer que você era bonita quando posso dizer que você era inexplicável. Pois bonita você podia ser – e era – para qualquer um. Ninguém podia fugir disso, você era bonita, uma beleza meio esteriotipada, mas inesperadamente presenteada por alguns detalhes únicos e, só por inveja, alguém seria capaz de negar isso. Inexplicável era uma coisa que você só podia ser comigo – como é imbecil a inocência envolvida no acreditar amoroso. Pois nisto de “inexplicável” estavam envolvidos seus traços faciais, seu sorriso, seu bumbum entre minhas mãos, seu talento para as artes plásticas, nossas afinidades e, principalmente, todas aquelas coisas sobrenaturais que você despertava dentro e fora de mim.
Quem diria que, em menos de um ano, estaríamos dividindo um apartamento de quatro quartos. Só nós dois e alguns transtornos. Quem diria que seria tão sério a ponto de não nos mudarmos nem para o seu, nem para o meu apartamento, mas sim para o lugar onde eu fui criado.
É que, veja bem, é um sonho e tanto reinventar vidas novas nos mesmos ambientes de vidas anteriores – de mesmas pessoas. Você disse, e eu me ajoelhei no milho, e te preguei junto as estrelas, lá em um tal de céu.
Às vezes nós nos questionamos a respeito dos nossos próprios santos, né? Ou eu nasci com defeito?
Eu tive que me livrar de alguns mimos e de algumas lembranças materiais para que encaixássemos um ao outro, os dois à cama e, principalmente, para que aquele padrão de vida se encaixasse ao que queríamos viver.
Por muitas vezes abri os olhos no meio da noite só para ter a certeza de que você ainda estava lá.
Já quando eu te vi pela primeira vez, eu tive a certeza de que você daria trabalho. Você tinha nos olhos mais do que eles já tinham visto. Com isto, eu não precisei ser nenhum gênio para entender que você ainda iria querer conhecer muita coisa – só não imaginava que não seria eu a te mostrar muitas delas.
Era o primeiro dia de chuva depois de uma seca que durava cento e sete dias. O primeiro momento depois de meses que casacos finalmente veriam o céu depois de tanto tempo de fumaça e bolor. No seu corpo eram claros os reflexos daquelas gotículas caídas do céu. O cabelo castanho-claro escurecido e despenteado. O rímel circulando e descendo pelos olhos. O sorriso aliviado. Finalmente, fez-se chuva. E fez-se dela esperança.
Você falava demais. Rápido demais, alto demais, animada demais. Mas sua excitação descia bem. Dos ouvidos ao estômago.
Algo havia possibilitado meus pulmões de incharem com mais folga.
A tão esperada, e dançada, chuva. Ou tão inesperada você.
O que você está lendo?
Vem sempre por aqui?
Ou está se protegendo da tempestade? Como eu...
Como você...
Como você eu nunca havia visto nenhuma outra.
Reta, se inclinava para mim e me apertava contra a parede.
Mesmo reta, e mesmo sem parede para exercer a força contrária.
Tinha um presença que não sufocava, mas que, também, não tornava a existência dos outros mais fácil.
Deus, como era linda de morrer...
Deus, como eu já quis morrer por você...
Toda vez que me olhava e eu sentia meu coração inflar.
Minhas pernas se afastarem por mais outra inflamação.
Meu corpo todo inflamar.
Toda vez que descíamos a avenida e pescoços só faltavam quebrar pra te assistirem girar em volta do mundo.
Toda vez que, nua, se estirava pela cama.
E se retirava da cama.
E dizia que não mais, nunca mais.
Deus, como eu quase morria...
Somando todo o tempo que gastei te implorando por eternidade, antecipei a chegada dela.
Adeus.
A gente se vê.
Só levou parte das roupas e uns cinco livros.
A gente se vê por aí.
A gente se viu.
Com ou sem vontade.
Se viu.
Reviu.
Reviveu.
Difícil largar de mão.
Trocar os lençóis.
Da cama em que nos deitamos tantas vezes.
Em que deitou-se tantas vezes.
A maioria delas comigo.
Umas três vezes com três outros.
E dizem que o perdão é o que nos torna humano.
Pois eu cheguei até o limite do ser.
E ultrapassei.
Engraçado é que foi você quem desistiu.
Queremos coisas diferentes.
E serviu-se de um copo de whisky.
E serviu para embaralhar minha vida.
Não é você.
Não sou eu.
Não é um outro.
Nem uma outra.
É que as coisas se confundem.
Logo mais se perdem.
Nunca mais se encontram.
Achei que fosse mesmo doer pra sempre.
Agora eu sei que não.
Mas, ainda assim, continua doendo.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Mesclado.

Teus olhos atravessam oceanos. Transatlânticos. Transam comigo. Num transe tão secreto que sequer deixamos que perceba. Trançam comigo. Uns tais traços que contornam o teu rosto. Bem melhor do que fariam as pontas de meus dedos.

Meus dedos circulam tua falta de círculos. Das figuras, a menor. Das belas e esferas, um triângulo.

Estrangulando vou. Estragando. Estranhando. Tuas entranhas pressionadas contra meus ossos. E vice-versa. Meu corpo todo arisco. Desta vez, eu arrisco.

Eu te vejo como são vistos os anjos. Nuances. Embriagada lucidez. Se eu te ligar na madrugada, finja não saber que é amor.

O que é amor? Diga que enlouqueci. Deixe que toque, hora ou outra, desisto. Embora eu nunca tenha, verdadeiramente, te tocado - fisico-intelectual-acidental-mente. Embora meu desejo se satisfaça em saber, ao menos, que me saiba. Saiba que estou ali, do outro lado da linha, do outro lado da rua, espiando pela janela. Sendo tanto míope quanto corajoso.

Se teus olhos falassem, eles voariam - ainda não satisfeitos. Ainda não te satisfazendo, te encontro em todas as dimensões. Uma canção, um sonho, um sorriso. Tanto desconcerto que parece até certo.

Parece até que seremos sempre assim.
Oras, parece até que seremos para sempre.
Às vezes.


Segunda-feira, eu te avistei. Eu te avistei apontando na vista mais bela que há - toda aquela que possa ser alcançada pelos olhos. Eu te avisei. Eu te avisei que não seria brincadeira e Deus quis que não escutasse. Atravessou o viaduto, parou no sinaleiro, atravessou a avenida principal, o poste, o muro. Atravessou para um outro lado.


Nunca mais te vi. Entrando, já no fim da tarde, pela porta de vidro espelhado. Olhando para os próprios pés. O mundo sem saber se era narcisismo ou medo. O mundo, mas qual deles? Eu te esperava ali todos os dias. Eu te esperaria, ainda, ali todos os dias.


E se um dia eu não estiver mais aqui? Serão as rosas ainda flores? Serão os céus ainda azuis? E irá amanhecer, ainda, por todos os dias? Se um dia eu não estiver aqui, alguma coisa muda? Ou tudo continuará a falar? Eu continuarei escutando? Ou, para mim, diminuirão o volume?

Mas teu corpo ficava tão mais nítido coberto por lençóis brancos. Tão mais saliente quando deitados no escuro. Tão mais. Tão mais meu. Mais seu. Mais nosso. Mas não mais.


Teu corpo não ficava bem encaixotado. Empacotado. Embalado.
Para viagem?
Parem a viagem. Não pode ser assim.


Assobia, que é para ver se a dor vai embora...
Assobia, que é para ver se a dor vale à pena...

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Tango.

O clube faria cinquenta anos, desde sua inauguração, no próximo dia vinte e dois do mês que estava por vir. Há cinquenta anos encontrava-se naquela mesma esquina, sendo uma construção de madeira,de portas e janelas, desde aquele primeiro dia, amarelas, contrastando com a pintura externa vermelha. Durante os cinquenta anos, seu tamanho havia multiplicado aproximadamente três vezes e meio. Dando espaço para outros dois palcos, de capacidade menor do que o primeiro – e principal. E para uma sala reservada – nesta, havia também um palco que mal poderia ser chamado de palco por consistir, basicamente, em uma mesa de pernas serradas. O primeiro proprietário havia falecido quando seriam acesas trinta velas de aniversário do clube. Deixando o local para ser dividido entre milhares de brigas e seus dois filhos. Dois filhos de duas mulheres diferentes, o que trazia complicações ainda maiores na partilha de bens. Entre tapas e, apenas, tapas, o clube se manteve. “El Beso Tango”, uma placa feita à mão, numa esquina pouco movimentada do colorido Caminito. Com os anos alongou-se por quase todo o perímetro da rua. Tornando-se, claramente, o único motivo para que alguém acabasse parando por lá. Cinquenta anos antes de estarmos falando do vigésimo primeiro dia do mês que estaria por vir, o clube inaugurava com setenta cadeiras no primeiro salão, que estavam divididas em treze mesas. No palco principal, um promissor casal tremia em seus primeiros passos frente a um público maior do que o próprio espelho. Promissores, como casal, e como artistas. Dançarinos. Bailarinos. Flutuavam com nuvens sob os pés. Sem ser necessário o uso do ritmo para haver uma explicação, os dois se encontrariam ainda que não contornassem seus corpos. Os dois se encontraram e permaneceriam encontrando-se assim nos dias e anos seguintes. Além do gosto pela dança, os dois sentiam-se tentados por adoçar o café com doce de leite, por adoçar os dias com música, por adoçar as músicas com beijos. Se for preciso descrever o amor, melhor ficar calado para que ele não me escape. Percorrendo quarenta e cinco anos, dançaram todos os dias de mãos dadas, sem serem desgrudadas nem com a brutalidade das revoltas e recessões. Nos últimos cinco, destes quarenta, ela foi definhando até ficar apenas como a melodia da primeira música que dançaram juntos. O câncer e a dureza de mater o brilho num mundo em que tudo morre, se esvai. Embora tivessem prometido regressarem os dois para o mesmo berço, ele ficou a dançar com o vento. Já de cabelos muito mais do que grisalhos, foi perdendo um pouco do gosto pelas luzes do palco, e com a rigidez dos joelhos, foi deslocado para a cozinha. Lá ainda dava para escutar o piano, mesmo quando o barulho dos pratos causava humilhação e resmungos. O argumento era o de que havia um limite de idade para ser útil, e um dos irmãos defendia que o velhinho estivera ali desde o começo, então merecia algum resquício de misericórdia. E o outro dos irmãos atacava dizendo que velhos não servem para nada, não viu que ele quebrou mais dois pratos? Como se pratos valessem mais do que qualquer esperança. Era a lembrança dela saindo apressada do camarim que o mantinha ali. A lembrança dela sentada na bancada da cozinha fofocando e sendo enxotada por acender um cigarro. A lembrança dela rindo de um lado para o outro três minutos antes das portas abrirem. O clube faria cinquenta anos, desde sua inauguração, no próximo dia vinte e dois do mês que estava por vir. E a tradição, aparentemente, pedia por novidades. E o velhinho precisa ir embora, dizia com um talão de cheques na mão. E ele precisou ir. Olhando para trás, as janelas amarelas muito maiores em tamanho e quantidade. A rua muito melhor iluminada. A placa feita à mão intimidada pelo letreiro em neon. A figura dela apoiada ao poste, fumando um cigarro, com uma rosa no cabelo ainda preto. Ele precisou voltar para a casa de dois quartos que tinha o mesmo cheiro desde que, os dois, compraram juntos há quarenta anos atrás. Sentada à mesa, a lembrança dela. Junto à chaleira, a lembrança dela. Debruçada sobre a cama, apoiada na pia. Em todas as paredes, a lembrança dela. Duas vassouras de madeira e palha. A saudade dela. O compasso binário do tango. A lembrança dela. Binário remetendo a dois. A saudade dela. Duas vassouras bem podem acompanhar dois pés. Foi dançando com a ausência dela. Foi sobrevivendo na ausência dela.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Santa Coragem.

Já era tarde quanto vi girar a maçaneta, e abrir, silenciosamente, a porta. Teu cheiro veio antes da própria presença. Já era tarde quando abriu a porta e quebrou-me as pernas. Penso que seja possível a existência de um pacto. Um cruzamento de dados que seleciona algumas pessoas e as predispõem a isso, a estarem ligadas. Ainda que, por alguns momentos, pareça não haver nada para mantê-las assim. Nenhuma música, nenhum poeta, nada em comum. Nenhum hábito ou vício. É possível que exista este pacto e ele se torne perceptível à partir do segundo em que estas pessoas predestinadas – uma a outra – se encontram. Um estalo inaudível, no lado escuro da mente. Inaudível, mas também inegável. Que mexe e remexe tudo que acontece do lado de dentro – e, assim, as consequências. Já era tarde, porque nenhum de nós dois esperava. Dentro, tão dentro, de maneira a tornar-se inevitável – pela distância torná-lo inalcançável. Aconteceu. A cor dos olhares mudou. Dos nossos, quando direcionados apenas para nós. Para outros, o mundo permaneceu o mesmo. Girando, e girando. Sem pausas, sem fim. Todas as pessoas que quis, acabei amando. Assim meio amor atropelado pela pressa. Mas nem por isso menos amor. Nem por isso menos verdadeiro. Mas eis que existiu você. Naquele momento, em minha vida, em meu coração. E foi existindo, como se nascesse de novo a cada dia, como se aumentasse a cada vez que o ponteiro se deslocava. Fui amando amores sendo completamente seu. Sem poder, nem querer, fugir. Sem precisar escapar. Sem amarrras, era mesmo todo seu. E por partes – de tempo ou de corpo – de alguns outros. Amores tortos. E eu sentia tua falta sem nem saber tua textura. E, saiba que, eu pensava em ti sem nem saber quem eras. Além dos olhos, por detrás do sorriso - que não separava o teu envelhecimento da infância. Sorriso que percorria meus dias. Como um medalhão, numa corrente, escondido pela camisa. Uma fé que se tem, mas que se esconde. Um algo além, no qual se acredita. É preciso, sempre, acreditar. O gosto que atravessava teu nome. A tua marca favorita de perfume. A gente só se sabia como dois seres pertencentes a um mesmo mundo. Num mesmo centro urbano. Um mesmo caminho pelas manhãs. Duas presenças reservadas a presenciarem-se assim. Num desconcerto mesclado com timidez e encanto. Um estalo que se reconhece, mas não se compreende. Sem que pedíssemos fizeram-nos assim. E de alguma forma negamos. Fui livrando-me das tentações, mas era sempre a cor de nossos olhares que assentava meu corpo na cama. Independendo do corpo que punha-se a deitar comigo. Eu estava sempre a te trair, mas nunca estive contigo. Teu corpo colado ao meu era só saudade. Lembrança de um tempo que nunca existiu. Vontade de deixar claro que nos reconheceríamos até mesmo no escuro. Já era tarde quando eu quis desafiar o mundo para chegar até o seu – bem quando percebi que era nele que eu pertencia. Não fui, por muito tempo, letrado nisto de significado das coisas. De retirar camadas até enxergar o epicentro dos fenômenos – entende-se “sensações”. Com o tempo foi tornando-se cada vez mais difícil deslocar meu pensamento do pensar-em-ti. Viver-em-ti. Remoer-me-em-ti. Desejar-me-em-ti. E percebi que todo o resto, era só o resto. E que, agora, só me faltaria a coragem de te contar tudo isso.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Céu Estrelado.

Sexta-feira, beirando o nascer-do-sol, quando enfileirou os livros no comprimento do corredor, deitou-se no piso frio da cozinha, apontou o nariz para o céu e disse: faz tempo que não olho para o teto. Depois reclamou das marcas de bolor, e cantarolou com experiência uma das mais antigas de Bethânia - era uma mesma música que cantarolava sempre ao sentir-se encarceirada ou doída. Faz tempo que não olho para o alto, e tentou puxar-me pelos pêlos da perna, como se esperasse que, com aquele sutil toque, eu me abaixasse para escutá-la mais de perto. Não pude não estar inquieto. Nem pude deixar de passar claramente isto a ela. De um lado para o outro, a sola arrastando no chão. Um barulho repetitivo, sem pausas. Dava a mesma agonia de unhas indo e voltando na lousa. De repente senti-me tal como o moleque de treze anos que fui e precisei deixar para trás. De repente senti-me degradado pelos tempos que atravessam as fibras, dermes, virtudes, e logo mais passam. De repente senti-me acuado, como se aqueles treze anos e a lembrança deles fossem responsáveis por um tremor nos dedos na hora de apertar o gatilho. Sem palavras, ela estava a dizer-me que iria embora. Sem ouví-las, aquelas palavras foram perturbando quaisquer resquícios de sanidade. O jardim era florido, até transformar-se em deserto. Das formosas pétalas de rosa, até o ensanguentado cactus. Pouparia-me do drama, mas nunca de suas analogias e metáforas. Descarrilhou, ponteiros pararam de girar, os passarinhos têm que voar...entende? Os cachos dela espremidos entre sua cabeça e o cheiro de lavanda do produto para o piso. O filtro dos sonhos na porta da cozinha, balançando com a previsão de chuva, e eu lembrando de quando ela voltava da rua carregando uma sacola em cada dedo, trazendo um incenso para cada sentimento, uma cor para cada som, dizendo que essa parada de signos é séria mesma, o rapaz das velas me explicou. Um par de olhos desejosos de enxergar todo o mundo de uma vez só. Ou pedaço por pedaço apenas exigindo muita concentração e calma. Mas ver e absorver tudo. Sentir de tudo. A brisa, as formiguinhas fazendo cócegas nos pés, o cheiro da lama. Sexta-feira, o corredor infestado de títulos e mais títulos, clássicos contemporâneos, marginais, ensaios. Sentado à mesa eu podia ver Schopenhauer, Hagel, um livro-ilustrado sobre flores, outro sobre mapas. Estava tudo desconstruído entre os cômodos. Todas as fases dela. De quando quis ser confeiteira, folheando o caderno de receitas da falecida avó. De quando começou o curso de Filosofia e logo transferiu-se para Arquitetura, estou apaixonada pelo gótico, e me arrastou por inúmeras bibliotecas. Estava ali toda ela. Umas fileiras sobre outras, dando mais de um de mim de altura. Ventou forte e poucos resistiram naquela formação que mal pude compreender a lógica. Assim como era. Inesperadamente formada, vezes frágil e facilmente abatida. Ainda assim nunca perdia o mistério ou o encanto. Nunca deixarei-te sozinho, nunca sinta-se assim, se acaso eu estiver ou parecer longe, fora da cidade, sem celular, e à sua volta as coisas parecerem sufocantes, é só pressionar seus joelhos contra o peito, de alguma forma você saberá que eu estive ali, e ali ficarei para sempre, um ventinho frio, calmo. Abusava das doses de sobriedade, ternura. Não que não sobrasse-lhe tempo para convulsões existenciais. Tinham uma frequência quase que semanal. Remexia-se pelo escritório. Fechando e abrindo as janelas sem nunca saber se seria calor ou frio. Ou nada. A paz pertencia-lhe, e mesmo assim, incomodava-lhe. Naquela Sexta, fui dormir, depois de achar ter escalado e vencido todos os morros em volta dela. Com calma, abri caminho entre os livros, sem saber que, ao amanhecer, não estariam mais lá. E que, em seu lugar, estaria um pequenino envelope:

Que tuas estrelas nunca se desgrudem do céu.

Nunca mais a vi.
Se não nos sonhos.
É lá que eles moram, não é mesmo?
No céu...
Entre as estrelas então.
Foi onde a vi.
Nunca desgrudei-a de mim.
Como foi-me pedido.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Ao Gosto.

Na agonia de não fazer nada, de deixar que a ferida seque, que o sangue seque depois de escorrer e escorrer do couro cabeludo até a ponta dos pés. De deixar que o tempo me limpe. Ou te limpe. Ou nos limpe. Para parecermos, se não santos, ao menos, mais puros. Menos amargurados, azedos, cruéis. Para fingirmos que não fomos medíocres o bastante para depositarmos nossa fé e nossa força em algo que não tem pé, nem cabeça, nem muito menos final feliz. Dá raiva. Saber que é tudo assim. Que tudo sempre acaba assim. Que ela segurou minha mão, depois de segurar a sua, antes dele segurar a dela e, ao mesmo tempo, a minha, e que todos ficamos girando, pulando, numa ciranda sem fim. Onde tudo vai e volta. Ou então se disfarça e depois aparece com outro nome. Estava tão seco que as lágrimas secaram antes de saírem dos olhos. E era tudo dourado. Às vezes parecia estar pegando fogo. Depois era branco. Depois era prata. Depois era cinza. E não haviam mais águas nos lagos. Era quando as pálpebras se deitavam independentes do resto. Abri uma garrafa de vinho, sentei-me na sala, as costas bem apoiadas na parede. O piso estava bem frio para dias de Agosto. Gole por gole eu fui reconstruir meu passado - acreditando ser possível não deixar passar nenhum cílio ao rememorar anos e anos. Primeiro o êxtase, depois a decepção. Decepção no sentido de saber que as coisas sempre percorrem a mesma linha. Só mudam as pedras. Que pedras? Foda-se, uma forma de demarcar do caminho. Entrelaçando forte os dedos e dizendo: por lá voltaremos. E não voltamos mais. Só afirmamos a consciência do retorno para dar segurança de que, se algo, qualquer coisa, der errado, saberemos por onde voltar para fazer tudo certo de novo. A gente se esquece dessa possibilidade de segunda terceira quarta quinta infinitas chances. É como sair para um mergulho. Ir conhecer as cachoeiras. Estrada de terra no calor de Domingo. Tão lindo, tão sol, tão belo, e caímos. Desperdiçamos os anos, estouramos os limites, riscamos os dias. No fim - quando há um - não há mais nada. Não há nada de romântico no amor. O romance está na solidão, e nas maneiras que buscamos para livrar-nos dela. A verdade é que só se é livre quando se torna possível diferenciar as coisas. Amor de solidão. Mágoa de aflição. Tontura de ideologia. Quando eu te conheci pensei que tinha os olhos mais tristes que já tinha visto. Mesmo eles sendo grandes e redondos, era como olhar para um cômodo sem quartos, algo que não quisesse ter nada que pudesse relembrar o passado. É como se carregasse um fardo que, de tão grande, acabasse fazendo o esforço ao contrário. Eram uns anões que te suspendiam e faziam com que você levitasse, para que não estivesse com os pés no chão, mas que para também não ficasse tão longe. Haviam dias em que você acordava parecendo que aceitaria viver tudo de novo, mas essa impressão logo passava. Nunca pude afirmar com certeza se seu nome era realmente seu nome. Se suas palavras foram sentimentos ou somente palavras. Não posso negar, me enlouquecia vê-la sempre desnorteada daquele jeito. Mesmo que eu amasse, sem exceção, cada um dos seus poros. Quando as coisas começavam a parecer passado, era quando você ia escapando pelas beiradas. Um jogador que simula um desmaio para sair, sem aparente culpa, do campo. Não escutei fechar a porta. Houve um momento em que sentei-me na varanda, tirei os sapatos, depois as meias, escostei os pés no chão gelado: esvaziei, como uma bexiga depois de muitas horas exposta à luz. Não importam quantas horas, nem o número de dias. Não me importa se demasiado tarde ou quase cedo. Se viram nas cartas ou se foi só um aperto no peito. Há algo que incomoda, mas que ninguém vê: é a incerteza. Com a certeza de tudo ou não. Carregados de mágoa, malas ou de nada. Nós vamos atravessar Agosto.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Dentro.

Não há nada nela, nada para dintinguí-la dos protozoários, dos chipanzés, dos outros seres-humanos, dos porcos. Não há nada nela que me alegre - ou até me entristeça - de forma única. Nada de brilhante, que me faça subir pelas paredes ou implorar por mais um toque. Instintivamente, insisto. Como vivem a dizer que há sempre uma luz no fim do túnel, procuro e procuro pelos buracos - até então sem saída - dela. Eu me canso. São nesses momentos em que a vejo como um parasita. Um intruso. Não abri a porta, mas entrou, se alojou e vive a tentar tomar conta de mim. Como se poetas pudessem ser domados. Não que eu me considere um, é claro. Seria por demais presunçoso. Mas eu tenho a certeza de que não sou um cavalo, nem um mico. Quero dizer que me rebelo, e não é um ser medíocre de pouco mais de um metro e meio que fará com que eu me finja de morto e lamba seus pés nos fins de tarde. Primeiro que seus dedos são feios, meio tortos, nada simétricos. Suas unhas também não são das mais bens cuidadas, e a verdade é que há um mal cheiro que fica impregnado bem distante. Segundo que talvez seus pés sejam lindos, ou até perfeitos, mas o que eu quero é achar dispariedades, inconsistências, para que eu possa fugir sem deixar um telefone de contato, ou endereço. É que eu cresci achando que todo sentimento deveria ser o maior do mundo. E agora estou frente e frente com uma toalha de mesa florida e contas de água e luz. Não há paixão ou euforia que resista à realidade. É que todo beijo deveria arrancar suspiros e agora durmo abraçado com um corpo que nunca imaginei, ou desejei - sem antes tê-lo. E ainda dizem que existem pessoas que não são cruéis. Mas é que se não fosse a necessidade humana, eu estaria muito bem sem ela. Todos estaríamos muito bem sozinhos. Talvez uma foda ou outra para descarregar um pouco do peso que, hoje, parece ser impossível suportar com um só par de braços. Se eu pudesse ter previsto que a vida, querendo ou não, seria sempre assim tão medíocre, eu não teria alimentado a espera por amores descontrolados e agressivos. E hoje eu aceitaria dormir só com um bicho de pelúcia ou uma garrafa de rum. A gente envelhece e vai percebendo que passou todo o tempo esperando que a vida começasse. Passou todo e tanto tempo que sequer percebeu quando ela começou. Mas isso se dá, também, porque a vida não se difere muito das outras coisas. É um mingau de aveia, sem gosto, nem cor. Uma poça de lama, que não anima, nem reflete. Uma pedrinha tão pequena no chão que ninguém nem tem a vontade de chutar. Não há nada nela que me dê força. Ou que enfraqueça meus joelhos. Nada nela que me faça ir adiante. Ou querer voltar no tempo. Nada nela que me desperte. Ou que me deixe no estado constante de quem, sábio, sonha acordado. Não há nada meu nela. Mas não consigo, também, tirá-la de mim.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Dor É Isso.

Tudo estava na forma como ela me segurava. Não na forma como ela me segurava ao mundo – disso ela sequer sabia. Desinteressada em ter-me sempre por perto, ou em ter-me, simplesmente. Tudo estava na forma como ela sorria. Pela boca, e pelos olhos, sorria de corpo inteiro. A forma como me segurava, bem, refiro-me às suas mãos – com palmas estranhamente vermelhas, apesar do resto do corpo pecaminosamente moreno -, e aos seus dedos. Como eles se espremiam contra mim, e traziam-na para perto, com suas unhas pequeninas e descascadas de esmalte preto. A forma como dirigia, sem nem olhar para frente ou para os lados, com os vidros todos abertos, os limites de velocidade ignorados, o som no volume máximo. Gostava de fado, e enquanto escutava, tentava emitir os mesmos sons das palavras cantadas, e enquanto tentava me escutar, e prestar atenção, ria. Como ria...ria tão fácil. Se eu já não fosse feliz, ela poderia ter me transformado. Para atingir a doçura das coisas pequenas, e simples. Se eu, em um maço de folhas, fosse escrever minhas memórias, com certeza a colocaria entre elas. Um número não muito grande de páginas. Mas seriam todas lilás, com uma macieira vistosa no canto superior, e maçãs caídas entre as palavras, e raízes atravessando as folhas. Se fui invadido? Deus queira nunca mais reabrir meus poros. Pelo medo de que o cheiro dela me escape. Uma vez, eu de pé lavando a louça, ela surgiu para trás e se apertou tanto contra mim que senti sair meu estômago. Murmurrou algo que não quis repetir. Interpretei como um daqueles momento em quê o que se quer dizer é algo tão denso, tão grande, que acabamos perdendo o sentido. Um impulso. Você vê? Você entende? Algo ali me disse que era amor, ou caminhava para isso. Que não levaríamos muito tempo até deitarmos nossos temores um no outro – amor é tratamento para o medo e, ao mesmo tempo, agravante. Tínhamos uma ligação muito particular. Muito nossa. Ela só me procurava quando me queria, precisava. Eu só a procurava o tempo todo, todo dia. Mesmo não acreditando em nada disso, eu fingia que sim, para ver se a convencia do mesmo. Entrega? Isso é bem coisa de idiotas. E ela ria mesmo depois de dizer coisas como essa. Ignorava minha esperança naquilo. Dizia que sim, acreditava no amor, mas como algo pleno, que nunca pode ser encarceirado ou domado, algo independente que só funciona flutuando numa outra esfera qualquer. Depois de um tempo eu comecei a achar que ela usava demais das drogas todas. Aliás, ela gostava de tomar até o último gole, nunca deixar nem um grão, de puxar todos os fios. Era engraçada a forma como eu a cercava de todos os lados e ela, às vezes, ria, às vezes, fugia. Uma vez sumiu por quase um mês. Ela sabia como me segurar só apontando o dedo para o céu. Dentre as coisas mais gostosas, estavam as marcas de batom que ficavam no meu pescoço toda vez que nos encontrávamos. Os recadinhos que ela escondia pela minha casa. Os discos que saíamos para comprar juntos – geralmente nas Quartas, no fim de tarde, quando acontecia uma apresentação de blues no centro da cidade. E a mania de encaixar um café a todos os nossos encontros. Precisava ser quentinho. Café de garrafa. Senão não valia. Teve uma vez de sairmos correndo pela chuva atrás de algum lugar que satisfizesse esse nosso capricho. Chovia tanto que a água subiu até os joelhos. Lembro de pegá-la à força e colocá-la nas costas, não parou de se debater por um minuto, até que eu a soltasse. Reclamava tanto do couro molhado do estúpido sapato novo, que eu decidi pelo extremismo. Era tudo muito estúpido, para ser sincero, inclusive, ainda guardar estas lembranças, também é algo assim. Acho que as coisas se vão para ensinar um pouco mais sobre a saudade. A nostalgia. O passar dos anos. A saudade é a moeda que dita o valor de cada uma das coisas na vida de alguém. A importância. Tem até saudade de algo presente. Às vezes a gente está entre as pernas de uma pessoa e tudo que a gente mais deseja é estar entre os braços de uma outra. A gente sente falta de um amor, mesmo o tendo encontrado de novo. É que as formas mudam e muita coisa encontra dificuldade em se adaptar. Tudo está na forma como nos conformamos com as coisas. Sei lá, tudo estava na forma como ela se desprendia de todas as outras coisas que eu já havia visto no mundo. Uma pinta sobre os lábios, o rosto formando risquinhos toda vez que ela sorria – e cada um daqueles mil risquinhos sendo um único -, o esmalte preto descascado, os sapatos novos nos pés pequenos, uma mão no volante e a outra para fora da janela. Tudo estava na forma como ela dava graça a tudo. Se eu tivesse que reescrever nossa história – apesar de odiar essa expressão, “nossa história” para uma história que, no final, será igual a de todo mundo -, eu a pontuaria da mesma forma. Cheia de exclamações, apressada, sem vírgulas, como se tudo precisasse ser dito em um fôlego só. Quando ela pulava de cabeça na piscina à noite, e meu coração apertava com o medo de que errasse na força ou pegasse muito frio. Quando, pensando nela, meu peito ainda dói e as mãos ainda suam. Quando, relembrando das coisas, eu sei que nada foi ruim, mas que foi tudo necessário. Quando ela beijava meus lábios e tinha gosto de outros. Quando eu beijei outros lábios e não eram mais os dela. Quando eu soube que arriscaria tudo. Hoje eu sei que arriscaria de novo. Tudo está na forma como ela me empurrou para o mundo. Tirou a rodinha e me obrigou a descer a ladeira sozinho. Na forma como não durou, mas pareceu eterno. Tudo está na forma como ela sequer imagina. E, sem imaginar, liga às duas da madrugada pensando que está tudo bem me amar um pouco para me lembrar de como era me sentir assim. Tudo está na forma como ela não liga para nada, mas, mesmo assim, ainda tem gravado o meu número.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

123.

Atravessou a sala de estar, empurrou a porta com o dedão do pé direito e depois foi passando a mão pela mesa que ocupa quase o próximo cômodo inteiro, mesmo que ninguém saiba o que ainda faz lá. É uma mesa gigante, sem motivos para sê-la. Não é sala de jantar, nem de jogos. É mais ignorada do qualquer outra qualidade. Nem feia, nem bonita. Empoeirada, talvez. Talvez meio que com certeza. E ao passar de um cômodo para o outro, e ao passar os finos dedos pelo verniz envelhecido, um desenho fica ali formado. E permanecerá sendo aquele mesmo desenho por dias à fio. Uns riscos tão impressionantes de deixar qualquer Van Gogh espirrando por horas. Enfim, ainda que lentamente, em um minuto já estava entrando no quarto. Bem, eu estava sentado na ponta da cama, amarrando meus cadarços, quando ela veio por trás, puxando-me pela gola da camisa até inclinar-se sobre mim - vindo de trás para frente, como uma onda a afogar-me de surpresa. Minha respiração realmente retardou quando meu nariz foi apertado entre seus seios. Ainda acredito quando dizem que o destino é responsável por tudo, embora, às vezes, ele pareça ridiculamente previsível - e por isso imponente, contornável. Se antes eu não soubesse de nada, ali eu já saberia de tudo. Seus ombros sempre foram mais largos do que qualquer outra parte de seu corpo. Funcionavam meio como uma característica a ser, instintivamente, encarada como um alerta. Melhor, um aviso. De que haviam forças mesmo abaixo de camadas tão finas de carne. Fosse frio ou fosse calor, seus pêlos sempre se eriçavam, como antenas que captassem todo e qualquer movimento no mundo. O que eu sei é que os ombros foram herdados geneticamente. Mas nada disso importa por hora. Após ter me engolido como um onda, ficou a olhar-me de cabeça para baixo, com seus cabelos negros fazendo cócegas em minhas coxas. Por um tempo, eu não pude fazer nada além de observá-la naquela intenção de, talvez, alimentar-se de mim. Eu estava sendo englobado por sua pele quente. Disfarçadamente, ri da estranha sensação de estar sendo fagocitado. É assim que o amor se apresenta quando despido de etiquetas e bons costumes? Uma cadeia alimentar na qual, como as outras, apenas os fortes sobrevivem? De qualquer forma, é bom saber que a vida é, imutavelmente, desenhada em círculos. Eu a havia conhecido há dois ou três meses. Desde o primeiro instante nada fora além de uma boa foda. Não boa. Digo, boa sim. Mas mais que isso, havia um encaixe. Não desses que se compra em alguma esquina. Enfim, o que mais importa, é que o importante nunca parece suficiente posto em palavras. Foi a primeira vez em que ela me olhou e eu pude dizer que não era do meu desejo aqueles olhos olhando para outros que não os meus. Eu pude, mas não disse. Do quê adiantam as palavras quando não existem cotonetes longos o suficiente para limpar os sentimentos emaranhados bem no fundo? Eu não disse, mesmo assim, ela esperou. Ela soube, adivinhou. É como se não houvesse mais tempo. E o vento atravessa os pequenos furos da cortina. Os mesmos olhos nunca terão a mesma cor do primeiro instante. Os lábios não terão o mesmo gosto do primeiro toque. É mais fácil esquecer do que se render. Há dois ou três meses ela sentava-se sobre meu colo e eu só conseguia pensar em como ela ficava melhor de short do que de calças. Pela primeira vez eu consegui reparar em como seus lábios ficavam mais vermelhos e vivos ao serem pressionados por meus dedos. Continuou a me olhar. Foi se ajeitando como se nós dois juntos fôssemos formar um caracol. Eu sendo a casca dela. A concha na qual encontraria abrigo. Bastam as comparações quando, enfim, percebe-se que não há nada a ser comparado com um destes momentos. Agora, com a cabeça repousando em meu colo, suas mãos esquentando as minhas. Agora, sentindo-me submerso. Mais do que sete palmos abaixo da terra. Ao mesmo tempo, voando por dimensões até então desconhecidas. Existem todas as oposições do amor, que sentam-no ao balanço e o levam pra lá, e o trazem pra cá. Na dura repetição de achar que é único, depois achar que é igual a todos, de achar que é eterno, e depois descobrir que eternidade é a primeira coisa que vai embora, e que depois volta para recolher as ervas-daninhas e principalmente os frutos. O que importa é que há um momento - com sorte, vários deles - em que tudo parece valer à pena. Jogar tudo pela janela, dar descarga, colocar tudo numa mochila e ir vender picolé na praia. Há um momento que valerá mais do que todos os outros. Um no qual respira-se só, mas inspira-se em tudo. Ela sorriu puxando minha nuca com suas mãos úmidas de nervoso - sempre suava quando percebia que o buraco era mais fundo do que nossos olhos podiam ver. E foi assim que seguiu invadindo cada fibra, foi penetrando cada poro. Houve, para mim, esta forma de me render achando estar fugindo de tudo - principalmente disso. Saiu do quarto. Mais uma vez, passou a ponta dos dedos pela mesa, aumentando a dimensão do desenho. Entrou para a sala de estar, onde sua sombra se perdeu pela pouca luz do cômodo. Escutei-a puxando uma cadeira. Logo depois, acendendo um cigarro. Da cozinha veio o barulho da chaleira. Alguma coisa abraçou-me de longe. Desamarrei os cadarços. Mesmo que o para sempre acabe, deixe que ele, ao menos, comece.