quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Toda Noite Tem Seu Fim.

Todo dia acordava e ia alcançar, no fundo de seu pulmão, seu quase nulo fôlego. Aproveitava-o como se fosse o último. Não ficava contente até que a última molécula de gás carbônico saísse de seu corpo. E então descia até a cozinha, pesado e cabisbaixo, e saía a ignorar todos que estavam sentados à mesa. João tinha sua pouca paciência e seu muito mau-humor. Todo dia exibia-o pelas avenidas. Quando o mundo dava azar, João inspirava cortado, e saía a reclamar. Fazia luto, fazia céu encoberto. O arrastar de João era sinal de maus agouros. E João era ressaca. Desnecessárias eram as ofensas e palavras rudes, quando ele aparecia, apareciam compromissos no dia de cada um. João, diziam por aí, tinha sido o mais próximo do desagradável já visto. Olhando por detrás, assim, bem de longe, pode ser que dissessem que João valia ser notado. Parecia simpático, agradável. Mas a proximidade dava ênfase a seu humor insuportável. João era mesmo ressaca, Domingo monótono extendido em cima da cama. João era a soma de todos os amassados de um cobertor, inclusive - e principalmente - os sujos, e das marcas da noite anterior que deveriam ter. João era motivo para deprimir-se, ignorar, omitir-se. João era a mais pura forma de tristeza. E a mais limpa forma de alegrar-se era assistí-lo reclamar sem perder um palavrão da Língua Portuguesa. Ah! João era mesmo ressaca! Quando era achado pela vista, ficavam a revezar-se entregando copos d'água.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Todo Carnaval Tem Seu Fim.

Todo dia acordava e logo ia alcançar, no fundo do armário, seu melhor sorriso. Vestia-o com uma delicadeza cinematográfica. Não ficava contente até que encaixasse-o perfeitamente entre as maçãs do rosto. E então aparecia na sala, leve e saltitante, e saía a cumprimentar os retratos emoldurados na prateleira. Maria tinha seus poucos anos e seu muito corpo. Todo dia exibia-o pelas avenidas. Quando o mundo dava sorte, Maria encaixava o sorriso de primeira, e saía a cantarolar. Fazia festa, fazia sol. O caminhar de Maria era sinal de bons agouros. E Maria era carnaval. Desnecessários eram os confetes e as serpentinas, quando ela aparecia, estouravam fogos de artifício no céu de cada um. Maria, diziam por aí, tinha sido o mais próximo da perfeição já visto. Olhando por detrás, assim, bem de longe, pode ser que dissessem que Maria não valia um vintém sequer. Parecia miúda, compacta. Mas a proximidade dava ênfase a sua silhueta escandalosa. Maria era mesmo carnaval, feriado extendido na beira da praia. Maria era a soma das ondas de todos os mares, inclusive - e principalmente - os de morros, e das ondas que um lago deveria ter. Maria era motivo para embriagar-se, festejar, fantasiar-se. Maria era a mais pura forma de alegria. E a mais imunda forma de alegrar-se era assistí-la movimentar-se sem perder um milímetro de seu corpo. Ah! Maria era mesmo carnaval. Quando era perdida de vista, ficavam a arrastar-se implorando por um copo d'água.

domingo, 25 de outubro de 2009

Sábados.

Os dias parecem erros. As horas parecem erradas. Estávamos tão acostumadas com as tempestades, que moldamos nossos corpos aos esconderijos. Sonhávamos com a quietude, a brisa fresca e deitarmo-nos à sombra de um ipê. Sem aviso prévio, esse sonho tornou-se concreto. E como concreto mostrou-se frio e sujeito a infiltrações. A calmaria é monótona, repetitiva. Agora estamos aqui, sentadas debaixo da sombra, assistindo o vento bagunçar-nos os cabelos, entreolhando-nos. O quê é que queríamos, não era ver a vida passar? Então agora diga-me, por que estamos passando por ela?

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Quinta.

As mãos calejadas lembravam-no da juventude. Tomaram forma tão bruta pelas tantas vezes que tocou seu violino, pelos tantos corpos que acariciou. Seus dedos permaneceram fortes, mas seus movimentos tornaram-se trêmulos e lesados. O toque de veludo tornou-se incômodo e áspero. Não agradava aos próprios ouvidos ao dedilhar a 9ª Sinfonia. Perdia a companhia toda vez que tentava acariciar seu gato. Vivia só, mas esta condição só incomodava-o ao entardecer, quando seus olhos estavam cansados demais para folhear um livro, e seus ouvidos estavam doloridos demais para escutar o velho toca-discos. Gostava tanto dos agudos, dos graves, dos arranhões que separavam-nos. Gostava tanto de sentar-se frente à Cecília, rememorar alguma frase de Joyce. Tinha todo o tempo para degustar um café, devorar seus cigarros. Tinha tanto tempo para lembrar-se de sua vida. Mas o maior tempo que tinha era para arrepender-se. Viveu na velocidade da luz, desintegrando-se pelo espaço. Sua coleção de momentos era única, mas falhava ao ser revista. Acompanhado de seu gato, toda noite sentava-se à janela, reparava nas estrelas, outras vezes na ausência delas. Escolhia uma nuvem, e acompanhava-a com os olhos. Via-a desaparecer, como via a si mesmo. Tão branco e passageiro. Fazendo sombra, mas não fazendo falta a ninguém, a não ser a si.

Poesia.

A poesia verdadeira é aquela que:
leva-se uma prosa, leva-se para casa, leva-se para a cama
e lembra-se no dia seguinte.

Carne.

Sobre as flores.
Sobre o vento.
Sobrenaturais,
sobre amores.
Sob a mesa, o papel.
Sob a cabeça, uma forma de ignorar o céu.
Submerso e subentendido.
Na mão, o cigarro.
Na boca, a caneta.
Com a mão escreve sua sina.
Com a boca descreve uma cena.
Os lábios fantasiados de beijos,
redigidos em papel de seda.
Carne ferida
é carne fraca.
Carne trêmula é filme.
Carne por carne não vai ao cinema.
Ar-condicionado,
ar com condição.
A condição de ser sugado,
transformado e abandonado.
Feito a carne que em carne vira espírito.
Que vira alma.
Que vira mundo.
Que vira cabeça.
Que vira pó.
Carne com carne vira relação.
Relação vira fórmula.
E as fórmulas viram forma de calcular.
As formas e as fórmulas,
de carne com carne algo mais tornar.
Entorna o copo.
Entorna o corpo.
E em tornar-se tanto,
carne com carne torna-se desejo.
Anseio.
Ânsia.
De vômito?
De conceber.
Realiza-se um carne com carne quântico.
Cujo resultado concedido,
outorgado,
é nulo e sempre perdido.

Planeste?

O fogo acabou.
O fluído também.
O isqueiro da vida, cadê?
Acende com um fósforo.
Não, não.
Estão todos sem cabeça.
Sem cérebro.
Aquece com as mãos.
Não, não.
Estão todas guardadas nos bolsos.
Com frio, com fome, com sede.
Inflamáveis, cadê?
Inflamados, eu sei.
Inchados, apagados.
Acende esse cigarro aqui.
Com fogo, com força.
Chama, cadê?
Passaram na frente,
não chamaram você.
Vá para o começo
do fim da fila.
Que fala,
escuta.
Vai e volta.
Sem fim.
Sem fundo.
Sem fogo.
Apaga esse cigarro.
Com um escarro.
Não, não.
Apaga no meu braço.
Passa o fogo.
Passatempo.
Espaçonaverdade.
Mentira!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Agradecida.

Hoje eu não escrevo, eu imploro. Isso de colocar no papel, faz colocar-me no fogo. As palavras nunca foram minhas, tomei-as de bocas alheias. Os sentimentos nunca pertenceram-me, arranquei de outros corações. Não redijo minha história, reinvento-a junto a tantas outras. Faço-a mais deglutível. Dou-lhe um pouco de mistério. Viro ficção, utopia. Hoje eu imploro que essa minha escrita, coloque fogo nas palavras dos outros.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Canhões.

Firme, cantava antigos amores, alguns de seus idílios. Não vacilava no tom, nem na postura. Era uma trovadora dos tempos modernos. Com palavras e sentimentos preexistentes, mas nunca ultrapassados. Com solicitude mutava o ritmo para diferenciar cada um dos cantos. Cantava ali, no meio da praça, desvergonhada, quase orgulhosa. Poderiam apontar canhões para o ângulo exato de seu peito, não importaria-se. Entreluzia naquele pedaço cinzento de mundo. Era seu canto de paz.

Bom Senhor.

O dia já amanheceu escuro, nublado, nebuloso, preparando-se para um choro. O sol recusou-se a aparecer. Sequer quis deixar-se subentendido. Escondeu-se. Venal como era, negociou um dia de descanso. O céu estava de luto quando ele acordou. Esperançoso, checou o relógio. Não, não tinha acordado em plena madrugada por engano de seu organismo já tão falho. Tinha acordado na mesma hora de sempre. A hora de encarar-se no espelho e negar que aquela era mesmo sua imagem, e não um pesadelo. Naquele dia, resolveu assumir-se. Era sim aquele borrão de linhas tortas, aquelas camadas de pele amotoadas no mesmo rosto. Não era motivo de vergonha, pelo contrário, muito tinha dado e sido roubado para que seu rosto tomasse aquela forma abstrata da velhice. Vivia só, mas vivia bem, bem melhor do que aqueles em coma, aqueles derramados, estagnados em suas camas. Tinha a saúde de um rapaz...um rapaz tuberculoso, paraplégico, aidético. Mas era feliz, feliz como a cesta de frutas em cima da mesa. Todas murchas e mofadas. Tinha a certeza de que o sono da noite anterior poderia ter sido extremamente conturbado. Não foi. Graças a Deus e aos corajosos estudantes de Farmácia. Algo em seu coração pontilhado dizia-lhe que era a hora. Era a hora de aumentar a dosagem de seus calmantes, antibióticos, antialérgicos, anti-vidas, pois algo ruim estava a caminho. Era véspera de algum desastre. Previa o apocalipse. Não queria estar lá para ver, e mesmo se quisesse, as cataratas de seus olhos impediriam-no. Na véspera do começo - de sabe-se lá o que -, terminou-o. Na véspera de sua morte, matou-se.

http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

Escreva-me uma carta que descreva esse teu corpo fraco. Soma de pele e osso. Nojo. Aproximaste-o tanto do meu que senti-me infectada. Infeccionada. Suas formas pontiagudas feriram-me, sangraram. És, de longe, um vulto mórbido. Parecido ter escapado do túmulo. Apavora-me. Dá-me a vontade de chorar. Um choro lento e doído, interrompido por engasgos. Quando chegas perto e começas a falar, sinto na brisa, um pouco de seu ar. Intragável. Viciei-me em tantas coisas vis. Encantei-me com tão pouco. Agora vejo-te aí. Indigestão humana.

Do blog: http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

Vapor.

Sentiu-se queimar no mormaço de Setembro. Sentiu-se queimar no mormaço de Outubro. Sentirá-se queimar no mormaço de Novembro. Quis a chuva, e a chuva veio. Forte, ininterrupta. A chuva partiu. E ela ficou a rememorar as águas de Janeiros, Fevereiros, Marços e bossas novas. Ficou a cantar, junto as cigarras. Preparada para morrer e matar-se. Cada dia era uma folha nova em seu caderno. E uma folha a menos no calendário. Como doía sentir-se tão êfemera, ser tão passageira. Mordia seus lábios rachados, contorcia seu tronco pequeno. Era respingos de uma tempestade, evaporando...

Raivoso.

Pare de reclamar da tristeza. Pois sei que, durante a madrugada, é por ela que esperas de pernas abertas. Queres que ela cubra-te. Sugue-te. Preencha-te. Invada-te. Penetre todos os seus espaços. Queres que ela percorra cada um de seus traços, e neles esconda-se. Deseja-a do seu lado. E sei que, na minha ausência, deseja-a como um cobertor de veludo no frio. Queres que ela aqueça-te, mas sabe que só irá congelar-te. Petrificar-te. Ela ocupará a cama. Repousará sob o travesseiro. Olhará em seus olhos. Há de dizer-te que és morta. Há de matar-te ainda mais. Há de sufocar-te. Apertará sua garganta. Espancará todo seu corpo. Até que no último suspiro, faça-te confessar: Preferia suas pernas abertas esperando por mim.

(Desen)conto.

Suas mãos eram grandes, mas não o bastante para colocá-la para dormir. Eram boas no afago, desejando um sono tranquilo. Tinham por trás um par de braços mixos, acostumados a rebocá-la. Ela vivia a arrastar-se por aí, inquieta. Em sua cabeça, era um pirata em busca de seu tesouro. Mas ainda estava atrás do mapa que havia perdido. Sua loucura não era assimilada por outros, mas ele entendia. Quando contava as histórias de sua vida - desta vida, pois alegava já ter tido muitas outras -, contava com seriedade e convicção. Tinha caído lá do céu, e aí de quem duvidasse. Tinha cicatrizes da queda, exibia-as com fervor, e foi nesse caminho, o caminho entre a nave e o chão, que deixou seu mapa escapar. Tinha sido enviada somente para encontrar o que estava dentro do baú escondido. E foi em meio a busca, que conheceu-o. De primeiro recebeu dele algumas palavras ásperas, depois risadas, seguidas de um sorriso. Aquele sorriso, revelador de uma compreensão insana. Ele também estava em busca, mas de um tesouro diferente. Ele poderia até não ter caído do céu, mas caiu feito uma luva, perfeita no encaixe das mãos dela. Acompanhava-a. Quando cansava-se, vigiava-a de longe. Mantinha-a sob seu olhar cuidadoso. Preocupava-se com a ignorância alheia, e quanto esta ameaçava um ataque, punha-se ao lado dela, de punhos fechados. Se ela soubesse das histórias bíblicas além das que obrigavam-na a escutar pelas ruas da cidade, acreditaria que ele também tinha caído do céu. De um outro. E que sua pele, lisa e macia, havia sido poupada pelas asas que teriam sido abertas em suas costas. Desconhecia tanto de tudo, que reinventava a si e ao mundo todo dia. O que parecia-lhe normal. Um dia foi dormir com as mãos dele desembaraçando seus cabelos, mas ele dormiu primeiro. Resolveu assistir televisão. Passava um filme de castelos, bestas e princesas. Dormiu com aquilo na cabeça. No dia seguinte, acordou achando que seu tesouro tinha tomado forma no corpo de um homem. Seu príncipe. Saiu em busca dele. Ignorando o anjo sem asas deitado ao seu lado. Cansado demais para conseguir acordar.

Futuro.

A curvatura de seu corpo prendeu-lhe a atenção. Era um mar de morros circundando um oceano gélido. Olhou-a tão profundamente, precisando penetrá-la naquele exato momento. O que para ela deveria ter sido um lisongeio, tornou-se incômodo. Sentiu-se visualmente abusada, e secretamente envolvida. O olhar que lhe era direcionado não cabia ao lugar, nem ao momento, mas caberia em um quadro que eventualmente, ela viria a pintar. Tentaria retratar aquelas íris nebulosas com seus traços descuidados. Não limitaria-as pelas pálpebras cansadas. Deixaria-as livres para seguirem até onde tinham fixado-se. Seus interesses confundiam-se no tráfego de olhares e olhadas. Talvez teriam ficado mais claros em algum outro planeta. Aquilo que estavam vendo, era tudo aquilo impossível de enxergar.

domingo, 18 de outubro de 2009

Chá da Tarde.

Meça o espaço que separa nossos corpos. Deixe-me diminuí-lo na proporção exata. Existe um lado frio em meu travesseiro, um lado a ser amaciado. Já foi repouso para algumas cabeças, que esfriaram e endureceram-no ainda mais. Corpos já estiveram tão próximos, mas ainda existe uma medida menor, e até negativa. Um corpo pode entrar no outro, e nele mesmo repousar.

Epiderme.

É preciso que doa.
É preciso deixar-se doer.
É preciso buscar a cura,
e quando encontrá-la,
deixá-la de lado.
É preciso ver a ferida,
e deixá-la fechar,
até tornar-se uma cicatriz.
Para ser exibida,
para ser exigente,
para usar como desculpa,
para saber desculpar.
A culpa não é de quem fere,
é de quem deixou-se cortar.
As facas afiadas,
tais como as palavras.
Furam as dermes,
até que um osso,
ou o esgotamento,
façam-nas parar.
É preciso mostrar-se.
Todos e cada um de seus pedaços,
especialmente os que foram levados.
Arrancados.
Triturados.
É preciso que doa.
Nunca nos outros.

Livrai-se.

Livrou-se de todo o mal. Sozinho. Pelas próprias mãos. Soltando-as de outras. Ela sabia a forma certa de acalmar uma tempestade, mas guardava segredo. Seus beijos eram alucinógenos. Levavam-no às alturas. Depois deixavam-no fraco, conturbado. Os efeitos colaterais de consumí-la eram devastadores. Estava sempre a perder um pouco. Tinha diminuído de tamanho, tornado-se miúdo e frágil. Não tinha mais pulso, nem força para levantar sua voz. Não mais impunha suas vontades, trocou-as pelas dela. De olhos vendados, ia em direção ao caminho errado. Quando cansou-se de seguir saltitante, foi puxado pela mão. Quis alguns minutos para descansar da rotina desritmada. Tempo que foi-lhe negado. Bateu pé. Questionou. Até ser arrastado. Soltou daquela mão que outrora apalpava-lhe a cabeça, e que começava a batê-la na parede. O tempo que tinha - e queria - agora, era o mínimo necessário para salvar seu coração.

Chuva.

Por entre os prédios apontava um sol forte. Pelas vias e vielas passavam ondas de calor. Reclamava. Queria o vento fresco precedente da chuva, e ver molhar todo seu cabelo. Por bondade, o céu obedecia. Deixava a chuva cair, serena. E ela aproveitava as primeiras gotas que contornavam seu corpo. Mas logo cansava-se. Queria que a chuva ficasse só na ameaça do céu nublado. O céu, novamente, atendia. Ficavam, nas ruas, as poças. Igualmente imundas e purificadas. Incomodavam-na pela lembrança do que tinham sido. Não eram apenas rastro de chuva, eram resposta de mais um de seus pedidos, todos realizados. Sempre queria mais. Queria menos. Para não admitir que, na verdade, não sabia se queria alguma coisa...

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Madrugada.

Do lado de fora as cigarras cantam. Do lado de dentro, os cigarros contam, contam os minutos até virarem nada mais que pó. E quando pó viram, ele sente-se só. Fecha as janelas para manter a fumaça, como se fossem sinal de alguma aparição santa ou mágica. Mas a magia só aparece em seus sonhos, que logo viram pesadelos. Que fazem-no virar-se e desvirar-se na cama. E então ele acorda. E então ele repara, que quanto mais as cigarras cantam, mais desencanta-se. O cigarro vira pó. A fumaça escapa por debaixo da porta. E as cigarras perdem a magia, pois morrem de tanto cantar.

W3

Três W em uma.
Dois de copas.
Os dois de costas.
Para um W em três.
Rainhas e reis,
em seus castelos imaginários.
Três de copas.
E os dois de costas.
em um W só para os dois.

Pólos.

Brasília amarela das mamonas,
assassinada pela Brasília branca do concreto.
Protegida por céu, não por teto.
Brasília racista,
narcisista.
Refletindo seu branco nas nuvens,
exibindo-se por todo lugar.
Brasília que chove e chora.
Osmares desenharam-na,
para ser adorada, evocada.
Cidade dos cubos e cheques.
Geométrica.
(Des)medida.
Idealizada.
Tsunami de carros.
Extinção de bairros.
Enquadrada.
Aprisionou poetas vários.
Claras e Alices presas ao ar-livre.
Trancafiadas.
Eixos sem coordenadas.
Brasília: ligação do céu e da terra.
Submersa em si.
Brasília: soma do céu e da terra.
O inferno é aqui.
E não era para lá que todos íamos de qualquer forma?

Bras-Ilha

Calo ou falo?
"Cadê o lago?"
Para o lado de lá.
Para nós há,
um lago parado no ar.
Paranoá.
Para nos há.
Houve?
Não, não escuta isso não.
Ouve o que dizem por lá.
Não é lago, é poça.
Poça feita por homem,
para homem,
para nos afogar.
Baixa humildade,
aguça a secura que há.
No ar e no lago,
que ainda hei de observar.
Verei o fundo do fundo.
Afogada no meio do mundo.
Subdesenvolvido.
Verei o fundo do (parano)mar.
Aqui no meio do mundo.
Verei do meu submarino.
O sub-marinho,
subdesenvolvido,
mundo-mar que aqui há.

Libido.

Parou de correr, quis respirar. Com calma e cuidado. Os anos longe do oxigênio aumentavam as chances de engasgar-se. Flutuou por tanto tempo no universo, fazendo visitas aos mundos dos outros. Quando voltou para o seu, esperando sentir-se em casa, sentiu-se atordoado. Tinha deixado a barba crescer, o cabelo tinha tomado um tom chuvoso e os olhos estavam abastecidos. Sua voz grave acentuava a aspereza das palavras que dizia, e que ela fingia não escutar. Ele tinha voltado, como ela tinha previsto. Por mais que negasse, era dependente. Dependia da forma como ela ignorava sua brutalidade, fazendo-a parecer apenas uma mania ruim. Dependia, também, da sutilidade com a qual ela fazia seus braços furiosos tomarem a forma certa de um abraço. Quando ela cansava-se de sua voz, pedia por mais, discutiam, elevando suas vozes ao infinito. Vez em quando atiravam coisas um no outro. Palavras, pratos, promessas esquecidas. Atiçavam rancores. O rosto pálido que ela vestia tomava cor própria. O tronco dele inchava-se. Trocavam juras de ódio debaixo de um céu que não viam. Ele chegava perto, ameaçando atirá-la da janela. Ela enfrentava, prometendo levá-lo junto para um passeio no inferno. Seus olhos raivosos esbarravam-se, apontando para outras partes. Ele, então, ameaçava jogá-la na cama, para cobrí-la de pancadas. Mas era ela quem jogava-o, em uma tentativa de atiçar sua raiva. Deixava-o lá. Atiçado de outra forma. Batia a porta e saía. Hesitava, mas ele corria atrás. Puxava-a pelo braço. Atirava-a no chão. Violento, cobria-a de amor.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Oração.

Menina, venha cá.
Fale-me desse seu peso.
Aliás, não venha não.
O que falarias já sei de cor.
É fardo?
Não, é foda.
Sei que medes as palavras.
Mas palavras não tem sentido,
nem muito menos centímetros.
Imensuráveis são.
São aves e Marias,
sem caber em oração.
Deite no colo que ofertam-lhe.
Acomode-se.
Incomododada.
Está vendo a luz no fim do túnel?
Pois eu não vi não...
Menina, vá para longe.
São pais, mas não nossos,
esses apertos no coração...

Domingão.

Eixão fechado junto ao céu. Poucos carros invadindo as ruas e o silêncio. Chuva ameaçando cair. As fichas também. Vultos de presença nas ausências de calçadas. A menina que um dia conheci segue calada, reparando no que um dia foi seu tudo e que agora era um nada. A menina que conheço segue falante, dialogando com a do passado. Um monólogo de duas em uma só. A que é e a que foi - e já era? As nuvens em uma escala cinza de ser. A menina sendo o que é, o que já foi e o que quis tanto esquecer. Uma versão sorridente da tristeza. Era Domingo de calma, de alma e Domingo em seu coração.

http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

Meu perfume sempre foi fraco, o suficiente para, em raros momentos, tais como este e os que precederam-no, ser notado. Quantas vezes vistes-me abrindo e fechando aquela e outras portas? Quase que infinitas vezes. Pois da última vez que saí deixei-a entreaberta, para que a maior circulação de ar - e de sangue - acordassem-te. E acordaram, mas não a tempo para que você percebesse a hora em que fui embora. E, ainda sonolenta, percebesse a hora em que voltei. Cadê eu? Pare de encarar a porta. Estou ao seu lado. Bom dia...

Texto do blog: http://apaixonar-seasos.blogspot.com/

domingo, 11 de outubro de 2009

A Três Eixos de Distância.

Ele foi definitivamente o amor de todas as minhas vidas. Mas isso não impede que nesta, seja você.

(Só o gostinho...)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O Que Há?

Seu humor oscilava entre névoa seca e gargalhadas. Era difícil adivinhar o que seus olhos diziam, pois estavam quase sempre calados. Às vezes, alguma coisa acontecia dentro dela, e ela procurava abrigo em si mesma. Tantas outras, alguma coisa acontecia do lado de fora, e ela procurava o mesmo abrigo. Perto do impossível era tentar desvendar o que passava-se por trás daquele sorriso meio de lado. Perto do inevitável era querer ver os dois lados de seus lábios sorrindo.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Moça.

Olha, moço!
Olha o reflexo da moça no céu.
Olha o reflexo do céu e da moça.
Olha o reflexo da moça na poça.
Olha o céu na poça!
Olha o poça que veio do céu.
Olha o céu da moça.
Olha como ela usa ele como um véu!
Protegendo seu cabelo do vento,
e das poças outras que caem do céu.
Olha a moça caindo na poça.
Olha a moça caindo do céu.
Que poça profunda a dessa moça.
Um aglomerado de gotas.
Dê um palpite, moço.
As gotas caíram do céu ou da moça?

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Primeira Fileira.

As olheiras escondiam um pouco de seus olhos cor-de-nada. Eram reflexo de noites mal-dormidas e de sonhos nublados. Falava sobre solidão com uma velha amiga. Falava-lhe de como tudo na vida era efêmero, menos sentir-se só. Rememorava outras amizades, algumas mais antigas ainda, mas que não tinham durado os invernos de sua alma. Enrolando-se em palavras, desenrolava sentimentos presos na garganta. Sentimentos e sensações. Tudo estava em sentir. Sentir o quê? A brisa fresca de mais uma partida? Uma ausência latejando em seu peito? Era descrente de tudo. Deixaram-na assim. Desconfiando do destino e de tudo que parecesse simples e leve. Tinha o peso de uma pluma, mas não queria deixar-se levar pelo vento. Quando dormia aconchegada à felicidade, deixava um de seus olhos abertos para ver até onde ela iria. Era calada ao ponto de falar demais. Fechada ao ponto de ser transparente. Transpareciam, em seus olhos tímidos, todas as suas necessidades. Precisava de mais um copo, um trago, um beijo. Precisava de um Deus e algo no qual acreditar. Precisava que parassem de acenar "adeus". Queria as palavras. As palavras que amava. As palavras de amor. Não importava em sentir-se só, contanto que fosse acompanhada. Precisava sentir o calor, sem antecipar sua partida.

domingo, 4 de outubro de 2009

Que Dó.

Ele andava por aí carregado de esperança. Entretia-se planejando futuros. Ao dormir, sonhava com o amanhã, e o amanhã depois do amanhã, e os amanhãs depois desses. Era compromissado com o presente, mas deixava-o para trás quando virava passado. Era uma pessoa de café com leite e duas colheres exatas de açúcar refinado. Não corria riscos, corria deles. Seu paladar era limitado à simplicidade. Sua audição era voltada aos clássicos. Gostava do cheiro das damas-da-noite e sua cor favorita era o bege. Desacreditava na espontaneidade, mas um dia seus batimentos por minutos foram, pelo menos, o triplo dos sessenta e oito de sempre. Ela tinha os olhos dourados e arregalados. Seu longo cabelo era feito um punhado de fios de ouro arrancados de um baú de tesouros encontrado no fundo do mar. Ela era imprevisível em sua existência, como uma chuva em dia de céu aberto. Dava para ver que a felicidade dela vinha de tudo que não pudesse prendê-la. E era justamente isso que ele quis. Guardá-la entre páginas de um romance, marcando alguma parte bonita ou importante. Guardá-la como se ele fosse seu anjo. Deu a ela felicidade quando mostrou o ser tão excêntrico que era. Cheio das manias e vazio de novidades. Ela ria da forma como de tanto lutar pelo certo, ele tornava-se desconcertado. Quando percebeu que a intenção dele não era apenas divertí-la, ela escondeu-se. Ele tentou enxergá-la entre as taças que ela atirava em direção dele, entre os cacos e as cinzas caídas no chão, mas não reconhecia a forma que ela havia tornado. Enviava-lhe bouquets e recados. Recados e beijos. Beijos e sorrisos. Sorrisos esgotados. De tanto apertar, ela-passarinho escapou-lhe pelos dedos. Ele escapou para à tristeza. Um dia viu-a sorrindo em uma foto. Posando abraçada por braços novos. Sorriu de volta para ela. A felicidade que tinha naquele momento, era a de vê-la feliz.

sábado, 3 de outubro de 2009

Aprendizado Pleno.

Acordar às seis para ir dormir às dez. Dos noticiários à doce vida na tela da televisão de primeira geração. Acordando ao som de balas peridas e - sequestros - relâmpago, sendo colocado para dormir com a música-tema de uma romance televisivo. Enfrentando o cotidiano e a maratona de Domingo de algum seriado americano.
Na Sexta-feira de uma semana como as outras, que diferenciava-se apenas pela programação especial de verão, a chuva caiu e a luz faltou. O céu desabou, meus planos também. Quis poder assistir qualquer filme na televisão, com qualquer rosto famoso, qualquer pingo de emoção. O aparelho não ligava por vontade, prece, nem promessa. Assisti, então, ao reflexo de meu rosto desconhecido tornar-se protagonista da tela preta.
A chuva acabou, sem luz e sem dinheiro, desci para tomar uma cerveja na esquina das prostitutas e da solidão. No caminho para o bar, parei para reparar nas crianças que não sabiam o que fazer com a bola que tinham encontrado, não sabiam como funcionava o jogo, só sabiam do que viam na televisão. Quis parar para ensiná-las, mas a pouca memória não conseguiu resgatas o que aprendi na infância.
Cheguei ao bar, pagaria fiado, mas não valia endividar-me por uma cerveja gelada que já havia esquentado. Caminhei pelo centro, sentindo-me meio de lado. As cores das vitrines confundiam-se com o céu nublado. Céu que não cheguei a ver, não sei se pela presença de muitas nuvens, ou pela ausência de uma TV.
(Redação da escola, é.)

Precipício do Precipitado.

Solução de salmoura para os pedaços de pele arrancados de seu corpo. Soluços de lágrimas para os pedaços arrancados de si. Solução e soluços, ambos com o mesmo gosto, água com sal. Precipício do precipitado. Ardor com gosto de mar. Soluços escorriam de sua boca, carne nunca tão viva. Excretava oceanos de seu corpo, pelos poros, pelos olhos. De joelhos e almas ralados, curava-se. Ardia, queimava. Forte por ser tão fraco. Vulnerável e vulgar, escorregou nas curvas da vida. Segura o homem! Só não segura seu choro. O ardor que queima é o mesmo que cura. Só nunca foi visto alguém curar-se de amor. Pois não é doença, é loucura.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Bom Começo.

Sua cabeça estava sempre mais alta que seu coração. Comportava-se como um lorde. Mantinha-se distante e intocável. Ria da tristeza alheia, incapaz de chorar pela sua. Tinha o corpo de um rapaz, a alma de um defunto. Não doava-se, mas vendia-se a preços altos.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Protagonista da Nostalgia.

Ele amava a forma como as pernas dela enchiam-se de felicidade ao som de seu violão. Seus movimentos eram atrapalhados, mas ele via graça em cada um deles. Sentia-se triste quando seus movimentos desaceleravam por alguma desgraça. Mas não esquecia-se de amar sua alma triste e ferida. Acariciava todas as suas cicatrizes e buracos abertos, eram a forma que ela tinha encontrado para crescer por dentro. Amava suas falhas, seu caráter às vezes disperso. Amansava os demônios que escapavam de sua boca e voavam até seus ouvidos. Era doloroso o tamanho de seu amor. Era doloroso seu amor em si. Era plácido em suas tormentas, tão devastadoras e frequentes. Ele amava a forma como ela sorria, e como ela não conseguia conter o choro.