Me grudei nela. Assim que pus os olhos nos olhos dela. Fingi que ela acabava de nascer - e nascia, de certa forma, pra mim -, fingi que eu nascia grudado nela. Pelo coração. Eu e ela pra sempre. Escrevia nossos nomes nos quadros negros da escola em que eu trabalhava - arrumei até emprego pra sustentar os cochilos dela depois do almoço. Parei de escrever. Digo, de dizer por aí que era escritor. Ela não gostava. Pior ainda se eu dissesse que era poeta. Os amigos dela me perguntavam: onde compro teu livro? E meu livro era apenas um catálogo restrito que eu cultivava na memória. E as pequenas folhas grampeadas que eu conseguia vender entre os bares pela noite. Arrumei um emprego. Até cortei o cabelo. Continuei escrevendo, de madrugada enquanto ela dormia, como se estivesse cometendo um crime. E de manhã, às vezes, a acordava com uns pequenos poemas de amor e umas cartas com juras do eterno. Ela não gostava da minha poética. Mas disso ela gostava. Achava graça. Ria. Deitava com as pernas voltadas pro teto e as balançava enquanto lia em voz alta os meus versos. Ria sempre muito, quando ria. Nunca ria pouco. Mas era quase sempre séria. Quase sempre certa. Dizia que diziam por aí que escritores eram bons de cama. Que eram muito criativos, que fantasiavam. E que era por isso que achava graça dessa minha mania. Ela chamava de mania tudo quanto fosse meu. O café sem leite. Era mania minha. Fritar a cebola antes do alho. Era mania minha. Deixar os óculos pendurados no nariz. Era mania minha. Amá-la como se fosse a única coisa a fazer na vida. Era mania minha. Foi o que ela disse assim. Um dia, numa tarde. Eu tinha que parar com isso. Ela disse. De repente, eu e ela pra sempre virou um quadro escuro. As cores escorreram dele e e eu ela era mania e eu deveria desaprender a amá-la. Ela me disse assim. Como quem cospe o catarro escondido enquanto ninguém está olhando: apressada e de uma vez só. Me grudei nela. Assim que pus os meus olhos nos olhos dela e pedi que carregasse minha vida pra onde a vida dela fosse. Me grudei nela em silêncio. Ela dizia que diziam por aí que quem escreve é sempre muito silencioso. De repente perdi mesmo a voz. Me grudei nela e desconheci a capacidade que meus joelhos tinham em sustentar o restante do corpo. Desequilíbrio. Me grudei nela. E quando ela se foi, e eu a vi. Quando ela se foi. E eu a vi indo. Quando ela se foi, assim, se fondo. E foi assim, um foi indo bem fundo. Doeu. Doeu em mim e no restante do mundo. Tombei. Quando ela se foi, ficaram só os quadros negros, e agora, sem nossos nomes, tão mais escuros.
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
sexta-feira, 16 de maio de 2014
Lançamento do meu livro de poesia
Amanhã, 17 de maio. A partir das 17h. Senhoritas Café, 408 norte, Brasília.
"De carne e concreto"
Evento no Facebook: https://www.facebook.com/events/1487001968181412/?ref_dashboard_filter=upcoming
Espero todos lá, com corações abertos!
domingo, 30 de março de 2014
Fragmentos de Marília
I -
Marília, algo em você me faz muito feliz, fico tentando
descobrir o que. Não sei, deve ser esse teu jeito certo de ser sempre tão
triste.
Chega uma hora dessas e eu só penso em teu nome, e o repito
em voz alta como se isso bastasse para acelerar as horas e amanhecer logo o
dia. É que eu sei que amanhã eu te encontro. É que eu sei que em ti eu me
perco. É que são muitas as curvas e eu nunca atravessei por essa tua estrada.
Marília, deve ser essa tua calma. Que balança sem querer os
dias e que insiste em me perturbar.
Nome de mulher, Marília, é esse o maior delírio dos homens.
Sibilar todas as tuas letras, degustar cada uma de suas sílabas. É com isso que
a gente soa frio e sente tremer de cabeça em cabeça.
É a maneira como me bastam suas consoantes. Como me apertam
suas vogais. Os seus fonemas, Marília. É como me explode e me escorrega pela
boca. Como se embaraça no meu peito e sai rouca na menor abertura dos lábios.
Marília, é como tu me acentua. Inquieta, como vai e vem sem
que eu nem perceba.
Chega essa hora e eu repito seu nome: uma prece cantada, um
mantra, uma canção de ninar, serenata de amor.
Marília no céu e Marília na terra. Razão para os quatro
mares. Por quem pulo, todos os anos, as sete ondas. E jogo flores todo dia 31
de dezembro, vestido de branco. Por quem guardo os caroços das uvas, das romãs.
Por quem não passo por debaixo escadas e nem me visto de preto em sexta-feira.
Por quem não perco a fé no mundo. Marília, minha santa de colo farto, banquete
dourado debaixo de sol.
Marília, minha sorte. Qualquer risco de te perder vive
encostado onde repousa sonolenta a morte.
É te vivendo que eu vivo: não desvie os teus olhos.
Quando te vi sorrir pela primeira vez eu soube que o mundo,
na verdade, tinha o tamanho de uma caixa de fósforos.
II.
As tuas pernas. Me derreto por elas. Teu jeito de ser sempre
janeiro, essa tua vontade de recomeçar do zero. Teu sorriso a esperar sempre o
carnaval. Teus sábados de sol. Teu mar.
Queria ter te conhecido em outro tempo. Mesmo sabendo que o
tempo em que as coisas acontecem é o tempo certo. Nunca joguei tarô, Marília,
nem deixei que lessem minhas linhas, nem das mãos, nem dos escritos. Mas eu
acredito no destino, sabe. Eu acredito no tempo. E mesmo de vez em quando
perdendo o rumo, mesmo já tendo atravessado mais da metade do caminho, eu ainda
acredito na vida.
Queria ter te conhecido em outro tempo. Outro ano. Outra
época. Que por detrás da flacidez, o corpo é rígido. Que antes a pele era
grudada na carne e a carne era grudada no osso e era tudo em cima e era tudo
duro, mas se amolecia ao menor toque. O toque, Marília, eu perdi a capacidade
de sabê-lo. Quando vem e por onde. E de que maneira. Se é cafuné ou se é um
tapa. Marília, olha bem agora pra minha cara. Esse rosto já não é meu. Ele cai,
quase se desmancha pelos lados. Mas é duro. Duro como meu peito. É que a vida
deixa os movimentos circulares de dentro relógios nos endurecerem de dentro pra
fora.
Queria ser mais forte. Tu sabe, Marília, que já não te
aguento nos braços. Tu sabe que tomo remédio pras dores fortes nas costas. Que
já chorei mais do que deveria.
Tu sabe, Marília, que a pior coisa que pode acontecer na
vida, é a vida acontecer pra gente.
III.
Chega essa hora e eu não deixo de repetir seu nome. E se me
falta saliva, eu continuo te escrevendo no guardanapo.
Não é só pelo drama, mas o amor é um tipo de morte. Eu me
morro por você. Eu me montanha. Eu me topo do mundo. Eu quase me encosto no
céu. E é por sua causa. É por sua causa...
Que eu caio, de repente.
E é de asfalto o mundo. É de pedra. É de concreto.
Tuas sílabas, Marília, tuas letras...a maneira como você me
escorrega até o estômago e eu sem saber se te acho doce ou azeda.
IV.
Que saudade dela, Marília. E que saudade de mim. Foi amor.
Eu sei, porque é essa uma das coisas que o amor faz, faz com que a saudade dela
me traga uma saudade de mim. Que saudade da vida, Marília, dos anos. Que
saudade de ti. E de quem eu fui. Nos braços dela. De quem eu era. De quem era
ela. De quando eu era dela. De quando eu era.
Marília, depois dela só tu. Depois de ti, de tu, de tudo,
mais nada.
V.
Eu quero te descrever cada uma das flores, te contar como me
lembro delas. Eu quero te falar do quintal dos meus avós maternos, de como eu
amava um pedaço de bolo de fubá quentinho depois de rolar na lama a tarde
inteira. Eu quero te descrever os dias sentados à beira do Rio São Francisco.
Marília, eu quero que você veja tudo que eu vi.
Se isso não for, de alguma maneira, amor, Marília, então
deve ser pecado.
VI.
Meu amor por Marília, como um floco de neve, era de esperar
que fosse muito mais que água. Muito mais que uma quase solidez insossa. Vindo
do céu, meu amor por Marília, como um floco de neve, era de esperar que tivesse
ao menos um pouco de carne. Ao menos um pouco de sabor. Ao menos um pouco de
pulso. Meu amor por Marília, como um floco de neve, era de esperar que não se
tratasse de uma dessas decepções sustentadas pelos sonhos da infância.
Meu amor por Marília, como um floco de neve, me fez tremer
de frio só de vê-la.
VII.
Marília, tu não tem ideia de como o amor dói, porque tu não
tem ideia da forma como o corpo responde à ausência dele. Marília, a ausência
do amor, no corpo amado, é uma coisa que realmente alcança a alma. O desamor,
ele desarma qualquer um.
Eu descobri da pior maneira. Achando que o mundo esperaria
eu dar minhas voltas pra que depois desse as dele. Eu deixei que o tempo
percorresse por vias e artérias, ininterrupto. Eu descobri partindo, e olhando
pra ela depois de todos aqueles anos. Eu descobri que era preciso partir pra
saber voltar.
E pior do que olhar para ela depois de todos aqueles anos e
constatar o tanto que havia mudado, foi olhar para ela, depois de todos aqueles
anos, e constatar que ela havia me mudado dali, de onde eu era nela.
Eu descobri que o mundo dá suas próprias voltas. E que nem
tudo tem sua própria volta no mundo.
VIII -
Eu peço a Deus todas as noites pra poder te assistir
entrando no ônibus. É tarde. Eu sei só pelo barulho dos carros lá fora. Fica,
não me deixe, não me abandone. Não precisa voltar, é só não ir. Marília, vá.
Não sei se hoje chove, mas vá, antes que chova. Antes que eu chore. Marília,
esses comprimidos me deixam louco.
IX -
Quantos amores, Marília, serão os últimos até que algum seja
verdadeiro? Quantos amores, Marília, até a gente aprender a amar? Estou ficando
velho. E cansado. E ainda mais velho, isso a cada nova palavra. E rarefeito. E
fraco.
Marília, será se hoje o céu chora? Eu juro, era feliz até
logo agora. Mas de repente, me deu uma vontade de me chover inteiro...
X -
Eu tenho medo de dormir, Marília. E não pelos pesadelos. Eu
pouco me lembro, eu pouco me sei, e eu já nem sei se sonho. O negócio é que
tenho medo de que qualquer sono seja o último. Medo de me entregar. Marília, eu
não estou pronto para morrer de uma vez por todas.
XI -
Marília, tu é mulher pra jantar todo dia. Pra comer com
arroz, feijão e muita pimenta, lambendo os beiços, te deixando escapulir pela
beira do prato, só pra pegar com os dentes. Marília, tu é mulher pra quem se
escreve cartas enquanto expatriado, no meio da guerra. Mulher pra carregar foto
na carteira, e beijar cheio de saudade. Marília, tu é mulher pra prender os
olhos e o rabo de qualquer um. Pra comer de colher. Com as mãos. Pra se perder
sem querer voltar. Pra apresentar aos pais. Entrar de braços dados na igreja.
Deixar flores na janela. Pra esquecer do carnaval, do resto do mundo inteiro.
Marília, tu é mulher demais pro pouco de homem que sou.
XII -
Marília, se tu realmente existe como existe na minha
imaginação, se tu realmente é a mulher que eu quero que seja. Marília, se tu
realmente for - Marília, por favor, fique...
XIII -
Marília, eu tô sozinho. E de repente me deu saudade da tua
voz. De repente, no meio da manhã. E hoje, eu sabia, você não viria. E horas
depois, quase como piada, alguém disse teu nome. "Marília", feito
cuspe. Como o mundo deixa que te pronunciem assim?
Marília, eu te vejo, mas não te enxergo. Será se teus
cabelos já passaram dos ombros? É estranha a forma como as coisas se
transformam. Uma hora você era tudo, na outra já não sei mais nem se tu ainda
se lembra de mim. Tu ainda se lembra de mim?
Marília, eu sou sozinho. Tenho sido assim a vida inteira. Eu
sou humano. E só me dei conta agora, perto da hora do jantar.
XIV -
Marília, todo dia deito pra dormir com tua ausência.
Eu quase não durmo, Marília. Eu quase quase quase não passo
disso, de quase, uma possibilidade. Eu tô vivo, mas não me sinto. Eu vivo e
todo dia morro, e desabo sem nem precisar de vento, sem nem precisar de chuva.
Eu morro abaixo por qualquer coisa. Marília, ontem eu fui falar com o Zé. O Zé
que tu não conhece. Eu fui falar teu nome. E o Zé que também não te conhecia.
De repente, ele me disse, Marília, que queria dar rosto ao teu nome, que já te
sentia bem próxima. Marília, eu quero te esconder do mundo. E eu nem te vejo.
Marília, o amor consegue ser totalmente egoísta. Mas eu não consigo ser nada
sem ele.
Marília, se eu não te amasse, que mais na vida eu faria?
XV -
Essa fome, Marília, essa incompletude, tudo isso uma hora
passa. O coração, um dia, desacelera, Marília. E o relógio passa a girar mais
rápido que o mundo. E a gente sente vontade de puxar uma cadeira e sentar na
varanda pra assistir a vida passar. Um dia o apetite diminui, Marília, um dia
ele quase some.
XVI -
Marília, querem te saber, mas eu não quero que te saibam.
Toda hora me perguntam de você. Me olham tristes por causa do meu olhar de
tristeza e me colocam as mãos nos ombros, nas costas, e me perguntam: como
estão as coisas?
De que coisas as pessoas todas tanto falam?
E ainda continuam: como estão as coisas? E a tal moça, a
Marília?
Marília, eles ainda te pronunciam como se tu não valesse um
minuto a mais de salivação. Marília, eles te pronunciam sem antes te bochechar,
sem nem mesmo te gargarejar. Eles te pronunciam como se tu fosse palavra,
Marília. E palavra não vale nada!
XVII -
Marília, te esconde do mundo!
Estava olhando pela janela e descobri que ele é feio. E que
ele não te merece. Marília, te esconde aqui debaixo do lençol. Hoje eu tenho
certeza de tudo, e mais tarde chove. E quando chover, Marília, me abrace forte.
Que seu medo de trovão me dá medo que troveje.
XVIII -
Não sei por onde te amar, Marília. Estou todo do avesso. Não
sei onde a gente se encosta. Não sei de que maneira te encontro. Tu sabe a
maneira como quase sempre me escorrega. Me escapole pelas mãos. Tu sabe como me
escapar quando bem quer.
Não sei por onde te amo. Marília. Com as mãos, às vezes, eu
não enxergo quase nada. E tu se afasta. E teu caminho é quase sempre o meu
contrário. E às vezes, tu nem aparece. Às vezes tu nem me liga. Tu nem se
importa quase sempre, né, Marília?
E eu te amando pelas beiras. Pelo que me sobra de ti.
Marília, tu sabe que é só abrir a porta e ir embora. Tu tanto sabe que quase
sempre vai. Marília, por favor, sempre que for volte. E sempre que voltar finja
que fica. A vida não é tão macia quanto parece...
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
Não-conto
Eu associei a felicidade a ela de tal maneira que era impossível ser feliz depois que ela se foi. No meu imaginário, eu só podia - e poderia - ser feliz ao lado dela. Sem ela, a felicidade era um ser arredio, traiçoeiro. Que preciso fosse, se punha de pé sobre um par carnudo de pernas, por detrás de um batom cor de sangue, ou dentro de um exagero de copos. Sem ela, eu fugia disso. Se a felicidade me vinha, eu catava todas as minhas coisas e mudava de calçada.
Não aconteceu de ser da maneira como precisamos acreditar que acontecerão os amores. Olhei e na hora que os olhos dela me alcançaram, virou o rosto. Quando entrelaçamos os dedos, soltou minha mão. Não aconteceu de ser assim, uma história que valha recordar. Nos conhecemos do nada, e de repente, eu a reconhecia em tudo.
Se a lua estava cheia a ocupar o sol. Se o dia amanhecia azul. Se fazia frio. Se aparecia um filme novo nos cinemas. Se fazia calor. Se a temperatura pouco se fazia perceber. Se faltava lua no céu. Se amanhecia dia cinzento. Se abria um pote de palmitos. Se derramava sabão em pó no chão. Se olhava para os dois lados antes de atravessar a rua. Se atravessava sem olhar. Se olhava e não a via. Se ela me atravessava. Ela sempre me atravessava.
Eu associei o universo a ela de tal maneira que era impossível até que os astros orbitassem em sua ausência.
Órbita é a trajetória que um corpo percorre ao redor de um outro, influenciado por alguma força. Órbita também é o nome da cavidade, do buraco, do vazio na face do esqueleto humano, onde se assentam os olhos e toda a sua parafernália. Orbitar é estar ligado a algo, de maneira a ter seu movimento submetido apenas àquela existência, por uma força que pode vir do além. Órbita, eu concluo, é o lugar a partir do qual os olhos veem. É onde precisam estar para enxergar. E assim eu a vi, com meus olhos bem assentados, e veio daí uma força sabe Deus lá de onde, e órbita passou a ser, para mim, também a trajetória ininterrupta que passei a fazer em torno dela.
Orbitando, assim me ocorreu o amor. De maneira a, depois, se tornar um vazio. Longe dos olhos, mas apertado no peito. Afetado pela gravidade de tal maneira que era impossível seguir um novo trajeto sem a leveza dela. Impossível segurar os ombros por demais atraídos pelo chão. Os olhos também, desorbitados, a partir do momento em que não mais a viram.
Não aconteceu de ser da maneira como precisamos acreditar que acontecerão os amores. Olhei e na hora que os olhos dela me alcançaram, virou o rosto. Quando entrelaçamos os dedos, soltou minha mão. Não aconteceu de ser assim, uma história que valha recordar. Nos conhecemos do nada, e de repente, eu a reconhecia em tudo.
Se a lua estava cheia a ocupar o sol. Se o dia amanhecia azul. Se fazia frio. Se aparecia um filme novo nos cinemas. Se fazia calor. Se a temperatura pouco se fazia perceber. Se faltava lua no céu. Se amanhecia dia cinzento. Se abria um pote de palmitos. Se derramava sabão em pó no chão. Se olhava para os dois lados antes de atravessar a rua. Se atravessava sem olhar. Se olhava e não a via. Se ela me atravessava. Ela sempre me atravessava.
Eu associei o universo a ela de tal maneira que era impossível até que os astros orbitassem em sua ausência.
Órbita é a trajetória que um corpo percorre ao redor de um outro, influenciado por alguma força. Órbita também é o nome da cavidade, do buraco, do vazio na face do esqueleto humano, onde se assentam os olhos e toda a sua parafernália. Orbitar é estar ligado a algo, de maneira a ter seu movimento submetido apenas àquela existência, por uma força que pode vir do além. Órbita, eu concluo, é o lugar a partir do qual os olhos veem. É onde precisam estar para enxergar. E assim eu a vi, com meus olhos bem assentados, e veio daí uma força sabe Deus lá de onde, e órbita passou a ser, para mim, também a trajetória ininterrupta que passei a fazer em torno dela.
Orbitando, assim me ocorreu o amor. De maneira a, depois, se tornar um vazio. Longe dos olhos, mas apertado no peito. Afetado pela gravidade de tal maneira que era impossível seguir um novo trajeto sem a leveza dela. Impossível segurar os ombros por demais atraídos pelo chão. Os olhos também, desorbitados, a partir do momento em que não mais a viram.
sexta-feira, 17 de janeiro de 2014
Esboço para construção do outro I
Estou vento e não vôo. Eu até tento, mas não vou. Eu fico. E
com isso, trago de volta a memória daquele tempo: sem datas, só imagens e um
cheiro. De erva-doce.
E sua sombra na beira do mar. E a moça na varanda do quarto
andar do prédio seguinte, sempre com as pernas para o alto, lendo, tomando um
café ou chá, com ou sem leite, não sei se adoçado com mel ou açúcar, ou mesmo
puro, mas com muito gosto, lambendo os beiços, com as pernas sempre para o alto,
agitando os pés como se regesse uma orquestra.
A lembrança das ervas-daninhas, que crescem em torno e por
dentro dos jardins mais bonitos, rapidamente, antes mesmo que se pense em
pensar, antes mesmo que não se pense e se pisque. Num piscar de olhos. As
pernas postas para o alto. As pernas. O azul do céu. O óbvio, clichê.
Se eu não te enxergasse você nem mais me veria. Seus pés
cheios de areia. Atados ao chão.
Estou vento e nem assim vôo. Fico. A pensar nos beiços
melados dela, com suas pernas para o alto, quase encostando o azul do céu que
ela era.
A orquestra que ela regia em mim.
Eu chego a ficar sem ar. Estou vento, mas me sufoco. Os
beiços dela se avermelhavam debaixo do sol. E quando pareciam quase sangrar, se
envergonhavam, ainda apurando o tom. Me barganhavam e eu ficava roxo, a custa
de nada.
Nosso amor morria, já ali, e morreria, já mais na frente,
por inanição. Eu não disse em voz alta, mas mesmo negando, você sabia.
Que eu te olhava e você me olhando não me via.
Estava vento e sem nem bandeira você se levantava. E desembaraçava
os fios de cabelo, conferia a bolsa, pegava o elevador, e saía para passear. E
passavam horas, quase dias, quando voltava, os braços presos, as mãos quase
roxas de tanto segurar sacolas. Os lindos vestidos que vestia à noite, para
entornar duas garrafas de espumante e então me despir da minha própria
virilidade, depois colocar o pijama e dormir.
A nossa vacuidade.
Vá com cuidado - me
disseram ainda, antes mesmo que te amasse. Antes mesmo, digo, que tivesse
qualquer noção desse amor possível. Que, na verdade, foi de cara e tanto que eu
te amei bem antes, amei assim, mesmo sem nunca nem te amar.
Amor que nasce no primeiro instante. Nasce assim que a
presença aponta.
Eu achava que era culpa das suas pernas muito longas. É bem
isso, o conselho a ser dado: não ame mulheres com as pernas muito longas,
porque se abrem na mesma rapidez com que se levantam para ir embora e nunca
mais voltar. Mulheres de pernas longas, quando se vão, dificilmente voltam. Eu
li no jornal. Ou escrevi, com a borra de café.
Estou vento e não vôo. Até briso, mas não decolo. E bem
fecho os olhos, e te vejo, e não te culpo. E quase que, ainda, te tenho. Me
culpe mas, por favor, me desculpe. Quando angustiado, o amor se enrola pelas
pernas e se pendura pelos braços e te sacode pelos ombros: era você e não
outra. A gente custa a entender. E a vida cobra caro. Era você e não ela, mas
nem isso me impediu de me debruçar sobre a janela e assistir o amanhecer: e
assistir a ela. E me enrolar pela língua e me pendurar pelas coxas e me sacudir
pelas cabeças: era eu e ela. Se pudesse, até mares-ia, mas já estou marejado.
Nosso amor morria, já ali, e morreria, já mais na frente, e
mesmo sabendo com certeza disso, eu não podia acreditar. É que eu não estava
nunca pronto para me vestir de preto e nos chorar. Nunca pronto nem para nos morrer e nem para
nos matar.
As pernas...são sempre as pernas. E as dela ficavam lá
apontando para o alto, bem quando meu rosto, para te encontrar, vivia olhando
para baixo.
Me culpe. Me desculpe. Primeiro foram as suas pernas. Muito
longas para acompanhar. Nos matei com ela, dos pés fáceis de alcançar. Bastava
olhar na direção do céu.
Estou vento e não vou. Sentado, assistindo da varanda, o
tempo passa. E ainda a assisto com os beiços melados tentando fingir para mim
que a vida pode ser doce.
Estou vento e tudo o que vejo eu arrasto. Que assim eu te
mato em mim me morrendo de saudade.
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