quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Mesclado.

Teus olhos atravessam oceanos. Transatlânticos. Transam comigo. Num transe tão secreto que sequer deixamos que perceba. Trançam comigo. Uns tais traços que contornam o teu rosto. Bem melhor do que fariam as pontas de meus dedos.

Meus dedos circulam tua falta de círculos. Das figuras, a menor. Das belas e esferas, um triângulo.

Estrangulando vou. Estragando. Estranhando. Tuas entranhas pressionadas contra meus ossos. E vice-versa. Meu corpo todo arisco. Desta vez, eu arrisco.

Eu te vejo como são vistos os anjos. Nuances. Embriagada lucidez. Se eu te ligar na madrugada, finja não saber que é amor.

O que é amor? Diga que enlouqueci. Deixe que toque, hora ou outra, desisto. Embora eu nunca tenha, verdadeiramente, te tocado - fisico-intelectual-acidental-mente. Embora meu desejo se satisfaça em saber, ao menos, que me saiba. Saiba que estou ali, do outro lado da linha, do outro lado da rua, espiando pela janela. Sendo tanto míope quanto corajoso.

Se teus olhos falassem, eles voariam - ainda não satisfeitos. Ainda não te satisfazendo, te encontro em todas as dimensões. Uma canção, um sonho, um sorriso. Tanto desconcerto que parece até certo.

Parece até que seremos sempre assim.
Oras, parece até que seremos para sempre.
Às vezes.


Segunda-feira, eu te avistei. Eu te avistei apontando na vista mais bela que há - toda aquela que possa ser alcançada pelos olhos. Eu te avisei. Eu te avisei que não seria brincadeira e Deus quis que não escutasse. Atravessou o viaduto, parou no sinaleiro, atravessou a avenida principal, o poste, o muro. Atravessou para um outro lado.


Nunca mais te vi. Entrando, já no fim da tarde, pela porta de vidro espelhado. Olhando para os próprios pés. O mundo sem saber se era narcisismo ou medo. O mundo, mas qual deles? Eu te esperava ali todos os dias. Eu te esperaria, ainda, ali todos os dias.


E se um dia eu não estiver mais aqui? Serão as rosas ainda flores? Serão os céus ainda azuis? E irá amanhecer, ainda, por todos os dias? Se um dia eu não estiver aqui, alguma coisa muda? Ou tudo continuará a falar? Eu continuarei escutando? Ou, para mim, diminuirão o volume?

Mas teu corpo ficava tão mais nítido coberto por lençóis brancos. Tão mais saliente quando deitados no escuro. Tão mais. Tão mais meu. Mais seu. Mais nosso. Mas não mais.


Teu corpo não ficava bem encaixotado. Empacotado. Embalado.
Para viagem?
Parem a viagem. Não pode ser assim.


Assobia, que é para ver se a dor vai embora...
Assobia, que é para ver se a dor vale à pena...

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Tango.

O clube faria cinquenta anos, desde sua inauguração, no próximo dia vinte e dois do mês que estava por vir. Há cinquenta anos encontrava-se naquela mesma esquina, sendo uma construção de madeira,de portas e janelas, desde aquele primeiro dia, amarelas, contrastando com a pintura externa vermelha. Durante os cinquenta anos, seu tamanho havia multiplicado aproximadamente três vezes e meio. Dando espaço para outros dois palcos, de capacidade menor do que o primeiro – e principal. E para uma sala reservada – nesta, havia também um palco que mal poderia ser chamado de palco por consistir, basicamente, em uma mesa de pernas serradas. O primeiro proprietário havia falecido quando seriam acesas trinta velas de aniversário do clube. Deixando o local para ser dividido entre milhares de brigas e seus dois filhos. Dois filhos de duas mulheres diferentes, o que trazia complicações ainda maiores na partilha de bens. Entre tapas e, apenas, tapas, o clube se manteve. “El Beso Tango”, uma placa feita à mão, numa esquina pouco movimentada do colorido Caminito. Com os anos alongou-se por quase todo o perímetro da rua. Tornando-se, claramente, o único motivo para que alguém acabasse parando por lá. Cinquenta anos antes de estarmos falando do vigésimo primeiro dia do mês que estaria por vir, o clube inaugurava com setenta cadeiras no primeiro salão, que estavam divididas em treze mesas. No palco principal, um promissor casal tremia em seus primeiros passos frente a um público maior do que o próprio espelho. Promissores, como casal, e como artistas. Dançarinos. Bailarinos. Flutuavam com nuvens sob os pés. Sem ser necessário o uso do ritmo para haver uma explicação, os dois se encontrariam ainda que não contornassem seus corpos. Os dois se encontraram e permaneceriam encontrando-se assim nos dias e anos seguintes. Além do gosto pela dança, os dois sentiam-se tentados por adoçar o café com doce de leite, por adoçar os dias com música, por adoçar as músicas com beijos. Se for preciso descrever o amor, melhor ficar calado para que ele não me escape. Percorrendo quarenta e cinco anos, dançaram todos os dias de mãos dadas, sem serem desgrudadas nem com a brutalidade das revoltas e recessões. Nos últimos cinco, destes quarenta, ela foi definhando até ficar apenas como a melodia da primeira música que dançaram juntos. O câncer e a dureza de mater o brilho num mundo em que tudo morre, se esvai. Embora tivessem prometido regressarem os dois para o mesmo berço, ele ficou a dançar com o vento. Já de cabelos muito mais do que grisalhos, foi perdendo um pouco do gosto pelas luzes do palco, e com a rigidez dos joelhos, foi deslocado para a cozinha. Lá ainda dava para escutar o piano, mesmo quando o barulho dos pratos causava humilhação e resmungos. O argumento era o de que havia um limite de idade para ser útil, e um dos irmãos defendia que o velhinho estivera ali desde o começo, então merecia algum resquício de misericórdia. E o outro dos irmãos atacava dizendo que velhos não servem para nada, não viu que ele quebrou mais dois pratos? Como se pratos valessem mais do que qualquer esperança. Era a lembrança dela saindo apressada do camarim que o mantinha ali. A lembrança dela sentada na bancada da cozinha fofocando e sendo enxotada por acender um cigarro. A lembrança dela rindo de um lado para o outro três minutos antes das portas abrirem. O clube faria cinquenta anos, desde sua inauguração, no próximo dia vinte e dois do mês que estava por vir. E a tradição, aparentemente, pedia por novidades. E o velhinho precisa ir embora, dizia com um talão de cheques na mão. E ele precisou ir. Olhando para trás, as janelas amarelas muito maiores em tamanho e quantidade. A rua muito melhor iluminada. A placa feita à mão intimidada pelo letreiro em neon. A figura dela apoiada ao poste, fumando um cigarro, com uma rosa no cabelo ainda preto. Ele precisou voltar para a casa de dois quartos que tinha o mesmo cheiro desde que, os dois, compraram juntos há quarenta anos atrás. Sentada à mesa, a lembrança dela. Junto à chaleira, a lembrança dela. Debruçada sobre a cama, apoiada na pia. Em todas as paredes, a lembrança dela. Duas vassouras de madeira e palha. A saudade dela. O compasso binário do tango. A lembrança dela. Binário remetendo a dois. A saudade dela. Duas vassouras bem podem acompanhar dois pés. Foi dançando com a ausência dela. Foi sobrevivendo na ausência dela.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Santa Coragem.

Já era tarde quanto vi girar a maçaneta, e abrir, silenciosamente, a porta. Teu cheiro veio antes da própria presença. Já era tarde quando abriu a porta e quebrou-me as pernas. Penso que seja possível a existência de um pacto. Um cruzamento de dados que seleciona algumas pessoas e as predispõem a isso, a estarem ligadas. Ainda que, por alguns momentos, pareça não haver nada para mantê-las assim. Nenhuma música, nenhum poeta, nada em comum. Nenhum hábito ou vício. É possível que exista este pacto e ele se torne perceptível à partir do segundo em que estas pessoas predestinadas – uma a outra – se encontram. Um estalo inaudível, no lado escuro da mente. Inaudível, mas também inegável. Que mexe e remexe tudo que acontece do lado de dentro – e, assim, as consequências. Já era tarde, porque nenhum de nós dois esperava. Dentro, tão dentro, de maneira a tornar-se inevitável – pela distância torná-lo inalcançável. Aconteceu. A cor dos olhares mudou. Dos nossos, quando direcionados apenas para nós. Para outros, o mundo permaneceu o mesmo. Girando, e girando. Sem pausas, sem fim. Todas as pessoas que quis, acabei amando. Assim meio amor atropelado pela pressa. Mas nem por isso menos amor. Nem por isso menos verdadeiro. Mas eis que existiu você. Naquele momento, em minha vida, em meu coração. E foi existindo, como se nascesse de novo a cada dia, como se aumentasse a cada vez que o ponteiro se deslocava. Fui amando amores sendo completamente seu. Sem poder, nem querer, fugir. Sem precisar escapar. Sem amarrras, era mesmo todo seu. E por partes – de tempo ou de corpo – de alguns outros. Amores tortos. E eu sentia tua falta sem nem saber tua textura. E, saiba que, eu pensava em ti sem nem saber quem eras. Além dos olhos, por detrás do sorriso - que não separava o teu envelhecimento da infância. Sorriso que percorria meus dias. Como um medalhão, numa corrente, escondido pela camisa. Uma fé que se tem, mas que se esconde. Um algo além, no qual se acredita. É preciso, sempre, acreditar. O gosto que atravessava teu nome. A tua marca favorita de perfume. A gente só se sabia como dois seres pertencentes a um mesmo mundo. Num mesmo centro urbano. Um mesmo caminho pelas manhãs. Duas presenças reservadas a presenciarem-se assim. Num desconcerto mesclado com timidez e encanto. Um estalo que se reconhece, mas não se compreende. Sem que pedíssemos fizeram-nos assim. E de alguma forma negamos. Fui livrando-me das tentações, mas era sempre a cor de nossos olhares que assentava meu corpo na cama. Independendo do corpo que punha-se a deitar comigo. Eu estava sempre a te trair, mas nunca estive contigo. Teu corpo colado ao meu era só saudade. Lembrança de um tempo que nunca existiu. Vontade de deixar claro que nos reconheceríamos até mesmo no escuro. Já era tarde quando eu quis desafiar o mundo para chegar até o seu – bem quando percebi que era nele que eu pertencia. Não fui, por muito tempo, letrado nisto de significado das coisas. De retirar camadas até enxergar o epicentro dos fenômenos – entende-se “sensações”. Com o tempo foi tornando-se cada vez mais difícil deslocar meu pensamento do pensar-em-ti. Viver-em-ti. Remoer-me-em-ti. Desejar-me-em-ti. E percebi que todo o resto, era só o resto. E que, agora, só me faltaria a coragem de te contar tudo isso.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Céu Estrelado.

Sexta-feira, beirando o nascer-do-sol, quando enfileirou os livros no comprimento do corredor, deitou-se no piso frio da cozinha, apontou o nariz para o céu e disse: faz tempo que não olho para o teto. Depois reclamou das marcas de bolor, e cantarolou com experiência uma das mais antigas de Bethânia - era uma mesma música que cantarolava sempre ao sentir-se encarceirada ou doída. Faz tempo que não olho para o alto, e tentou puxar-me pelos pêlos da perna, como se esperasse que, com aquele sutil toque, eu me abaixasse para escutá-la mais de perto. Não pude não estar inquieto. Nem pude deixar de passar claramente isto a ela. De um lado para o outro, a sola arrastando no chão. Um barulho repetitivo, sem pausas. Dava a mesma agonia de unhas indo e voltando na lousa. De repente senti-me tal como o moleque de treze anos que fui e precisei deixar para trás. De repente senti-me degradado pelos tempos que atravessam as fibras, dermes, virtudes, e logo mais passam. De repente senti-me acuado, como se aqueles treze anos e a lembrança deles fossem responsáveis por um tremor nos dedos na hora de apertar o gatilho. Sem palavras, ela estava a dizer-me que iria embora. Sem ouví-las, aquelas palavras foram perturbando quaisquer resquícios de sanidade. O jardim era florido, até transformar-se em deserto. Das formosas pétalas de rosa, até o ensanguentado cactus. Pouparia-me do drama, mas nunca de suas analogias e metáforas. Descarrilhou, ponteiros pararam de girar, os passarinhos têm que voar...entende? Os cachos dela espremidos entre sua cabeça e o cheiro de lavanda do produto para o piso. O filtro dos sonhos na porta da cozinha, balançando com a previsão de chuva, e eu lembrando de quando ela voltava da rua carregando uma sacola em cada dedo, trazendo um incenso para cada sentimento, uma cor para cada som, dizendo que essa parada de signos é séria mesma, o rapaz das velas me explicou. Um par de olhos desejosos de enxergar todo o mundo de uma vez só. Ou pedaço por pedaço apenas exigindo muita concentração e calma. Mas ver e absorver tudo. Sentir de tudo. A brisa, as formiguinhas fazendo cócegas nos pés, o cheiro da lama. Sexta-feira, o corredor infestado de títulos e mais títulos, clássicos contemporâneos, marginais, ensaios. Sentado à mesa eu podia ver Schopenhauer, Hagel, um livro-ilustrado sobre flores, outro sobre mapas. Estava tudo desconstruído entre os cômodos. Todas as fases dela. De quando quis ser confeiteira, folheando o caderno de receitas da falecida avó. De quando começou o curso de Filosofia e logo transferiu-se para Arquitetura, estou apaixonada pelo gótico, e me arrastou por inúmeras bibliotecas. Estava ali toda ela. Umas fileiras sobre outras, dando mais de um de mim de altura. Ventou forte e poucos resistiram naquela formação que mal pude compreender a lógica. Assim como era. Inesperadamente formada, vezes frágil e facilmente abatida. Ainda assim nunca perdia o mistério ou o encanto. Nunca deixarei-te sozinho, nunca sinta-se assim, se acaso eu estiver ou parecer longe, fora da cidade, sem celular, e à sua volta as coisas parecerem sufocantes, é só pressionar seus joelhos contra o peito, de alguma forma você saberá que eu estive ali, e ali ficarei para sempre, um ventinho frio, calmo. Abusava das doses de sobriedade, ternura. Não que não sobrasse-lhe tempo para convulsões existenciais. Tinham uma frequência quase que semanal. Remexia-se pelo escritório. Fechando e abrindo as janelas sem nunca saber se seria calor ou frio. Ou nada. A paz pertencia-lhe, e mesmo assim, incomodava-lhe. Naquela Sexta, fui dormir, depois de achar ter escalado e vencido todos os morros em volta dela. Com calma, abri caminho entre os livros, sem saber que, ao amanhecer, não estariam mais lá. E que, em seu lugar, estaria um pequenino envelope:

Que tuas estrelas nunca se desgrudem do céu.

Nunca mais a vi.
Se não nos sonhos.
É lá que eles moram, não é mesmo?
No céu...
Entre as estrelas então.
Foi onde a vi.
Nunca desgrudei-a de mim.
Como foi-me pedido.