segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Passarinho.

Chuva: existia a chuva, o silêncio e o tempo. Chuvasilênciotempo: tudo aquilo que vibra. O coração lateja - quase falha. Eu forçaria um encontro, um oi-tudo-bem?-como-vai-a-vida? Pra que você me devolvesse a pergunta, e eu ficasse calado, meio sem-resposta, meio com-a-resposta-na-ponta-da-língua. E me segurar, e me soltar - soltar os demônios amargurados, na verdade -, e dizer: que vida? que vida? que vida eu poderia ter tido depois daquele dia em que você foi embora? Dizer isso e mais alguma outra coisa, e esperar que você me olhe coberto de pena e raiva. E eu sinta culpa. Culpa, muita culpa. E dor, mas não tanta. Culpa por não ter fodido contigo mais um pouco, de não ter arrancado seus olhos, de ter perfurado mais fundo o seu peito. E eu acabar sentindo um arrependimento, e pensar em como poderia ter enfiado sua cabeça cada vez mais nesse buraco. Nesse buraco que você mesmo criou. E quis me colocar lá dentro: tentou, como tentou. Tendo firmado bem esse sorriso cínico ao rosto: todo o dinheiro do mundo para acertar com um tapa sua cara. Com um tapa pesado - tal qual o meu ódio-amor-ferido -, que te deixasse tão vermelho que, em cada um dos seus poros, eu pudesse enxergar as gotículas de sangue querendo escapar. O que eu mais quero é te ver sofrer! Quero seus joelhos arrastando no asfalto, seus dedos moídos com a cana: seu brilho, quero que ele acabe. Acabe e forme chuva: vire lama. Quero que você venha aqui, sabendo de tudo. Serias perfeito se fosses surdo. Pode escutar, pode brigar, pode gritar, pode me querer. Porque eu sei que ainda quer. Porque nada muda. Até agora nada mudou. E se fosse por respeito, já teríamos acabado com tudo. Eu teria acabado com sua vida. Não que você tenha acabado com a minha. O que eu falaria no nosso encontro é apenas exagero. Eu mais abriria meus braços, e te compararia às lembranças. Pensaria como-estamos-envelhecidos, e meu corpo se abriria de repulsa ou desejo. Tudo depende do que depende da gente, e veja só, meu doce, como estamos crescidos!
- E você tem barba.
- E você usa salto.
- E você se acaba.
- E o maior risco que você corre é falando alto.
- Na biblioteca.
- No cinema.
- Em tudo me lembro.
- Em tudo te vejo.
- Sofrimento é eterno.
- Que seja eterno-até-que-cure.
- Eu poderia esperar mais uns mil anos.
- Eu não pude ficar por mais dez segundos.
- Perdão.
- Já é tão tarde.
Mesmo fazendo sol, existirá a chuva, o silêncio e o tempo. Há tanto tempo nos demos tempo.
- Vê se volta, meu doce.
- Quando na verdade eu nunca fui.
- Perdão por ter te mantido preso.
- Enjaulado.
- Dizem que isso é amor.
- Quando amamamos voamos como pássaros.
- E o tempo voa que nem sente.
- Sinto muito.
- Sinto mais.
- Devo ir.
- Perdão.
Leve. Estou leve. Leve embora. Embora doa. Doa um pouco de si, que eu já te dei tudo de mim.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Vontades.

Quando a gente se encontrou...quando a gente se encontrou? É que às vezes confundo nossa história com algum de meus pesadelos - ambos me atormetam, e esfriam meu suor. Acho que era Dezembro, Dezembro de mil novecentos e...talvez nos anos dois mil, durante a virada, sob os fogos e gotas de champagne. Ou talvez em Fevereiro, de algum ano entre mil novecentos e dois mil, durante o Carnaval, pulando no asfalto quente, jogando os braços para o alto e cantando qualquer coisa que não fizesse sentido quando fora dali. Eu e você, na flor da idade, peles morenas, abertos à tudo que nos desse vontade, correndo atrás do trio - naquela época já haviam os trios? -, enfim, alucinando, pirando, brisando, com as cores - verde-planta, branco-folha, amarelo-areia, azul-céu, vermelho-paixão. Acho que fui eu quem se aproximou primeiro. Não sei se derrubei cerveja em você ou se te disse que seus olhos pareciam um par de jabuticabas. De nenhuma das duas abordagens me orgulho, independente de qual eu tenha escolhido. Eu devia mesmo era ter te pego pelo braço, aproximado bem meu rosto ao seu, e ter sussurrado que we'll always have Paris. Enfim, apesar das falhas - e frágeis - lembranças, eu sei que, quando a gente se encontrou...a gente se encontrou? Porque, às vezes, mais me parece que seguíamos duas linhas paralelas, e aí não é encontro. Se estávamos um de cada lado, no máximo acenando, não é encontro, não, não é. Mas, às vezes, eu insisto em dizer que foi: que foi, foi, foi sim, claro que foi, mas foi o quê? Foi bom, foi doce, foi eterno enquanto durou, foi embora, adeus. Quando a gente se encontrou, esse mais-ou-menos-desencontro, encontro, vice-versa, ao avesso, arriba, abajo, al centro e adentro, embalados no calor, el cariño que te tengo, yo no lo puedo negar, meio longe dali, mas não tanto assim. Talvez no México, ou mesmo em Cuba, ou numa outra dimensão. Aconteceu de nossos olhos se cruzarem, e algum tempo depois eu ir resgatando o exato momento na memória. Você estava vestido de preto, tão letal e antipático. Nessa memória, eu pareço ainda menor do que realmente sou, enquanto você parece maior e mais robusto. Mais homem e mais misterioso. Mais sonho do que pesadelo. Mais desejo do que repulsa. Você, nessa memória, é mais o passado do que isso que se tornará agora. Aconteceu de rolar aquele feeling, no qual não se sabe se são os olhos ou as bocas que realmente se encaram, que não se percebe se o calor vem de fora ou do fundo. Aconteceu de alguns minutos depois, suas mãos estarem subindo por minhas coxas, e meus dedos estarem presos no seu cabelo, e de fazermos do amor uma obra violenta e insaciável: arrancando pedaços, todos eles, todos aqueles pontiagudos ou afiados. Meio que nos sentimos ameaçados, e tentamos construir muros para nossos castelos de areia. O vento vinha. De se adivinhar: o vento sempre vem. Não precisávamos ter nos machucado tanto, nem moído - e remoído - tantos sonhos e, depois, tantas mágoas. Eu sempre tive uma puta vontade de te colocar no colo e te dizer que assopraria toda vez que eu te ardesse. Mas você sempre tão forte, tão firme, com seus passos largos que mal desgrudavam do chão. Eu sempre tive uma puta vontade de te ver caindo e batendo os dentes no meio-fio. Não para que doesse, ou sangrasse. Mas para que você percebesse - e admitisse - que você também era frágil, e talvez mais - tão mais - que eu. Quando a gente se encontrou, e essa parte vem com uma clareza até juvenil - lembranças coloridas e açúcaradas dos primeiros amores -, você era dotado de um charme absurdo, de um calor absurdo, de um sabor absurdo: você era quase irresistível. Eu fiz planos, planos épicos, homéricos, transcendentais, carnais, inconscientes, bobos. Contruí mansões e casas de praia - que destruí quinze segundos depois por não gostar da cor das maçanetas -, viagens exóticas, eróticas e, às vezes, até espirituais. Sabe como é, você sempre pediu para que eu fosse menos cético. Eu nunca precisei tocar para saber que nosso amor existia. E ele era tão lindo - quando desligado da gente, voando solto por aí -, tão liberto dessas correntes racionais, desses ismos e esmos: tão lindo. Quando eu penso nele, eu penso na gente, eu penso em você e, principalmente, em mim. Quando a gente se encontrou, eu me perdi. Quando a gente se perdeu, foi quando eu me encontrei de verdade. Eu sequer sei dizer se as coisas que senti por ti foram humanas, mas foram elas que me trouxeram essa consciência de vida e dualidade. Apertou, rasgou, doeu. Ainda dói. Continuará: só uma previsão. Mas eis que disso surgem as graças: não nego, ainda te procuro. Procuro você, que nem mesmo em você encontro. Acontece de acontecerem as mudanças. Daqui à pouco a dor vira borrão, e nós nos cruzaremos por aí sem que aconteça sequer um reconhecimento. Eu sei que vou te amar, além de Vinicius e Tom, e você foi a única coisa certa em tudo que eu fiz. Essas coisas a gente vai dizendo, falando como coisa-qualquer, que é para ver se entram de vez na cabeça. Eu tenho uma vontade de te dizer pra te trazer de volta. Aquele mesmo de quando a gente se encontrou. E que, por hora, ainda não me foge da memória, feito nostalgia bandida, mas que perdura com gosto de saudade e ilusão. Eu tenho uma vontade de dar meia volta e abraçar esse você que não é mais o mesmo, só porque ainda carrega alguns traços, e ter algo entre os braços, fingindo que é menor esse vazio. Eu tenho uma vontade de responder quando me chama, daquele mesmo jeito que te respondia antes, derretendo. Só que, hoje, caio aos pedaços. Eu tenho vontade de pedir que, para sempre, me procure. Pois, quem sabe? Eu não. E ao mesmo tempo, vontade de te dizer: fica longe e se segura, tá? Pra não me derrubar.
De novo.

domingo, 21 de novembro de 2010

Tentação nº 1.

I. Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço.
Lado a lado, você e ela. Uma, mulher inteira. Outra, magrela. Uma, mais séria. Outra, mais desengonçada. Uma, sentada aos pés da escada. Outra, de pé no meio da estrada. Uma, de pernas cruzadas. Outra, com os braços levantados. Uma, abrindo os meus botões. Outra, lambendo meu pescoço. Uma e outra, presentes em minha vida. (Vida: espaço de tempo delimitado pelo nascimento e pela morte; série de acontecimentos corriqueiros; tempos de depressão aguda). A primeira, conheci por acaso - a segunda também -, na última tarde ensolarada de Dezembro, em Copacabana, nos preparativos para os fogos e porres, catando conchas - ou seriam moedas? - na beira do mar. A segunda, também em Dezembro, em uma das primeiras tardes nubladas, eu jurando ser Bon Jovi, ela esperando que alguém virasse e thank you for loving me, na frente da Fontana di Trevi, jogando moedas - ou seriam conchas? - para trás.
II. Dois corpos não ocupam o mesmo tempo no espaço.
Ano por ano, você e ela. Você, anos oitenta. Ela, novo milênio. Você, a década perdida. Ela, o fim do mundo. Você, meio art déco, meio new wave. Ela, meio pode tudo, meio tudo pode. Eu e você, tomando Coca-Cola, escutando The Smiths, what difference does it make? E não fazíamos diferença alguma. A não ser que fosse um para o outro. E aí fazíamos diferença e tudo mais. Eu e ela, tomando Coca-Cola com vodka, escutando uns barulhos meio siderais, animais, ilegais e, de repente, tudo errado, tudo certo, tudo jóia, tudo agora, e nada mais.
III. Dois corpos não ocupam o mesmo espaço no tempo.
Tempo por tempo, ela e você. Ela, na cama feita de ipê. Você, na mesa do escritório. Ela, debaixo de chuva. Você, debaixo do viaduto. Ela, Outono/Inverno. Você, Primavera/Verão. E sol e chuva. E casamento e fuga. E amor florido. E amor brotando. E amor maduro. E amor secando.
IV. Dois corpos não ocupam o mesmo tempo no mesmo espaço.
Corpo a corpo, você e ela. Uma, ainda doía. Outra, já queria. Uma, não se esquecia. Outra, queria ser lembrada. Uma, ardia. Outra, queimava. Não cabia. Não contava. Não queria. Não entrava. Não vivia. Não enfrentava. Esbarravam, encostavam, confundiam, se safavam. Perna de uma, sorriso de outra, beijo de uma, gozo de outra. Chamava por uma, recebia a outra. Falava da outra, lembrava de uma. Trocando nomes e lençóis. E poemas em guardanapos. E juras de amor. E destinatários.
V. Um corpo não substitui o outro.
Outro a outro, eu. As pessoas têm essa inveja. As pessoas têm tanta inveja dessa pessoa que eu nem escolhi ser. Eu não sei se te cubro ou se me escondo. Não sei se eu te jogo ou se eu pulo. Eu não sei à quem falo. Não sei à quem me dirijo. Acho que perdi a direção, caí do muro. Acho que caí na loucura. Acho que caí na tentação. Acho que não sei o que falo, mas resisto e não me calo. A gente quer tudo. Eu queria um dia encontrar alguém assim, completamente perdido. Não sei de quem seria a perda, se minha ou do outro. Você e ela, e seus tempos que se encostaram pela vida. E seus corpos que se encostaram através do meu. O escritório, ao lado do quarto. No quarto, a cama. Debaixo do viaduto estaríamos protegidos da chuva. Lua-de-Mel-fora-de-época em Roma, comemorando vinte anos desde que havíamos nos conhecido. Vinte anos mais novos na praia. Uma vinte-anos-mais-nova de saia. A gente confunde e se entrega. A gente se entrega e se confunde. A gente não se entrega de verdade. A gente é mais gente quando com mais um pouco - de gente. A gente não precisa falar a verdade. A gente não precisa falar, na verdade. A gente se calou um pouco. A gente se calou por pouco. Por pouco a gente não se perde. Por pouco a gente se encontrou. Há tanto eu tenho tanto para te dizer. Há pouco eu fingi me esquecer. Nossos corpos de repente se tocavam. Você sequer percebeu meus espinhos - afinal, sempre fui, a ti, desconfortável. Ela me amou por tão pouco: óculos escuros, cabelos grisalhos. Você me amou por tanto: olhos marejados, charme, falhas, mais falhas. A gente tem mania de apostar moedas que não tem. A gente tem mania de colocar tudo em jogo. A gente parece que gosta de jogar tudo fora. Depois a gente vira e diz que foi por amor. A gente às vezes diz e, às vezes, é verdade. A gente não ama de propósito. A gente ama quando, de repente, vem a vontade. A gente até evita, evita, evita. A gente até tenta, adianta? Amor, quando preso, é amor da mesma forma. Amor, às vezes, bifurca. Quantos erros formam um acerto? Olha aqui, amor, me desculpa. Desculpa, amor - os dois. Às vezes eu só quero alguém para me tornar mais jovem. Às vezes eu só quero alguém para nomear os meus defeitos. Às vezes eu só quero alguém. Nessa vida a gente se sente tão só. Mais que um é tudo que a gente precisa. Segura aqui, mão com mão é afeto. Afeto com mão é corrente. Corrente segura. Segura aqui, amor, que um dia o amor acaba. (Resistiremos sempre. Resistiremos à tudo. Resistiremos sempre à tudo, menos às tentações).

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Vidas Úmidas.

Eu não queria que fosse assim, foi o que dissemos um ao outro dez anos depois. Eu, calvo e trêmulo. Você, mais mulher e desconfiada. Foi aquela saudade. Meio amargurada, meio insossa. Meio sem saber se vai ou se fica. Meio curada, meio esperançosa. Meio nossa e de - mais - ninguém. É que, quando a gente vê - eu disse, com meus cinco graus e meio de miopia, parcialmente sanados por um par de lentes apoiados em uma armação falsificada -, a vida vai tomando vida própria, e a gente vai perdendo o controle. E o contato - você respondeu, inabalavelmente séria. Sua expressão era nova, realçava os relevos - também novos - em sua testa, de tanto a franzir - supus. Você sempre havia tido essa postura blasé, olhando a todos do alto, fumando seus Carltons Cremá e segurando o copo - por muitas vezes de plástico e roubado - com a elegância de quem segurava taças de cristal na cobertura do The Plaza. Mas sua pose não era mais um charme. Não me dava aquela vontade de arrumar um jeito qualquer que fosse de ir para a cama contigo e saborear, e raptar, qualquer outra expressão que você esboçasse. Em uma época, me lembro, você se acostumou a sorrir muito. Seu sorriso era enorme e, entre os espaços de seus dentes, era possível ver sua língua querendo sair, e seu coração querendo que eu entrasse. Foi justamente na época em que decidimos que tínhamos sido feitos para viver na esbórnia: todo dia em um lugar, todo sono em uma cama. Na verdade, não tínhamos sono, ou fome, ou qualquer outra dessas necessidades normais. Fumávamos, cheirávamos, bebíamos, queríamos - de - tudo e - de - todos. Parecíamos dois pupilos de anjos, tentando alçar vôo com asas que ainda não aguentavam nossos próprios pesos. Nisso, acabamos, é claro, um nos braços do outro. Primeiro, confusos. Depois, convencidos de que tudo-acontece-porque-tem-que-acontecer. A gente já se conhecia de muitas outras batalhas. Talvez por isso tenhamos nadado contra a maré em tão perfeita sintonia. Éramos extremamente novos, e corajosos também. Você, há pouco acostumada a sorrir, me esperava sempre com as gengivas e cáries à mostra. Tão bela e tão falha. De corpos e almas - suas pessoas eram várias - desnudas, como em uma pintura de Modigliani. Éramos extremante à flor da pele, como éramos, também, extremamente a flor e o espinho, a cruz e a espada. Não foi amor à primeira vista. Se foi, acho que não enxergamos estando lá em cima, nas nuvens, com todas aquelas ondas de delírio e soberba. Mas, uma hora, não sei com certeza qual, foi amor, e quando foi - e a gente enxergou -, foi com tudo. Com cinco dimensões e efeitos especiais. Não tínhamos como não sentir, e não deixar que fôssemos levados com ele. Por alguns momentos, eu sentia estar correndo por um campo de girassóis, para depois dormir ao relento. Por alguns momentos, eu sentia estar em profunda paz. Comigo, contigo, e com tudo mais que já nem existia conosco juntos. Você era o amor da minha vida, eu dizia. Eu dizia com o peito cheio de ar. Eu tenho o amor da minha vida. Pode não durar a vida inteira, pode acabar em dez minutos. Mas eu tenho. O amor dessa vida, eu tenho. Como era de se imaginar, não durou até o fim - fim que ainda nem chegou. Durou por toda a vida que vivemos ali. Durou por mais vidas até do que aquela propriamente dita - quando vai embora, a gente ainda vela, se cobre de luto, cobre com terra, enterra e chora. A gente segurou enquanto foi possível, enquanto só era preciso segurar de vez em quando, por segurança - funcionava enquanto fosse firme o suficiente para andar sem coleira. A gente segurou mas, como tudo, se desfragmentou, queimou, e o vento levou as mais leves cinzas. Ficaram algumas, as mais pesadas, as chamo de lembranças. Aquelas que carregamos em um vidro, no bolso, para jogar pelo mundo afora, sibilando, simulando, dissimulados, às vezes. Éramos extremamente jovens, mas algo em nossos espíritos nos tornara menos lúcidos, mais desgastados. Você, principalmente. Que era incapaz de se esconder junto à seu escuro, atrás da claridade de seus dentes. Você sempre me olhou com aquele seu olhar que nunca pude definir como nada além de olhar-completamente-seu. Levei algum tempo para ter - parcial - entendimento do que ele realmente queria me dizer. Você sempre me olhava. Você me olhava, e seu olhar me pedia ajuda, pedia pra que eu te tirasse daquilo tudo. Você falava - pela boca, e pelos próprios olhos - de anjos, demônios, e de se matar. Mas eu não tinha medo de que isso acontecesse. Eu nunca tive. Algo em mim dizia, quase que no fundo, que nem assim eu te perderia para sempre. Você era minha. E acho que sempre havia sido. E sempre haveria de ser. Minha como amiga, mulher, ou como memória. Minha como aquilo que não poderia nunca ser impedido, corrompido, ou extraviado. A gente não queria que fosse assim. Mas, mesmo sem querer, estávamos de acordo. Há tempos já sabíamos que nada mais daquilo existia. E que apenas flutuava na recordação de tempos e sentimentos distantes. Como vestígios de um naufrágio. No qual perdemos os tesouros e os brilhos, e ficaram apenas manchas nos porta-retratos afundados, para nos trazerem ao peito algumas batidas mais lentas e nostálgicas, e a sensação de choro e falta. Havia feito tanto tempo desde que havíamos feito tempo um ao outro. A sorte é que ainda nos lembrávamos daquilo que podíamos reconhecer. Era exata a forma como você soltava a fumaça. Era incerta a forma como você reagiria à minha aproximação. Mas não pude tolerar a distância quando encontrei o amor da minha vida, em uma das vidas que vieram depois.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Século XVII.

Acho que maior atestado de tristeza não existe: sonhava grande. Eu sonhava grande e queria dois continentes e você, senão logo o mundo inteiro e mais algumas galáxias. Para mim, todo romance precisava ser épico. Por isso eu seguraria suas mãos no meio de todas aquelas idas-e-vindas do aeroporto, ficaria de joelhos, e diria bate que é para ver se eu sinto alguma coisa de novo. Você me olharia, escandalizada, e tentaria escapar - apesar de saber que eu teria seus dedos muito bem presos aos meus. Com muito esforço, talvez conseguisse me arrastar contigo por dois centímetros e meio, esperançosa de minha desistência. Eu estaria intacto e persistente com meus olhos sérios e minha barba a fazer. Digno, como qualquer Romeu, Orfeu, Tristão ou Abelardo, nada me cessaria senão a certeza de possuir a mulher amada. Você olharia para os lados, preocupada, e diria para que conversássemos depois, pediria para que eu te deixasse ir, olharia meio-quem-vai-chorar-meio-quem-não-sabe-o-que-dizer. O que até me sensibilizaria um pouco - kryptonita nenhuma seria mais forte que seus olhos -, e afrouxaria minhas mãos. Você trapacearia e sairia apressada, pelo caminho ficariam suas lágrimas e um pouco do seu cheiro. Eu gritaria, é claro que eu gritaria. Eu gritaria seu nome e eu te amo e seu nome e me espera e seu nome e não me esquece e seu nome e fica por favor e seu nome e não faça isso comigo contigo conosco. E proporcional à minha raiva e decepção, eu amaldiçoaria todas as próximas vidas com minhas amarguradas palavras, e do céu viriam raios e trovões e chuva e pestes, e dos vidros viriam os venenos e os cortes e o sangue e os acidentes. Eu te deixaria escapar pelos dedos. Eu te deixaria escapar e passaria os próximos milênios me torturando. Deixaria crescer a barba e esbranquiçar a pele. Fumaria até pelos ouvidos: cigarros cachimbos charutos ópio cigarrilhas, qualquer cura que matasse. E pelas madrugadas, todo l'effet que tu me fais, tomando um - barril - de conhaque, ao som de Piaf, com a dona do mais vagabundo bordel da cidade. Eu te escreveria todos os dias, e todos os dias enviaria as cartas, que nunca chegariam à suas mãos. Eu lá iria saber quantas com seu nome existem por aí! Eu juraria estar vivendo no século dezesseis ou dezesssete, para ter a desculpa de estar sempre imundo, e viver com pouca luz, falando em latim, francês, ou no português arcaico. Eu teria muito tempo para ler, mas a minha preguiça limitaria meu tempo ao pensar: pensar em você pensar em você pensar em você. E ao lado da minha poltrona haveria um caixote, e em cima do caixote haveria sua foto, e ao lado da foto estariam dois dos meus melhores - senão únicos - amigos: o copo e a garrafa. Nós quatro ali seríamos uma família feliz, se não fosse a falta de ligações de sangue entre nós. Quer dizer, o copo e a garrafa de vez em quando seriam substituídos por outros semelhantes quando, depois de embriagado, eu os atirasse no chão e aliciasse seus cacos com meu corpo: aí teríamos sim uma ligação de sangue. Ou o conteúdo dos mesmos viajando por veias átrios órgãos: outra ligação. Ou o fato de que você circularia em mim mais do que oxigênio e me manteria muito mais do que vivo, sobre-vivo: mais uma ligação. É, poderia nos dizer família feliz. Mesmo que ainda subtraindo outros quesitos, entre eles: a própria felicidade. Passariam muitos anos. Tantos anos que, parte da minha memória teria esvaído, e sido substituída por sonhos - e alguns pesadelos - e estórias que teria lido. Eu me lembraria de você. É claro que eu me lembraria. Seus cabelos ruivos que eu acharia serem loiros. Seus olhos escuros que eu acharia serem claros. Eu e você aproveitando todo o frisson da Revolução Tecnológica beirando anos dois-mil, que eu acharia ter sido a Revolução Francesa, ou talvez o Iluminismo, mais para frente, só a Grande Depressão. Já tomado pelos males da idade: todos os males, todos. Sem nenhuma lucidez ou esperança, sentado na varanda, tomando alguns respingos de chuva e goles de teor alcólico alarmante, eu pensaria estar não passando por isso, e lembraria de quando era menino e teria rasgado sua saia, e sentiria estar vivendo tudo aquilo de novo: o êxtase do primeiro amor, que quem diria! seria eterno...

sábado, 6 de novembro de 2010

Girassóis.

Que seja eterno enquanto dure, e jogou o cabelo para trás, empurrou o lençol com os pés, apertou as pernas, e segurou minhas mãos. Estava tão angelical à luz-da-manhã-nublada-atravessando-as-frestas-das-persianas, falando com sua voz tão mais doce, e seus olhos cheios de infância e remelas. Aquilo foi amor de verdade: aquele momento em que eu a imaginei toda suja, atirada na sarjeta, e mesmo assim eu a olhando do mesmo jeito: daquele jeito que parece possível fazer o mundo parar: daquele jeito em que o mundo todo é, de repente, dois braços, duas pernas, um sorriso, e menos de dois metros de altura. Não foram muitos os momentos da minha vida que eu soube definir. Eu me senti só, por várias vezes: eu me senti só. Só que nem o único girassol no jardim do meu prédio. Ao qual arrancaram na semana passada. Eu me senti só por vários anos, e verões, e primaveras, e outonos, e invernos, e vidas. Eu me senti só nas várias outras vezes que vivi. Aquele foi o momento em que eu parei e, finalmente, consegui acompanhar a expansão do universo. Eu precisei de um abraço. Eu precisei abraçá-la porque, de repente, eu acreditava na salvação. O girassol, eu não sei se ele foi para um lugar melhor, se foi enrolado por uma fita e serviu de declaração de amor, mas foi mais ou menos isso que aconteceu comigo. Eu fui entregue à ela. Eu fui me entregando aos poucos. Cada parte minha, inclusive aquelas que descobri no caminho. De repente eu estava na sala, em um vaso com pouca água. E eu não sabia nem como me dizer que estava tudo bem - pois nunca estivera. Aquele momento foi um daqueles nos quais as mãos são dadas, e a gente se diz em voz baixa, choramingando, passou-passou-respira, e soluça. E então volta a ter seis anos e medo de escuro - que na verdade é uma metáfora, e é mais medo da solidão do que de qualquer outra coisa. E quer gritar pela mãe e esperar que ela venha para fechar o armário entreaberto, negando todas as portas que si mesmo fechou. Todas as portas em que, em si mesmo, fechou. É que, quando fica tudo bem, e a gente sabe que está mesmo tudo bem, a gente sempre coloca a toalha no pescoço e espera que o ruim volte, ou se crie, como um monstro de areia movediça. A gente se assusta até mesmo com o susto. A vida é ciclíca, e essa coisa de copo-meio-cheio-ou-copo-meio-vazio, eu digo: contanto que seja com conhaque. A gente vai pagando esse preço de se entregar - até mesmo quando jura que não foi entrega, que apenas molhou a ponta dos pés na piscina gelada -, é quando a gente diz que está tornando mais descrente e começa a procurar mais coisas nas quais acreditar. Aquele foi o exato momento em que meus olhos amuados sussurraram por favor, me salva dessa escuridão e seus olhos não souberam bem o que me responder e sua pele decidiu aquecer a minha para não encouraçar o silêncio. E você soube, ali você soube, que eu me sentia tão só, e que, à partir dali, eu depositaria todo o meu peso, amor, dependência, e enfado em você. Eu passo muito tempo pensando no que veio depois. O que restou do nosso amor ficou...no tempo esquecido por você..... Será se eu fui esse tempo que você esqueceu? Eu ainda te amo muito mais do que qualquer um poderia. Eu passo muito tempo sofrendo, suando frio e me dizendo que são esses os tempos de cólera. Eu passo muito tempo me olhando no espelho, o quão pálido, o quão arroxeado, o quão desnutrido, ressecado e esmagado...não foi culpa sua, eu nasci assim, meio morto. Afrouxo o nó da gravata, coço meu queixo, e passo o tempo pensando que é meio cortante isso de seja-eterno-enquanto-dure para quem quis que fosse eterno.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Whisky.

À 200km/h do desespero total ou do retorno, as árvores são apenas nuances, e a chuva é tão forte que escorre através do vidro dianteiro, pelo rosto. E as nuvens e as luzes formam uma constelação de manchas. Ninguém sabe porque vai embora. A gente inventa desculpas, e manda cartões-postais mas, no final, ninguém sabe porque foi embora. E em meio a todo o couro, a fumaça. Que desenha pontos pretos por todo o corpo, e enfim prepara para um enterro. Trajar-me-ei de preto, feito a vida fosse um um luto eterno. A gente sente tanto medo. A gente sente tanto quando vai embora. Eu sinto muito. Dá aquele medo de olhar para trás, e de olhar para frente, e de olhar para os lados, e de ver todo mundo olhando de volta. E os conflitos são tantos e internos. E, de repente, a gente já não sabe para onde está indo. E para o carro, e para tudo por um instante, um instante apenas. É tudo a se pedir, e nada a se receber. A gente sente tanto medo. E, de repente, é só mesmo medo que a gente sente. Sem nem saber a feição da figura que nos assusta: foi medo de ficar sozinho ou de ficar apenas? A gente sente tanta dor. Vai arrancando os dentes, as cutículas, e pedaços avermelhados do peito. A gente até tenta. Engatinhando, caminhando, caindo, correndo. A gente corre. Pra dentro de si ou pelas avenidas da cidade. Eu sei que eu preciso ver o mar. Eu fui embora para ver o mar. E não adiantaria ter dito que não se tem um por aqui. Eu sinto. A brisa, o calor e a umidade. Eu me deito e sinto que estive à deriva o dia inteiro, e me sinto ainda boiar nas ondas. E cansado, e ofegante. A gente deita. Mas nem sempre está ali. A gente sonha, e são muitos os sonhos. A gente vai sonhando devagar, para perdê-los da memória rapidamente depois. A gente está deitado. E, de repente, esse sonho todo é só um pesadelo. E a vida é todo esse pesadelo. Que vai doendo devagar, para ser perdida rapidamente. A gente escreve umas pequenas memórias em um diário. E pega para ler depois. E parece termos vivido um sonho. Você deve achar que sou um louco, sentado aqui te falando essas coisas. É que, vai ver, você me passou essa cumplicidade. Você me olha com esses seus olhos. E está tudo bem. É que a gente pensa, e pensa que pensando, a gente vai embora e chega em algum lugar. Você me sorri com esse seu sorriso ébrio. E está mesmo tudo bem. Mas não deixo de me preocupar, e dessa vez falar de um jeito que talvez você até mesmo me entenda, I wonder if we'll have enough whisky to save and get through the rest of our lives.