terça-feira, 21 de junho de 2011

Boneca de Pano.

Às vezes ela me acordava mais cedo do que o esperado, só para abrir aquele pequeno - mas nem por isso menos belo - par de lábios e soltar a tão sua voz aguda me dizendo que meus olhos estavam cheios de remela e que meu corpo não tinha cheiro de nada além de suor cigarros e álcool. Reclamava, reclamava, eu jurando que não pararia nunca, e me fazia rolar para longe. Eu dava sorte quando não caía de cara no chão. O chão era muito gelado, branco - como as paredes -, feito de azulejos - eu nunca consegui achar conforto em quartos cujo os pisos não fossem de madeira. Ela sempre reclamava da casa tão sem cor, mas não tinha muitas opiniões se ainda estava morando com os pais. Quando eu caía, era muito maior o escândalo. Ela se sentava na cama e, pelo barulho, eu já sabia que seus palavrões me arranhariam os ouvidos. O problema era o barulho, ter puxado o lençol, não ser forte o suficiente para ter rolado apenas. O problema é que ela só sabia me amar com grosseria. Ao menos, era assim na maior parte do tempo. Ainda lembro - e é claro que eu me lembraria - da primeira vez em que ela conjugou amor em primeira pessoa. Era um Sábado, já era madrugada. Não sei quais foram os motivos, mas eu andava, sóbrio, de posto em posto atrás de bebida com um ex-amor e três amigos, enquanto ela estava do outro lado da cidade, heroicamente embriagada, com nenhum amor - seu saldo, neste quesito, era zero -, mil amigos, e uma porção de admiradores. Ela ligou, e mesmo com todo o entusiasmo, eu deixei que tocasse, talvez um ex-amor, naquela noite, fosse fazer bem. Aliviar algumas coisas que não devem ser aliviadas quando já se está entregue. Ligou outra vez. Na dúvida, eu atendi. Entre gargalhadas e vozes de fundo, eu escutei ela dizer que me amava. Desde a infância eu escutava dizer que o homem já havia pisado na lua. Mas sempre me mantive cético quanto a isso. Que lua o quê? Que amor o quê? Se a saia dela já havia rodado por metade da cidade, por quê logo eu? Para mim, nem lua, nem ela. Duas coisas tão impossíveis. Sabe de quantos sonhos se faz a distância? Ignorei, culpei a vodka. Permanecemos no silêncio até o fim. Às vezes olhávamos com aqueles olhos que suplicam por eternidade. Raramente trocávamos elogios. Não éramos bons em sermos apaixonados. Tinham dias nos quais passávamos reto. Explicávamos por via de uma ligação quando dava mais tarde. Era complicado admitir que sabíamos que seria aquilo desde o primeiro momento. Desde o primeiro momento em que você foi enquadrada pela porta e eu, coincidentemente, olhei. Talvez toda a tortura pudesse ter sido evitada se os olhares não tivessem convergido. A gente se encontrava em horário marcado na segunda esquina à direita. A parede de tijolos, um adesivo desbotado do Flamengo. Mesmo que chovesse, estávamos ali. Quando era fim de semana, separávamos os horários. A vida exige muito de nós. E nós exigimos muito do tempo. Todos sabiam. Ainda assim, gostávamos de separar as coisas e manter como se tudo fosse um segredo. Infelizmente, não tínhamos a grana para sustentar noites em hotéis, nem motéis. E raras foram às vezes em que você me deixou acordar no horário que eu quisesse. Estes eram os dias em que você, sem falar nada, deitava sobre minhas costas - provavelmente despidas -, e ia beijando como se nada na vida tivesse fim. Você ia me percorrendo como quem pedisse aos céus por prorrogações. Acho que, esses momentos, foram todos reflexos dos minutos em que você cogitou a possibilidade de, aquela estranheza toda, acabar nos afastando. Não conto dos repúdios, nem das exceções, como se você fosse a única culpada por isso. Fui eu que precisei da perda para admitir amar. Fui eu que, por suspeitar de você, apadrinhei todos os sete pecados. Eu estourei por tanto não saber como te amar. E foi através desse estouro que eu saí em busca de amar outras. Eu procurava seus fios dourados nos cabelos delas. Ao menos um, para que me desse cor. Se eu te perdi, foi porque eu te deixei sem outros caminhos. As pontas dos seus cabelos molhados batendo nas costas, se tem uma coisa da qual nunca esquecerei, será da primeira vez que eu te vi nua. Não pela imagem de mulher exposta, mas por ter sido a única vez em que eu te olhei com os mesmos olhos assustados desde a primeira vez em que eu te vi. Ali, supostamente, eu deveria ter entendido tudo. É como se amores, tais como este, só acontecessem duas ou três vezes na vida de uma pessoa - isto com sorte. Penso, hoje, que me bastariam as cócegas na nuca - vindas de sua respiração quando deitava-se sobre minhas costas - para que eu reencontrasse qualquer razão para viver que eu pudesse ter perdido minutos antes. E me bastaria, para o resto da vida, um quarto branco - sem janelas e estranhamente frio -, desde que houvesse você dentro.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Só Despedida.

Semana passada eu saí correndo da sala de medicação por não aguentar mais ver agulhas, nem encarar todo aquele branco imparável. O que aconteceu foi que, na noite anterior, bebi tanto, mas tanto, que pouco depois de me dar por satisfeito, passei cinco horas vomitando, depois dei um intervalo de duas horas para me deitar no chão do banheiro e encarar o teto. Nunca tinha percebido o quão feio e embolorado ele está. Dá uma sensação de sujeira, uma coisa que me remete a abandono. Minha mãe lavava todas as latinhas que comprávamos, eu me prometi que não faria isto quando "crescesse". Era uma coisa meio psicótica, sei lá. Enfim, durante o meu intervalo lembrei de uma mulher que me ama lá de longe. Não sei porquê, mas ela simplesmente me ama, teve uma vez, que em um surto de carência, despencou de lá só para me dar uns beijos. Foi legal, mas ela andava na ponta do pé, e eu não consegui parar de odiar isso. Às vezes eu achava até bonitinho, parecia que ela estava escalando as nuvens, mas aí eu me lembrava que ninguém nunca foi capaz de fazer isso, e aí eu tinha vontade de arrancar fora os pés dela. Ainda que, mesmo sem eles, não era, nem nunca seria ela. Quando o coração não bate mais forte, nem enfraquece, não adianta insistir. E enquanto eu estava naquilo de encarar o teto, tinha uma outra mulher dormindo parecendo morta na minha cama. Ela vive aparecendo por lá, isso já faz uns oito anos, quase nove. Já mudei a cama de posição, já mudei de cama, mas ela continua indo parar lá. Os dias, geralmente, têm o céu mais aberto quando acordo com ela ali. Não sei em que ponto quero chegar. Antes de entrar na sala de medicação, fiquei umas boas horas oscilando entre a privada do banheiro de deficientes e as cadeiras de plástico da recepção. Tudo que eu mais queria era que arrancassem fora o meu estômago. Desejar isso me levou à nostalgia dos tempos em que eu me jurava tão sofrido que dizia dispensar a maior parte das várias utilidades de um coração. Quando a gente é mais novo tudo é tão maior. Hoje fomos tomar uma cerveja, eu e ela - a mulher da cama -, como fazemos todo dia 17 de cada mês - é quando a gente se encontra, se beija, se despede e diz sem dizer que se vê quando der. Ela me contou que na semana anterior tinha ido para cama com um cara que ela conheceu na adolescência e cultivou um amor-paixão platônico por cinco anos até ele dizer que ela era gordinha demais para ele. Reclamou durante horas dos dias que passou tentando descobrir cada coisa que ele mais gostava, e cada lugar que ele frequentava, e todos as meninas com as quais ele já tinha se envolvido, e eu deixei soltar que acho esse troço de amar meio psicótico - pior, ainda, que lavar todas as latinhas. Ela só não me deu um tapa na cara porque da última vez que havia tentado uma coisa dessas, eu acabei por faltar no dia 17 do mês seguinte. É claro que discutimos, a gente sempre discute. Porque ela sonha em constituir família, e eu só espero ter dinheiro para nunca faltar bebida. Porque ela, quando bêbada, admite que devíamos nos estabelecer juntos, e eu tenho medo de perder a hora do jogo. Ela é meu amor café com leite. Quando a gente quer, a gente faz, você nunca escutou isso? Ela diz e os dizeres dela saem todos com cheiro demais de cachaça. É isso que ela me diz quando eu tento dizer que é ridículo falar que vai querer alguém para sempre. No começo, escutar isso, me dava vontade de vomitar - mas só uma vezinha só -, mas eu já me acostumei em aceitar idéias diferentes das minhas. A verdade é que eu odeio a hora que ela vai embora, porque só ela sabe me deixar seguro. Como se só ela pudesse me levar até o ponto mais alto, sem me deixar cair do balanço. Eu tenho muito medo de que, um dia, ela vá embora, e não volte no mês seguinte. É triste demais sentar para beber uma cerveja sozinho. Pode não ter sido à primeira vista, mas foi, é, será, amor. Nem teve gosto de cereja, nem tocaram os sinos. Alguma coisa voou, mas não posso garantir que foram as borboletas. Às vezes você não fica assustado pensando na possibilidade de nunca mais ser amado?

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Deitados na Banheira.

Você me dá vontade de escrever, de colocar para fora. Se eu imaginasse que você seria o único leitor, eu seria capaz de escrever um livro agora. Do tamanho de uma Íliada, ou Odisséia. Eu quero te explicar porquê, depois de tanto tempo, eu resolvi te escrever hoje. Por quê logo hoje? Se não é nem Sexta, nem Domingo, nem Segunda. Se é só Quarta-Feira e se nas Quartas-Feiras não parecem haver muitas emoções. Não é dia de estar ansioso para o fim de semana e para um porre bem dado. Nem dia de querer arrancar a cabeça por tanta ressaca. Nem de dizer: porra, de novo não. Porra, de novo não. Eu quero dizer isso hoje. E tomar um porre daqueles, depois sair cambaleando e tentar enfiar minha chave na porta do vizinho, e reclamar por não ter conseguido girar a maçaneta. E daí amanhã, quando parecer um sonho distante poder abrir os olhos, acordar de ressaca, e pensar consecutivas vezes em como seria bom arrancar minha cabeça. Só por uns dois minutinhos, talvez cinco. Só para respirar melhor. Para tudo parecer mais leve. Quantas vidas custa um coração? Com quantas vidas se paga por um coração? Digo, depois que ele parou de bater. Sabe, quando a pele já está tão branca, tão branca, que ali parece que realmente há uma "cor" mais pura. Melhor, uma paz na pigmentação. Parece que existe uma ordem natural das coisas, sobre a qual eu não paro de ouvir falar. Tipo, nascer, crescer e morrer. Uma ordem que não deveria ser revertida. Como o Pai, o Filho e o Santo. Quando o Filho vai primeiro que o Pai, parece que não há Santo que baste para apaziguar, nem acalmar. Você não acha desnecessária a forma como as pessoas se dizem familiarizadas com as dores dos outros? Como se isso fosse aliviar as coisas, esse "não se sinta só" quando, na verdade, todo mundo veio ao mundo com o intuito de respirar sozinho. Se, um dia, me for necessário, eu peço que dispensem todos os aparelhos. Eu quero ter a consciência e o direito sobre a minha respiração. Não quero viver às custas de ninguém, nem quero que prolonguem algo que já tenha fugido do meu controle. Às vezes eu queria que o Universo fosse uma barraca e o mundo fosse um balde só para eu poder ter a opção de chutá-lo para fora. Meu Deus, estamos beirando o meio de 2011 e por quê ninguém acorda? Estão todos extasiados com a emoção de, muito provavelmente, sobreviverem a mais um "fim do mundo". Estão todos anestesiados com a emoção de puta que pariu essa é a vida. Sim, essa é a vida. A sua vida. E de quantas mais você vai precisar para entender isso? Estão todos preocupados com a salvação das galinhas, uma possível ressurreição do Bin Laden, a redenção ou não da humanidade caso, em 2012, o planeta seja invadidos por alienígenas? Quando os batimentos cardíacos foram substituídos pelos alertas de novas mensagens na caixa de entrada? A gente passa tempo demais calculando quantas horas no fim de semana vamos poder dormir e não ter que escutar uma velha gorda nos dizendo como éramos rechonchudinhos e rosados parecendo porcos na infância. A gente passa muito tempo achando que cada amor vai ser o último. E mais tempo ainda se corroendo por pensar que irá morrer no segundo que aquela pessoa "x" abrir a porta e ir embora para sempre. Se brincarmos, talvez morem mais pessoas na nossa cidade hoje, do que em nosso país na época em que nossos tataravós nasceram. E a vida segue mais rápido para o esgoto do que nossas próprias fezes. Eu juro que hoje eu não aceito se me dizem que o mundo é redondo. O mundo é a porra de uma pirâmide e só quem pode está no topo. E ninguém quer saber dos problemas de ninguém. Porque a bateria do telefone vai acabar ou tem hora para voltar pra casa. Por quê apanhar por um outro se você não apanha nem por méritos próprios? Pra quê desobedecer as ordens? E perder o fim de semana? Eu acho que as coisas talvez pudessem estar mais amenas se a cerveja estivesse gelada. Se eu não tivesse chegado e encontrado apenas três latinhas na geladeira. Se eu já não estivesse na metade da segunda. Se não fizesse um frio da porra e eu conseguisse sair de casa para comprar mais um engradado. Se a gente está mesmo na merda, por quê não aprendemos logo a nadar? Eu fui sincera quando disse que sinto falta de ler toda a sua confusão. Confesso que senti saudade dos seus amores mais do que dos meus. Que nas minhas folhas enganam na beleza, mas que perto dos seus são só atos errôneos. Se até seus amores foram mal-amados, quem dirá os meus? Tenho dado tempo ao tempo, mas ele não tem dado atenção para mim. Um dia desses, dirigindo, perto das quatro da tarde, quando o sol, aqui, não faz nada além de atrapalhar a visão, eu fui capaz de cometer a estupidez de pensar em suicídio. Não que o ato seja estúpido, por muitas vezes não é. Mas quando não se tem problemas reais, não é, nem de longe, solução. Sabe, tem gente que vira e diz: 'aconteceu por um momento de loucura'. Sendo que, às vezes, foi um momento de lucidez. Não sei se o único, mas o último. E, provavelmente, o mais importante. Eu te perguntei se você não achava desnecessária a forma como as pessoas se dizem tão familiarizadas com as dores dos outros. Com aquela intenção ingênua mais ignorante de dizer "não se sinta só". Como alguém ousa pedir para que alguém não se sinta só? Quando se sentir acompanhado, na verdade, pode ser um dos piores sofrimentos? Não que a solidão seja remédio. Ao mesmo tempo que companhia nunca será cura. Solidão é como uma contenção de danos, um esconderijo, um porto-seguro. Companhia pode ser um alívio ou um estrago. Quando a gente vai aprender a respeitar? A não sufocar? E parar de dizer que a fraqueza era dos outros quando podemos ter sido os que afastaram o banco? Dor é, por si só, algo solitário. A comoção é a ação do coletivo frente a isso. Dó dos que se dizem equilibrados, e vivem por aí pedindo por juízo. Dó dos que vivem sentados na mesma cadeira acolchoada e nunca se inclinaram sobre um parapeito. A loucura é um dom que nasce com poucos. Saber amar, e ser amado, também. Eu queria não ter apagado seu número. Ontem eu teria te ligado de madrugada. Tem uma menina aqui que me lembra você. Ela tem tudo o que é preciso para ser um dos seus amores a serem escritos. Ao mesmo tempo, ela desperta em mim a mesma vontade que você sempre me deu de escrever e escrever e escrever até esgotar todas as discussões e assuntos. Sinto saudades do tempo em que você me chamava de amor, e sem saber, eu te chamava de amigo.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Só Pode Ser.


Love is watching someone die.


Da última vez que chequei, amor era coisa de quem não dava a mínima para a felicidade. Sabe, para mim, é como decidir morrer de overdose em uma Sexta-feira à noite, enquanto todos enchem a cara, e falta tempo para, sequer, notarem que você está há mais de duas horas no banheiro. Toda aquela coisa de se entregar, de prometer, de decorar cada uma das manchas do corpo de uma outra pessoa - sem nem ser capaz de enxergar todas as suas. Amor parece coisa de quem tem bastante tempo ocioso. Porque não é possível uma pessoa, com ocupações e horários, encontrar tempo para se deitar no gramado e ver formas nas nuvens, e suspirar. Não, não é que eu tenha me amargurado ao passar dos anos. Não é que eu tenha alguma incapacidade e isto que eu estou falando seja reflexo de alguma inveja que enxergo e ignoro. É só que se a gente parar para pensar demais nessas coisas, a gente acaba se tornando cada vez mais e mais cético. Basta olhar para os lados, aumentar o volume do rádio, passar na frente de uma vitrine de livraria, ir ao cinema. O amor não faz ninguém feliz. Sim, há quem ande de mãos dadas e sorria. Mas, pessoalmente, acho que isso é mais uma questão de afinidade. Um reconhecimento mútuo. Sabe aquela coisa de olhar nos olhos? Que chamam por aí de "amor à primeira vista"? Se acontece, é quando a gente sabe, logo de cara, que passaria horas e mais horas encarando o tédio na companhia da tal pessoa. As outras formas de amor se dão por insistência. Tenho um casal de amigos que levou mais ou menos uns dois anos para que realmente se importassem um com a opinião do outro. Antes, só sabiam dialogar na cama. Ficaram casados por dez anos, assinaram os papéis do divórcio na semana passada, quando perceberam que realmente haviam desperdiçado tempo insistindo em uma coisa que não existia e que nunca havia estado lá. Eu precisaria de umas quatro reencarnações para me livrar de uma frustração dessas. Sabe, estão todos certos quando dizem que a vida é curta. Ela realmente é. Durante um almoço, você pode ter uma parada cardíaca, cair de cara no seu prato de macarrão, e ser velado na sétima capela do cemitério sem direito à uma homenagenzinha no jornal local. Eu prefiro que não sofra. Mas, se for insistir, pelo menos vá por algo que valha à pena. Sei lá, faça uma tatuagem na costela, assista Titanic, compre um pacote turístico para o Oriente Médio e simule estar perdido por um deserto. Porque o amor - o término ou a fuga dele -, tem a estranha capacidade de invadir todas as camadas que compõem uma pessoa. É por ele que um dia você sorriu e, agora, chora. Ele vai da epiderme ao karma. É feito fosse coisa de quem gosta de apanhar de graça. Faz mais frio quando se perde o amor. E as coisas que tinham vida vão perdendo o hábito de respirar. E os olhos adoecem e tudo perde a cor. Quer dizer, alguém realmente já amou? Ou foi tudo mesmo solidão? Na verdade, eu mesma não duvido de toda a energia envolvida neste processo de amar - ser amado, se desarmar, para no fim, desamar, ser desamado, derrapar, ser derramado. Começa a semana. Termina o amor. Porque, por mais que acordem juntos todas as manhãs, e troquem garfadas na hora do jantar, às vezes é preciso ficar até mais tarde, ou aumentar as horas de expediente, ou abaixar mais a cabeça para dar uma olhada em um par de pernas, e não concordar no canal e ir ler um livro no escritório. A rotina exige uma saída dela mesma. E, também, afasta uns dos outros. Os horários e os compromissos, as tarefas, o relatório atrasado, a mãe que está no hospital, o sobrinho que vai fazer aniversário. É difícil manter um amor na cidade grande. Sem contar que, eu acho que dentro de cada um vive um demônio, e dentro de cada demônio vive uma outra coisa ainda pior, mais impulsiva, e por aí vai, demônio por demônio. E é quase impossível, para qualquer um, se manter calmo quando eles vão acordando um por um. Peças de dominó enfileiradas que, em um toque, se auto-destroem. A gente vive tentando esquecer dos nossos demônios. Os desejos, tudo aquilo que for primitivo. Temos que ocultar as coisas que acordam e nos assustam. Um beijo que foi dado sem ser previsto, a vontade de mergulhar em um decote, de analisar um volume sob a calça, um arrepio que desce pela coluna. O amor exige demais de nós mesmos. Porque ele precisa de medidas e cuidados. E é preciso estar centrado, e ter tempo, e vontade. Ao mesmo tempo, é ele quem nos trai. Que, uma hora, desaparece, vai embora, e nos deixa com aquele mal-estar de saber que estamos nós dois aqui só por precisarmos, ainda, dividir as contas e acertar os papéis. Ninguém tem o que é preciso para revistar uma pessoa e perguntar: ei, você viu o amor que eu havia deixado por aqui? Não? E agradecer, e dar as costas, como se tivesse acabado de perder uma nota de dois reais. Na verdade, se eu for pensar nos meus bons dias, eu até não tenho nada contra o amor. O que eu não gosto muito é de toda a ritualização relacionada a ele. As dúzias de rosas, os bombons, o pôr-do-sol, as luzes de vela. É que, bem, eu, particularmente, não me sinto confortável em ser invadida. E nem de ter partes minhas absorvidas por outros. Por exemplo, eu sempre falei muito palavrão. De repente, eu o amo, e ele me ama, e nós dois decidimos passar todo o tempo que tivermos juntos, e aí ele começa a falar muito palavrão também. Os mesmos que eu. E tempos depois, tudo aquilo some, acaba, e nisso de superar e seguir em frente, ele vai viver com outra, e vai usando os meus palavrões. À partir disso, ele vai amá-la com meus palavrões. E ela vai achar a forma como ele diz "porra" linda - como vai acabar achando, também, todas as outras coisas pertencentes a ele. E aí, além de ter perdido o amor físico - a presença -, o amor supostamente verdadeiro, vou perder a vontade de manter meus hábitos antigos. Eu sei que é bom mudar. Mas é bom, também, manter a essência. Prefiro não escolher o amor, por enquanto, e ficar com a sanidade.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Verbo Intransitivo.

É, Deus, parece que vai ser nós dois até o final.


Era uma vez um apartamento distante, em um prédio distante, em uma rua distante, em uma cidade ainda mais distante, de um estado-região-país-continente-planeta ainda mais distante. É claro, em um Universo ainda mais distante que tudo. Era uma vez um menino tão distante assim de nós. Gostaria de chamá-lo por João. E então damos início a história. João um dia nasceu, meio amarelado, e parecido com um joelho recém-esfolado, e silencioso. João demorou a chorar. Naquela época, ainda usavam o método da palmada no bumbum, e foi através dele que João chorou pela primeira vez na vida. Ele sempre foi um daqueles humanos que só choram depois de uma dor insuportável. Mas é claro que, proporcionalmente, os tapas que João recebia para chorar, foram, ao decorrer do tempo, se tornando cada vez mais fortes. Por exemplo, a segunda vez em que João foi visto derramando uma lágrima - só umazinha, pois precisou se conter -, foi quando sua mãe derramou uma panela de água fervente em seu pé esquerdo. João ainda calçava 32, e parte do seu pé permaneceu neste mesmo número para sempre. Mas isto não vem ao caso. O que importa era que João tentava, a seu máximo, ser forte. Para sua infelicidade, continuava sendo humano. E como acontece de caírem os dentes de leite e depois nascerem os outros, acontece de cairmos na realidade e nascermos para algo novo. Alguns puxam o cabelo, outros acham que eram cócegas, mas João optou por dar o troco de balinhas na primeira vez em que se viu apaixonado. Ele pôde, desde a primeira vez, diferenciar "amor" das outras coisas todas. E, apesar de ficar ainda mais adorável usando uma beca - sua primeira -, João não foi capaz de, naquela idade, ter plena compreensão e entendimento de uma coisa fundamental: que certas coisas acabam. Foi quando, sentado na privada, da última cabine do banheiro, daquele auditório minúsculo e embolorado, João soltou sua terceira lágrima. Ou melhor, uma série de lágrimas, e umas miniaturas delas, e algum pouco de catarro. Repito que João era um daqueles humanos que só choram quando enfrentam uma dor insuportável. Por exemplo, João não chorou quando rasgou o queixo pulando os degraus de uma escada qualquer. Nem chorou quando seu pai se mudou para outro apartamento em outra cidade-estado-país distante. Nem quando Doutor - seu vira-lata cor-de-terra - foi atropelado bem a sua frente. João, como muitos, chorou naquele banheiro por jurar ter perdido seu amor. Mal sabia ele que amores são todos aqueles que queremos que sejam amados. Temos o dom de nos apaixonar por flores, e por unicórnios e, talvez, por passados. A gente aprende a amar qualquer coisa que nos desperte. Mas João jurou, e assim permaneceu, se remoendo por mais dias, em greve de fome, se desgarrando dos brinquedos, e juntando moedas para comprar um violão. A verdade é que, naquela época, mal soletrar a palavra "amor" ele sabia. Foi crescendo e suportando que João aumentou sua coleção de becas, aprendeu mais palavras, se encostou em mais portas de banheiros, assistiu acontecerem mais tragédias. Às vezes a vida parece mesmo um ciclo, foi o que ele pensou, quando teve aquela mesma vontade de dar seu troco de balinhas. Mais uma vez, mostrou que, desde sempre, sabia diferenciar "amor" das outras coisas todas. E já tinha pêlos corporais o suficiente para admitir que as possibilidades de amar nunca acabam. Ninguém pode negar nenhuma das oportunidades de ser despertado. O segredo é se entregar. João, forte como sempre, demorou, mas logo aumentou as balinhas para um buquê de rosas, das rosas fez um par de anéis, para eles uma chave, para a chave uma porta, para a porta um apartamento: para o frio, os dois abraçados sobre a cama. De tanto apertar, os pássaros escapam. Demorou até que ela partisse para que João entendesse que todos têm asas. Ele já tinha vestido becas demais para se sentar em qualquer privada, de qualquer cabine, de qualquer banheiro, de qualquer auditório minúsculo embolorado ou não. Desta vez acrescentou murros e gemidos ao coquetel de lágrimas. E pensou: o amor é sempre triste. O que há de alegre em se entregar? João, naquele momento, poderia ter percebido uma certa aptidão para a poesia, mas só estaria se enganando mais e mais. A quebra da linearidade da representação amorosa nos dá a vontade de nos expressar artisticamente. Fiz a poesia através do seu amor. Mas seu amor acabou. Deste fim, fiz a tragédia. Feito o bebê chorão que João não foi, e que, naquela quebra, renasceu e chorou tudo o que sempre deixou guardado. É mesmo terrível a sensação de se sentir despedaçado. De se sentir que nem um copo de vidro todo moído espalhado pelo chão. Ao mesmo tempo tão frágil e tão perigoso. Querendo ser recolhido e colado de volta, querendo ser recolhido e guardado entre papéis quentes e escuros - para depois ser descartado com o chorume e as latinhas de coca-cola -, querendo ficar caído para sempre com medo de ser cruel com as mãos que tentariam recuperá-lo. João prosseguiu - por mais que pareça difícil, sempre chega essa hora de pedir a si mesmo para que não olhe para trás. Novamente, suspeitou da idéia de ciclos. Sem saber que, já no primeiro flash de pensamento - aquele segundo em que as palavras e as idéias são tão abstratas que um pensamento pode ser facilmente confundido com um vazamento de massa encefálica -, ele estava certo. A vida é feia de ciclos. E você amou, ama, amará, alguém. E tudo sempre terminará naquele mesmo banheiro - como forma de dizer. E a cada vez parecerá ainda mais insuportável. E você, João, esteve sempre certo, chorar nunca resolve. E muitos ainda levam anos e anos pra descobrir uma coisa óbvia dessas. Se chorar resolvesse, só usaríamos lágrimas para controlar um incêndio. Eu sou você, João. E ele também. E ela também. E todos somos você, João. Por mais que sejamos orgulhos demais para admitir. Por mais que não sejamos tão fortes quanto. Ainda somos os indivíduos a passarem pelas mesmas situações, o mesmo - e egoísta - procedimento amoroso. E os mesmos ciclos da vida. Mas e a mais dura verdade, João? A verdade é que ninguém acredita no amor. Por quê alguém, em plena consciência, acreditaria? E ninguém, também, acredita em Deus. Por quê viver por algo que não podemos tocar? Não são pernas, nem terços, são coisas flutuantes, inodoras, invisíveis. Ninguém sabe a verdadeira textura que cobre toda a verbalização que é amar. Se "eu te amo" é mesmo vermelho ou em degradê, ninguém sabe. "De graça, até injeção na testa", acho que é pensando assim que tem gente que, às vezes, se apaixona. Nisto de acreditar no amor, eu prefiro mesmo é acreditar em Deus. Pelo menos dizem por aí que ele é brasileiro. Do amor eu não sei nem o nome.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Mal Conto.

O primeiro.
Primeiro, como rebobino o tempo? Porque se a vida é filme, e viver é amar. E eu agora te amo - como já amava antes. Talvez não da mesma forma. Porque nosso amor se tornou distante. Mas falarei disso depois. Como rebobino o tempo? Querendo voltar atrás, e fazer tudo certo. Querendo o passado. De presente. Eu me pergunto: como rebobino o tempo? Falando em fazer certo, eu não sei o que realmente seria certo. Incerteza. Eu tenho alguns anos, e muita infantilidade – a qual uso como desculpa para todos os meus deslizes, que são incontáveis. Eu tenho um nome, que não vou revelar agora, porque ele cabe a somente uma parte da história. História que eu vou começar daqui a pouco – mesmo tendo começado há muito tempo atrás -, porque eu acho que relê-la e, principalmente, reescrevê-la, me transportará para a parte na qual o romance se tornou tragédia, e o mocinho virou vilão.
O que vem antes.
Nada veio antes para mim. Eu nasci em um determinado ano, com determinado peso e indeterminados pais. Começa nessa parte minha série de abandonos – que eu chamo de vida por não saber o coletivo de solidão. A história começa e tem continuação em Brasília, a cidade dos segredos. Pensei em mudar de cenário, para tornar a jornada – chamo de jornada, pois envolve estrelas e outros astros, e outras coisas bem maiores, tão maiores que talvez não caibam nestas páginas - mais familiar a você. Mas eu não posso me distanciar de mim.
Então estamos em Brasília, anos 80, movimentos punks, ditadura, e eu nasço. E acontece da felicidade ser tão grande que eu estou há todos esses anos tentando descobrí-la. Nasci sem pais. Apaziguado, se não fosse a etimologia e os conflitos. Sorte minha ter nascido de peles e olhos claros. Quase transparente, mas mais invisível.
Nasço e vivo alguns meses em um lar – que mais deveria ser um hospício -, e um anjo aparece e me leva consigo. Anjo ao qual eu chamaria de mãe, tempos depois, anos depois, muitos, muito mais anos do que deveriam ter sido, quando abri a boca pela primeira vez e disse alguma coisa que fizesse sentido aos outros. Essa parte eu conto sem ter absoluta certeza, mas confiando.
Vivo uma infância – relativamente – normal. Abstraindo o detalhe no qual eu não falava, não chorava, e só sentia. Nasci com uma sensibilidade de chocar até uma pedra. Confesso, eu falava, mas só às vezes, com economia de palavras. Pois sentia uma dor enorme ao me colocar para fora.
Cresço sabendo que pertencia a aquele anjo, pertencia de todas as formas, menos por sangue. Transfusão de amor. A adolescência segue como de costume, com revolta e pressa. Talvez eu tenha tido mais revolta do que muitos outros, porque no fundo eu não aceitava a forma como havia vindo ao mundo. Não aceitava ter vindo ao mundo pelo caminho de outras pernas, e não aquelas que apoiavam meu colo.
Embora tenha criado essa admiração, um amor infinito, e até, uma adoração, vivo muito mais ligado à figura paterna que me cerca e me ensina a ser um homem duro e determinado. Ainda que na verdade, as lições tenham escapado pelo ralo e eu tenha me tornado um homem sensível e perdido.
Entendo a injustiça do mundo assim que entro na Universidade. Festejo aquela felicidade que não era minha. Exibo com orgulho a conquista – que também não era minha. E ao mesmo tempo, perco meu anjo da guarda. E fico sem rumo. E fico sem chão. E não fico, e fujo para o exterior. Escolho o exílio da dor. Que só aumenta e me torna amargurado e inquieto.
Decido conhecer o mundo. E conheço de tudo. Menos de mim. Porque sinto uma dor enorme olhando para dentro. E vendo nada fazer sentido. E me vendo fazer nada para mudar isso. Conheço a Itália, a França, Portugal, as mulheres mais belas e imprevisíveis, as drogas – todas elas, sem exceção, inclusive a droga da vida, que é a mais difícil de largar. Conheço os primeiros amores da minha vida, e amo, e sofro, e choro, e tento voltar, e me reconstruo – nunca por inteiro. E então eu me canso e volto. Volto com poucas coisas na mala, com mais pêlos no rosto, mais raiva.
Retomo meu curso na Universidade – não contarei qual, por enquanto, ainda não confio em você – e, sem muito sucesso, termino e me formo. E procuro um emprego, e encontro. Ganho meu dinheiro e me sinto o dono do mundo. Cultivo amizades antigas, finjo gostar das mais novas. Conheço mais mulheres, durmo com todas que me deram a chance. Encho a cara, sobrevivo.
Vou vivendo, com muita dificuldade, com minhas tendências suicidas, com minha depressão crônica, e contida. Vivo com minhas mágoas. Não vou narrar todas, pois não temos muito tempo. O que veio antes do que realmente veio – e me levou embora -, é pequeno. São só detalhes, pequenos tijolos que me construíram para um exato momento.
O momento.
O momento é agora. Atravesso a rua, entro no bar, peço uma cerveja e acho tudo chato. Encontro meus amigos, encontro alguns passados, encontro um assunto, e encontro uma carteira. Jogada no chão. Viro para a mesa ao lado e pergunto se é de alguém. Não é. E o clichê continua. Ela aparece. E o verdadeiro encontro acontece. Começa com um vulto andando em minha direção, depois um par de pernas fartas e uma cintura convidativa. Logo então, um sorriso nervoso. Ela sorri. E é para mim, para a carteira em minhas mãos. De repente o mundo gira, como se nunca tivesse girado antes. E eu, então, saí de órbita.
Não acontece como deveria acontecer e eu não pergunto seu nome. Não olho em seus olhos e nem ao menos disfarço meu encanto. Não me faço de bobo, nem peço seu telefone. Não confio em meu taco e abro mão do jogo. E eu entrego – primeiro a carteira, mais à frente, a mim. E ela se vai. Ela quase se vai. Mas a vida é feita de coincidências, e dizem por aí que existe o destino. E naquela mesa, naquela exata mesa que eu queria quebrar todas as garrafas e andar até o meu apartamento, e dormir, apenas dormir, estava meu melhor amigo – dele eu falo depois -, e naquele meu melhor amigo, estava o sangue. O sangue que nos conecta – conecta a eles e a você, não a mim – aos outros, era por acaso um sangue que o conectava a ela.
Ela, que era prima distante. Que era estrela, astro, distante. Ele a puxa pelo braço. E toda cordialidade do mundo invade aquele quintal coberto de mesas, e cadeiras, e garrafas, e gente. E o encontro se solidifica. E eu sinto a existência de uma possibilidade surtir. E ela se senta. E sorri. Como sorri! E eu sorrio, sem nem saber do que falam. Sem nem me importar se falam. Há, nesse momento, o primeiro – e eterno – encontro.
O segundo.
Houve um segundo naquele momento do encontro, em que os olhos dela encontraram com os meus. Estou sentado, bebendo goles apressados, observando e rindo – como é saboroso o gosto do riso espontâneo. Estão todos sentados, bebendo calmamente, conversando e gargalhando. Ela está rindo, se divertindo, escutando. E ela se movimenta com muita calma, mas com muita freqüência. Finalmente, vira o rosto em minha direção, e desvia. Mas antes de desviar, encontra com meus olhos e se diminui.
Ela se diminuiu. Lançou um olhar sem alvo. E me acertou.
Falam das flechas e dos cupidos, mas se esquecem da dor e da ferida. Das fibras da pele que se rompem, do desmaio. Porque parece mesmo um desmaio quando, em um segundo você é um, e em outro, você é de outro.
Ela se diminuiu e eu me sinto constrangido. A cadeira de plástico amarela parece grande demais para ela, que, então, para de sorrir. E imerge em si mesma. Eu continuo a encarar, com meus olhos curiosos, dos quais ela ainda foge. E eu procuro motivos se, naquele segundo, eles pareceram tão encontrados, o que haveria de tão perigoso para que, tão rápido, se perdessem?
Acendo um cigarro, e ainda não sei qual é seu nome. Não me foi apresentada.