quinta-feira, 20 de maio de 2010

Capítulo XVII

Fui encontrá-lo, para um café no começo da noite. Não queria passá-la em claro, mas passaria. E culparia a cafeína se não pudesse culpá-lo. Parecia estranho querê-lo tanto. Parecia quase errado. Sentia-me culpada quando meu corpo tocava o dele. Mas a culpa fazia-me querê-lo mais.
E então eu quis, e tive. Trocamos o café pela cama, o açúcar pelo gosto amargo de suor. Desta noite eu lembraria-me de cada pedaço. Fomos caminhando até minha casa, via L2. Víamos um céu completamente encoberto. E por entre as cobertas faríamos um nosso.
Pareceu estranho. Pareceu completamente errado. Eu pareci importar-me com isso, ele não.
Amou-me, acima de tudo. Como se cada fragmento do meu corpo fosse um fragmento do corpo dele. Como se o meu corpo, somado ao dele, fosse um corpo só. Beijou-me a nuca, o queixo, o colo, desceu, e sua descida fez-me subir ao céu que ele estava entregando a mim.
A culpa sempre acompanhou-me. Mas desta vez, eu havia resolvido segurar-lhe a mão.
Seu fôlego confundia-se como parte integrante de meu ouvido, era como a brisa que livraria-me do calor abafado da seca, mas que trazia-me mais calor ainda.
Quando parou de desvendar meus segredos mais íntimos, pôs-se a olhar-me nos olhos. Santificou-me ali. Apoiou minha imagem em um altar, e vangloriou-me. Senti-me próxima do eterno, do imortal. Um dia, pode ser que eu sumisse, mas minha memória – para ele – ficaria. O que havia de tão especial? A necessidade de haver alguma coisa, pensei.
Repousou sua cabeça em meu ombro, confundiu-me com um violão e dedilhou-me feito compusesse sua obra-prima. De todas as notas, nenhuma foi mais grave do que eu notando seu sorriso jocoso e querendo tomá-lo como meu.
Posse era equívoco de quem via as próprias mãos numa dimensão maior do que a que realmente tinham. Nada nunca foi meu. Nada nunca é de ninguém. Tudo escapa entre as lacunas dos dedos. Incluindo a si mesmo. Muitas vezes vi-me escapar, até puxar-me pelos cabelos, prender-me ao chão e inventar formas mil de soltar-me.
De nada adiantava querer aquele sorriso, se nunca sequer pude guardar o cheiro da chuva em um pote. Contrariando-me, continuei querendo. E fingi que era meu. Selei-o com um beijo. Meu sorriso e meus lábios.


Postscriptum: Trecho de "Concreto".

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