segunda-feira, 31 de maio de 2010

Não?

É sabido que, quando eu era mais novo - e você também -, as coisas eram outras. Seus vestidos confundiam-se com o sol das oito, e minha vista ainda não era tão cansada. Éramos dois boêmios, crentes de que não precisávamos de crença alguma. Éramos, basicamente, só nos dois - e o resto do mundo. Tínhamos, em mãos, alguns trocados e alguns cigarros. E íamos assim, trocando as pernas e trocando os fatos. Tínhamos, em mãos, a sua na minha e a minha na sua, e as duas em uma só. Era isso que chamaríamos, agora, de solidão. Chamavamos (nos) de felicidade, e para meu próprio contento: não sabíamos de nada. Mas ainda assim, pedíamos por nossas vezes, e falávamos, certos de que estava tudo errado.


Tudo...
Tudo...
E tudo mais, que não fosse nós.
Crescemos, não foi, querida?

Ba...

Não queria perdê-la: juro, juro, ele jurava que não queria. Mas era inevitável que abrisse seus olhos, dia ensolarado, quadris dançantes saindo do mar. Escondia seus olhares por detrás das folhas de um livro. Ajude-me, ajude-me, mas soltava-se das palavras. Só uma espiadinha, só uma, e fixava seus olhos na rebentação. Pouco danava-se para a pureza, que soltassem tudo, mas assim, sem querer visivelmente. Ô velho danado, escapava da mesa ao lado. Mas ainda era novo, só um pouco rabiscado.

domingo, 30 de maio de 2010

Longo Silêncio.

Eis que aparecestes.
Tão sua,
tão bela,
tão minha,
tão...ela.

Eis que trancastes a porta.
Uma,
duas,
três e...
todas as voltas.

Eis que andastes alguns passos.
Seus pés no cimento,
no tapete,
na cerâmica.

Eis que abristes as janelas.
Frio,
Rio,
Janeiro.

Eis que já era noite.
Sombreada,
desleixada,
desacompanhada.

Eis que a luz caiu.
E as calças,
e o cobertor,
e as meias.

Eis que senti.
Suas saudades latentes no corpo,
suas veias saltando do pescoço,
sua saliva saltando do meu gosto.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Dó?

Aproximava teu corpo do meu,
encostava tua boca na minha,
puxava-me pela gola da camisa.
Tirava-me o paletó,
apoiava-o atrás da porta.
Puxava-me pelos dedos,
encostava na - minha - carne - viva.
Subia em meu colo,
arranhava-me as costas.
Pedia-me que citasse alguma de - minhas - velhas - poesias.
Pedia-me que apertasse-te as coxas.
Falava-me de seu coração taquicárdico,
pelas minhas poucas palavras,
pelos meus poucos gestos,
pelos meus poucos pêlos.
Abria-me os lábios atrás de um sorriso.
E cadê?
E cadê?
Eu não sei - nunca soube, e não diria.
Pedia-me sujeira.
Chame-me disso, daquilo, daquilo outro.
E eu sequer gemia.
Mas eu não era assim, tão limpo.
Eu era escuro,
e você queria à luz de velas.
Pedia-me amor.
Ame-me assim,
com flores desbotadas,
jantar na mesa,
louças lavadas.
Eu era egoísta,
e você queria cumplicidade.
Entenda-me, vai.
Mas nem se eu quisesse.
Imcompreensível essa sua sede.
Queria magia, mas eu não havia saltado de um livro.
Por quê doer-se tanto?
E ferir-se tanto?
Eu só estava ali por acaso...

domingo, 23 de maio de 2010

Lábios.

Queria que eu levasse flores, mas nunca estivera lá para recebê-las. Queria andar de carro conversível, mas nunca dispunha-se a despentear os cabelos. Queria que eu fosse bilingue, mas nunca falava com o coração. Passa-me a carteira de cigarros, faça-me cafuné, sirva-me a bebida, e mandava feito eu fosse um cachorro. E eu obedecia feito fosse treinado. Fique um pouco longe, hoje estou acompanhada, e eu ficava a assistir. Pegava-me pelo braço - faltam-lhe músculos, não é? - apertava-me e eu estremecia. Vez em quando chegava pertinho, como se fosse contar-me um segredo. Apenas tentava-me o corpo, e eis que minhas pernas gaguejavam, e as palavras saíam tremidas. Vez em quando chegava tão pertinho, que nossas bocas encostavam-se. Seus lábios tinham o gosto de canela e pólvora.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Capítulo XVII

Fui encontrá-lo, para um café no começo da noite. Não queria passá-la em claro, mas passaria. E culparia a cafeína se não pudesse culpá-lo. Parecia estranho querê-lo tanto. Parecia quase errado. Sentia-me culpada quando meu corpo tocava o dele. Mas a culpa fazia-me querê-lo mais.
E então eu quis, e tive. Trocamos o café pela cama, o açúcar pelo gosto amargo de suor. Desta noite eu lembraria-me de cada pedaço. Fomos caminhando até minha casa, via L2. Víamos um céu completamente encoberto. E por entre as cobertas faríamos um nosso.
Pareceu estranho. Pareceu completamente errado. Eu pareci importar-me com isso, ele não.
Amou-me, acima de tudo. Como se cada fragmento do meu corpo fosse um fragmento do corpo dele. Como se o meu corpo, somado ao dele, fosse um corpo só. Beijou-me a nuca, o queixo, o colo, desceu, e sua descida fez-me subir ao céu que ele estava entregando a mim.
A culpa sempre acompanhou-me. Mas desta vez, eu havia resolvido segurar-lhe a mão.
Seu fôlego confundia-se como parte integrante de meu ouvido, era como a brisa que livraria-me do calor abafado da seca, mas que trazia-me mais calor ainda.
Quando parou de desvendar meus segredos mais íntimos, pôs-se a olhar-me nos olhos. Santificou-me ali. Apoiou minha imagem em um altar, e vangloriou-me. Senti-me próxima do eterno, do imortal. Um dia, pode ser que eu sumisse, mas minha memória – para ele – ficaria. O que havia de tão especial? A necessidade de haver alguma coisa, pensei.
Repousou sua cabeça em meu ombro, confundiu-me com um violão e dedilhou-me feito compusesse sua obra-prima. De todas as notas, nenhuma foi mais grave do que eu notando seu sorriso jocoso e querendo tomá-lo como meu.
Posse era equívoco de quem via as próprias mãos numa dimensão maior do que a que realmente tinham. Nada nunca foi meu. Nada nunca é de ninguém. Tudo escapa entre as lacunas dos dedos. Incluindo a si mesmo. Muitas vezes vi-me escapar, até puxar-me pelos cabelos, prender-me ao chão e inventar formas mil de soltar-me.
De nada adiantava querer aquele sorriso, se nunca sequer pude guardar o cheiro da chuva em um pote. Contrariando-me, continuei querendo. E fingi que era meu. Selei-o com um beijo. Meu sorriso e meus lábios.


Postscriptum: Trecho de "Concreto".

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Patati Patata.

Era feio, aliás, horroroso. Mal ocupava suas calças jeans, parecia um fantasma de camiseta branca. Era todo destruído, invadido pela tristeza, mas sabia portar-se como ninguém. Sorrateiro chegava, e assim ficava. Pedia um copo, logo depois a garrafa. Tirava do bolso três maços. Hollywood vermelho, por quê? Ah! gosto do nome, "Holly Wood", "Holly would?", "Would she?", e também acho que Holly teria as bochechas avermelhadas de sol americano, yes, she would. Talvez fosse assim, meio lunático, divagando sozinho. Mas algo nele fazia sentido. E apreciava sua inconstante companhia. Abria a boca e desentupia-me os ouvidos. Não era isso que queria dizer, mas ia e dizia, quer dizer ele queria sim, e desculpe-me a sinceridade e a descrença - falava extremamente sério. Todo dia vinha com uma idéia nova. Ontem cortei eu mesmo meu dedo, e então eu ficava perplexo. Queria saber o porquê. Ele ria da minha ignorância - era isso mesmo? Queria saber se a dor era a mesma de um acidente, e explicava tão calmo, falando feito brisa. E doeu? Pedi desculpas pela ignorância cada vez mais profunda.
- Cara, não doeu! Não doeu! Não doeu e eu chorei! Chorei mesmo, parecia um bebê desmamado.
- Chorou?
- Sim, chorei! Se você tivesse me cortado, talvez doesse! Talvez sangrasse tanto, e tanto que eu nunca pudesse esquecer...mas sangrou feito brincadeira, duas horas e parou! Mais outras duas e eu esqueci! Dá-me um tapa, um forte! Vai doer, e eu vou chorar, mas vou chorar escondido! Porque você pode me machucar e...
- Eu?
- Cala a boca! Você pode foder com minha vida, coagular meu sangue, arrancar minhas lágrimas com uma faca de cozinha! E nem isso eu posso...por quê eu não posso me machucar? Por quê isso tem que ser trabalho dos outros?



Ele é um cara que sabe muito como falar do medo, da solidão, não é?

Amor.

Já era pôr-do-sol em seus olhos, e eu tendo acabado de acordar. Braços, costas, pernas e coração doloridos, o que foi que aconteceu? O cheiro caramelado da cafeteria ao lado, e seus pés pedindo aos meus para que tivessem pressa. Seus pés dizendo aos meus que saíssem logo dali. Mas era bem eu quem não queria. Queria ficar, e talvez dormir mais um pouco. Na esperança de que minha feição sonolenta fosse angelical o suficiente para que você fitasse os olhos em mim, apoiasse o rosto com um braço, e com o outro contornasse meu corpo comprimido. Eu sei, não era culpa sua que eu fosse velho e cansado. E também não era minha. Tentamos acompanhar os anos, como tentamos, meu amor. Mas ali, do lado de fora, entre as brechas da persiana, algum outro eu que saiu de mim, observava-nos com destreza. Éramos dois péssimos velhos, cujas rugas e fraquezas não cabiam. E ainda vinham-me aos olhos aquelas suas olheiras. Queria pedir para que, por favor, saíssem dali. Mas meu amor, elas não saíam. E tampavam aquela sua doçura que acompanhou-te por vários dos muitos anos. Como eu queria dormir, como eu precisava dormir. E sonhava - acordado - em acordar desse pesadelo. Não acompanhamos nossa idade. Não prosseguimos com nossa vaidade. Você ali, com um copo de chá gelado, vestida em uma camisola estampada, seios quase à mostra...você, meu amor, tão não-quem-amava. Eu logo ao seu lado, estraçalhado na cama, com uma cueca manchada de tanto uso, com cabelos acinzentados em volta do umbigo. Aonde estava seu copo de vodka? Seus saltos altos? Meu amor? Aonde estava meu amor, meu não-tão-amor?

domingo, 16 de maio de 2010

Lembrança.

Estava sozinho em casa, sem ânimo e sem cigarros. Lá fora ameaçava chover, e um vento frio, quase que nem eu, entrava pela janela, despenteando-me os cabelos grisalhos. Sentia no ar a presença de poeira, muita poeira. E junto dela, uma solidão antiga, já quase domesticada. Senta, dá a pata, finja-se de morta. Ô solidão, solidão tão minha. Boa garota, receba meu afago. Falando em garota, lembrei-me daquela que foi minha. Aliás, que eu quis que fosse. Garota selvagem, sujava-se de lama e deitava-se no carpete. Mas que saudade veio-me ao peito. Mas que vontade veio-me as mãos que, sem meu consentimento, discaram seu número. Alô, disse meio torto. E a sua voz agora era tão outra. Estávamos bem, sim, estávamos. E a vida? Vai indo, não é? Mas então, o que você quer? Não queira nem saber, eu mesmo não quis. Antes de desligarmos, chamei-a para um café. Foi só para lembrar que não dava certo.

Ora!

Foi em um Sábado à tarde que ela deu seu ar de graça pela primeira vez. Estávamos todos sentados, quase que derrubados, à mesa, com pratos, copos, garrafas e mentes vazias. Ela chegou toda malemolente, exibindo suas pernas magricelas e enrolando as pontas do cabelo. E aí, cara!, como se fôssemos possuidores de uma intimidade gigantesca. Era toda dotada de minúsculos detalhes: as mechas loiras escondendo - e escondidas - na nuca, um pequeno sinal no canto do olho, um dizer em francês - supus - no pulso. E no momento em que sentou-se começou a falar, e não parava. E falava, e falava, e falava, e cutucava as cutículas, e mordiscava os lábios, e falava, e falava, e falava. E conhecia Buenos Aires, mas odiava os argentinos. E estava há dois anos sem comer carne, cheirar pó e acender um cigarro. E acendeu um cigarro. E considerava Niestzche um cínico. E não gostava nem de queijo e nem de azeitona. E espremia o limão na cerveja. E tinha esquecido-se do almoço, por isso havia chegado atrasada. E culpava o filhote de labrador que havia ganhado na semana passada. Um descontrolado, repetiu várias vezes. E fazia com que todos rissem com sua voz aguda e sua fala apressada. Não descuidava da boa gramática. E dizia já ter lido um dicionário. E o Carlos? Bom, o Carlos era um imprestável. E eu sem saber quem lá era Carlos. E as cabeças todas concordando. E os corpos eretos na cadeira, os olhos fitados nela. E falava, e falava, e falava, e aquela minha vontade mesquinha de fechar sua boca. Quem era ela e por quê não estava comigo? Ela sequer gastava seu tempo notando meu interesse. E desce mais uma! E desce mais outra! E eu querendo descer ela toda. Dá aqui seu número, a gente se fala. Mas fui eu que liguei, dez minutos depois de sair. Ela ia para a praia, eu fui correndo atrás, de terno e gravata. Mas como seus olhos são lindos, eu disse: que nada, obrigada. E ela puxou meu rosto - e também meu tapete -, e aquele cheiro da gelada já quente. E a fala tornou beijo, e beijava, e beijava, e beijava. E não parava, e eu também não queria. E foi aí que parou. Talvez eu te ligue mais tarde. Não, por favor, liga sim. Pensei, mas só disse que estava tudo ok. Ligou nada, fui eu que liguei um dia depois. Vamos sair, saímos, saímos, até sairmos do sério. Ela dispunha de muitos talentos, como encostar a língua na ponta do nariz e fazer-me sentir como um merda.

Boas.

Que tivesse uma boa noite, mas poupei-nos do desconforto. Vá, fale logo, disse eu com aquela cara de deixei-a-cerveja-esquentando-na-mesa. Não sei se o que vi mesmo foi a lua, mas de relance vi algo pálido no céu, e aquilo pareceu até combinar bem com seu vestido roxo, e com seus pés sujos sobrando na sandália. E gesticulando muito você falava, amor, amar, eu amo você, rosas, Proust, Teoria do Caos. E aí meus olhos: o que mesmo você está falando? Mas eu não perguntei. O carro parecia escorregar um pouco, mas era só quando meus olhos piscavam. E suas mãos falando sem parar, juro que as palavras saíam delas. Suas pernas inquietas, inquietas, inquietas. Dá para parar de se mexer? Agora vai e fala você, mas eu não falei. Que seja bem-vindo esse silêncio criminoso, eu mesmo o recepcionei. E me dá licença, tenha sim uma boa noite.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Mórbida.

Se não houvesse escutado sua voz, sua tão doce voz, talvez cutucasse algum de seus ossos pontiagudos. Se não fossem as sardas, as pequeninas sardas em volta do seu nariz, provavelmente checaria seu pulso. Pálida, esquálida e um pouco firme demais, foi assim que te vi quando vi pela primeira vez. Mal movia os pulmões, talvez querendo respirar escondido. Mal abria os olhos, mal fechou as pernas. Pude sentir suas orelhas geladas, encostar nos seus pés contraídos por detrás dos sapatos. Ah! mas como você era bela, como você era tão bela! Chegava a parecer uma boneca presa em uma cela de plástico, e me dava a curiosa vontade de trocar suas roupas, pentear seus cabelos, e roubar o movimento de seus braços. Ah! mas como você era morta, como você era tão morta?

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Infinito.

Estava à espreita quando ela passou por mim. Com aquele seu olhar dialético, aquele seu andar torto, aqueles seus olhos estrábicos, queria sabiamente levantar poeira. Mas sequer houve brisa. Sentado à mesa de um boteco, eu segurava forte meu copo, e fazia gargarejo com o líquido loiro. Meus lábios positivamente arqueados passavam a ligeira impressão de não estar ali desacompanhado. Mas lá eu estava, feito pipoca que caiu do saco, feito goma de mascar que perdeu o sabor. Se fosse burro, culparia a idade. Mas não que isso venha ao caso. Como estava dizendo, ela passou por mim e eu pude então admirá-la como algo concreto, mas nada palpável.

domingo, 9 de maio de 2010

Feliz Aniversário.

Escutava o som desde a virada da esquina, aquele tchururu quase reconhecível. Ia caminhando lentamente por entre os carros mal estacionados, chutando as latinhas de cerveja que encontrava pelo chão. Parecia despreocupado vestindo aquele suéter bordô, passando os dedos por entre os fios de seu cabelo encaracolado. E ia assim mesmo, caminhando lentamente por entre os carros mal estacionados. Quando alcançou a escadaria que dava acesso para a porta, sentiu uma fadiga intrusa, feito um alerta, e encostou suas costas ossudas no corrimão. Alcançou o último de seus cigarros, mentolado, para fazê-lo esquecer-se de seu hálito azedo. Ansioso, esperou que cada uma das milhares de substâncias tóxicas queimassem. Apoiou-se em um pé só, coçou a nuca - era o que fazia na beira de um ataque de nervos -, e tornou a mover-se lentamente, agora subindo os degraus. Com calma, alcançou a maçaneta. Com medo, girou-a. E o tchururu agora era feito um amigo íntimo, e pôs-se a acompanhá-lo com as mãos. Olhou todas aquelas pessoas que, elegantes, sorriam no ritmo daquela intimidade. Olhou aqueles balões bem dispostos pelo ambiente, aqueles copos vazios, aqueles corpos pela metade. E no meio daquilo tudo ali, daquele nada aqui-dentro - pensou -, viu-a batendo palmas, gargalhando abobada e sendo admirada por vistas alheias. Aproximou-se com cautela, achando que talvez não fosse ser reconhecido por aqueles olhos debutantes, chegou perto de seu ouvido e disse desejar-lhe todo o bem dessa vida - doeu-se, por ser de todo mal.

terça-feira, 4 de maio de 2010

No Caminho.

Chamava-me de visitante, dizendo que eu havia vindo, mas nunca para ficar. Olhava-me esperando que eu abrisse a porta, e num segundo qualquer, sumisse dali. Olhava-me assim achando que eu não soubesse, mas a desconfiança era gritante em seus olhos fitados nos meus. Gostava de assustá-la balançando as chaves e alcançando o casaco detrás da porta. Mas o que conseguia era seu sorriso apreensivo apoiado em seus lábios trêmulos. Nas noites de monotonia plena, queria sentar-me ao lado dela e dizer cheio de um cinismo ébrio: apaixonei-me por outra, mordendo-me para saber se daria-me um tapa com uma de suas mãos finas ou diria-me vá-em-frente com sua voz de violeira mansa. Mas continha esse meu desejo sádico de vê-la doer-se um pouco, e abraçava-a com meu corpo carente de sol.

domingo, 2 de maio de 2010

Aninha.

Quando conheci Aninha, ainda chamavam-na no diminutivo, ainda tinha a pele casta e ainda catava caracóis no jardim. Quando apresentei-me a Aninha, chamava-a de nomes chulos, desentendia a castidade de sua pele e zombava de seus caracóis. Quando apaixonei-me por Aninha, chamava-a no diminutivo, desejava a castidade dela toda e procurava abrigo nos caracóis de seus cabelos. Quando perdi Aninha, chamava-a de amor.

Anti-Heróico.

Estava toda ela lá, imprevisível com seus punhos fechados e seus lábios entreabertos. Estava metade de mim junto, repetitivo com meus pés contraídos e meus pêlos arrepiados. E daquele pequeno espaço, daqueles seus ainda mais pequenos lábios, saía uma estranheza gemida, quase gritada. E meus pêlos, feito antenas, enrijeciam-se para captá-la. E respondiam, salivados. Estavam seus punhos e meus pés lá, incontroláveis com suas cãibras, e meus punhos e seus pés, insaciáveis com suas perdas.

Pensando Alto.

Lembro-me dos grandes acontecimentos de minha vida. Meu nascimento: branco. Minha formatura: branco. Meu casamento: branco. Meu grande amor: translúcido.