segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Tango.

O clube faria cinquenta anos, desde sua inauguração, no próximo dia vinte e dois do mês que estava por vir. Há cinquenta anos encontrava-se naquela mesma esquina, sendo uma construção de madeira,de portas e janelas, desde aquele primeiro dia, amarelas, contrastando com a pintura externa vermelha. Durante os cinquenta anos, seu tamanho havia multiplicado aproximadamente três vezes e meio. Dando espaço para outros dois palcos, de capacidade menor do que o primeiro – e principal. E para uma sala reservada – nesta, havia também um palco que mal poderia ser chamado de palco por consistir, basicamente, em uma mesa de pernas serradas. O primeiro proprietário havia falecido quando seriam acesas trinta velas de aniversário do clube. Deixando o local para ser dividido entre milhares de brigas e seus dois filhos. Dois filhos de duas mulheres diferentes, o que trazia complicações ainda maiores na partilha de bens. Entre tapas e, apenas, tapas, o clube se manteve. “El Beso Tango”, uma placa feita à mão, numa esquina pouco movimentada do colorido Caminito. Com os anos alongou-se por quase todo o perímetro da rua. Tornando-se, claramente, o único motivo para que alguém acabasse parando por lá. Cinquenta anos antes de estarmos falando do vigésimo primeiro dia do mês que estaria por vir, o clube inaugurava com setenta cadeiras no primeiro salão, que estavam divididas em treze mesas. No palco principal, um promissor casal tremia em seus primeiros passos frente a um público maior do que o próprio espelho. Promissores, como casal, e como artistas. Dançarinos. Bailarinos. Flutuavam com nuvens sob os pés. Sem ser necessário o uso do ritmo para haver uma explicação, os dois se encontrariam ainda que não contornassem seus corpos. Os dois se encontraram e permaneceriam encontrando-se assim nos dias e anos seguintes. Além do gosto pela dança, os dois sentiam-se tentados por adoçar o café com doce de leite, por adoçar os dias com música, por adoçar as músicas com beijos. Se for preciso descrever o amor, melhor ficar calado para que ele não me escape. Percorrendo quarenta e cinco anos, dançaram todos os dias de mãos dadas, sem serem desgrudadas nem com a brutalidade das revoltas e recessões. Nos últimos cinco, destes quarenta, ela foi definhando até ficar apenas como a melodia da primeira música que dançaram juntos. O câncer e a dureza de mater o brilho num mundo em que tudo morre, se esvai. Embora tivessem prometido regressarem os dois para o mesmo berço, ele ficou a dançar com o vento. Já de cabelos muito mais do que grisalhos, foi perdendo um pouco do gosto pelas luzes do palco, e com a rigidez dos joelhos, foi deslocado para a cozinha. Lá ainda dava para escutar o piano, mesmo quando o barulho dos pratos causava humilhação e resmungos. O argumento era o de que havia um limite de idade para ser útil, e um dos irmãos defendia que o velhinho estivera ali desde o começo, então merecia algum resquício de misericórdia. E o outro dos irmãos atacava dizendo que velhos não servem para nada, não viu que ele quebrou mais dois pratos? Como se pratos valessem mais do que qualquer esperança. Era a lembrança dela saindo apressada do camarim que o mantinha ali. A lembrança dela sentada na bancada da cozinha fofocando e sendo enxotada por acender um cigarro. A lembrança dela rindo de um lado para o outro três minutos antes das portas abrirem. O clube faria cinquenta anos, desde sua inauguração, no próximo dia vinte e dois do mês que estava por vir. E a tradição, aparentemente, pedia por novidades. E o velhinho precisa ir embora, dizia com um talão de cheques na mão. E ele precisou ir. Olhando para trás, as janelas amarelas muito maiores em tamanho e quantidade. A rua muito melhor iluminada. A placa feita à mão intimidada pelo letreiro em neon. A figura dela apoiada ao poste, fumando um cigarro, com uma rosa no cabelo ainda preto. Ele precisou voltar para a casa de dois quartos que tinha o mesmo cheiro desde que, os dois, compraram juntos há quarenta anos atrás. Sentada à mesa, a lembrança dela. Junto à chaleira, a lembrança dela. Debruçada sobre a cama, apoiada na pia. Em todas as paredes, a lembrança dela. Duas vassouras de madeira e palha. A saudade dela. O compasso binário do tango. A lembrança dela. Binário remetendo a dois. A saudade dela. Duas vassouras bem podem acompanhar dois pés. Foi dançando com a ausência dela. Foi sobrevivendo na ausência dela.

2 comentários:

Danubya Medeiros. disse...

Nossa quanto talento você tem, é cada texto um melhor que o outro.Dá prazer ler o que escreves.
Esse texto então, maravilhoso!!

Julianna Motter disse...

Muito, mas muito, obrigada!