segunda-feira, 19 de outubro de 2009

(Desen)conto.

Suas mãos eram grandes, mas não o bastante para colocá-la para dormir. Eram boas no afago, desejando um sono tranquilo. Tinham por trás um par de braços mixos, acostumados a rebocá-la. Ela vivia a arrastar-se por aí, inquieta. Em sua cabeça, era um pirata em busca de seu tesouro. Mas ainda estava atrás do mapa que havia perdido. Sua loucura não era assimilada por outros, mas ele entendia. Quando contava as histórias de sua vida - desta vida, pois alegava já ter tido muitas outras -, contava com seriedade e convicção. Tinha caído lá do céu, e aí de quem duvidasse. Tinha cicatrizes da queda, exibia-as com fervor, e foi nesse caminho, o caminho entre a nave e o chão, que deixou seu mapa escapar. Tinha sido enviada somente para encontrar o que estava dentro do baú escondido. E foi em meio a busca, que conheceu-o. De primeiro recebeu dele algumas palavras ásperas, depois risadas, seguidas de um sorriso. Aquele sorriso, revelador de uma compreensão insana. Ele também estava em busca, mas de um tesouro diferente. Ele poderia até não ter caído do céu, mas caiu feito uma luva, perfeita no encaixe das mãos dela. Acompanhava-a. Quando cansava-se, vigiava-a de longe. Mantinha-a sob seu olhar cuidadoso. Preocupava-se com a ignorância alheia, e quanto esta ameaçava um ataque, punha-se ao lado dela, de punhos fechados. Se ela soubesse das histórias bíblicas além das que obrigavam-na a escutar pelas ruas da cidade, acreditaria que ele também tinha caído do céu. De um outro. E que sua pele, lisa e macia, havia sido poupada pelas asas que teriam sido abertas em suas costas. Desconhecia tanto de tudo, que reinventava a si e ao mundo todo dia. O que parecia-lhe normal. Um dia foi dormir com as mãos dele desembaraçando seus cabelos, mas ele dormiu primeiro. Resolveu assistir televisão. Passava um filme de castelos, bestas e princesas. Dormiu com aquilo na cabeça. No dia seguinte, acordou achando que seu tesouro tinha tomado forma no corpo de um homem. Seu príncipe. Saiu em busca dele. Ignorando o anjo sem asas deitado ao seu lado. Cansado demais para conseguir acordar.

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