terça-feira, 21 de junho de 2011

Boneca de Pano.

Às vezes ela me acordava mais cedo do que o esperado, só para abrir aquele pequeno - mas nem por isso menos belo - par de lábios e soltar a tão sua voz aguda me dizendo que meus olhos estavam cheios de remela e que meu corpo não tinha cheiro de nada além de suor cigarros e álcool. Reclamava, reclamava, eu jurando que não pararia nunca, e me fazia rolar para longe. Eu dava sorte quando não caía de cara no chão. O chão era muito gelado, branco - como as paredes -, feito de azulejos - eu nunca consegui achar conforto em quartos cujo os pisos não fossem de madeira. Ela sempre reclamava da casa tão sem cor, mas não tinha muitas opiniões se ainda estava morando com os pais. Quando eu caía, era muito maior o escândalo. Ela se sentava na cama e, pelo barulho, eu já sabia que seus palavrões me arranhariam os ouvidos. O problema era o barulho, ter puxado o lençol, não ser forte o suficiente para ter rolado apenas. O problema é que ela só sabia me amar com grosseria. Ao menos, era assim na maior parte do tempo. Ainda lembro - e é claro que eu me lembraria - da primeira vez em que ela conjugou amor em primeira pessoa. Era um Sábado, já era madrugada. Não sei quais foram os motivos, mas eu andava, sóbrio, de posto em posto atrás de bebida com um ex-amor e três amigos, enquanto ela estava do outro lado da cidade, heroicamente embriagada, com nenhum amor - seu saldo, neste quesito, era zero -, mil amigos, e uma porção de admiradores. Ela ligou, e mesmo com todo o entusiasmo, eu deixei que tocasse, talvez um ex-amor, naquela noite, fosse fazer bem. Aliviar algumas coisas que não devem ser aliviadas quando já se está entregue. Ligou outra vez. Na dúvida, eu atendi. Entre gargalhadas e vozes de fundo, eu escutei ela dizer que me amava. Desde a infância eu escutava dizer que o homem já havia pisado na lua. Mas sempre me mantive cético quanto a isso. Que lua o quê? Que amor o quê? Se a saia dela já havia rodado por metade da cidade, por quê logo eu? Para mim, nem lua, nem ela. Duas coisas tão impossíveis. Sabe de quantos sonhos se faz a distância? Ignorei, culpei a vodka. Permanecemos no silêncio até o fim. Às vezes olhávamos com aqueles olhos que suplicam por eternidade. Raramente trocávamos elogios. Não éramos bons em sermos apaixonados. Tinham dias nos quais passávamos reto. Explicávamos por via de uma ligação quando dava mais tarde. Era complicado admitir que sabíamos que seria aquilo desde o primeiro momento. Desde o primeiro momento em que você foi enquadrada pela porta e eu, coincidentemente, olhei. Talvez toda a tortura pudesse ter sido evitada se os olhares não tivessem convergido. A gente se encontrava em horário marcado na segunda esquina à direita. A parede de tijolos, um adesivo desbotado do Flamengo. Mesmo que chovesse, estávamos ali. Quando era fim de semana, separávamos os horários. A vida exige muito de nós. E nós exigimos muito do tempo. Todos sabiam. Ainda assim, gostávamos de separar as coisas e manter como se tudo fosse um segredo. Infelizmente, não tínhamos a grana para sustentar noites em hotéis, nem motéis. E raras foram às vezes em que você me deixou acordar no horário que eu quisesse. Estes eram os dias em que você, sem falar nada, deitava sobre minhas costas - provavelmente despidas -, e ia beijando como se nada na vida tivesse fim. Você ia me percorrendo como quem pedisse aos céus por prorrogações. Acho que, esses momentos, foram todos reflexos dos minutos em que você cogitou a possibilidade de, aquela estranheza toda, acabar nos afastando. Não conto dos repúdios, nem das exceções, como se você fosse a única culpada por isso. Fui eu que precisei da perda para admitir amar. Fui eu que, por suspeitar de você, apadrinhei todos os sete pecados. Eu estourei por tanto não saber como te amar. E foi através desse estouro que eu saí em busca de amar outras. Eu procurava seus fios dourados nos cabelos delas. Ao menos um, para que me desse cor. Se eu te perdi, foi porque eu te deixei sem outros caminhos. As pontas dos seus cabelos molhados batendo nas costas, se tem uma coisa da qual nunca esquecerei, será da primeira vez que eu te vi nua. Não pela imagem de mulher exposta, mas por ter sido a única vez em que eu te olhei com os mesmos olhos assustados desde a primeira vez em que eu te vi. Ali, supostamente, eu deveria ter entendido tudo. É como se amores, tais como este, só acontecessem duas ou três vezes na vida de uma pessoa - isto com sorte. Penso, hoje, que me bastariam as cócegas na nuca - vindas de sua respiração quando deitava-se sobre minhas costas - para que eu reencontrasse qualquer razão para viver que eu pudesse ter perdido minutos antes. E me bastaria, para o resto da vida, um quarto branco - sem janelas e estranhamente frio -, desde que houvesse você dentro.

9 comentários:

Anônimo disse...

Ao mesmo tempo que tenho muito a dizer sobre isso,tambem nao tenho...
Voce e linda,minha flor,meu amor!

Anônimo disse...

Uma vez mais pintando imagens.

Tamara disse...

No final as paredes ficaram coloridas.

Luana H. disse...

Apaixonada por esse texto. Verdadeiramente apaixonada.

Adriele Regine disse...

Que coisa mais linda, percorrer a alma e descrever com riqueza de detalhes todas as paredes, portas, janelas, móveis, desta casa. Casa está tão vulnerável e ao mesmo tempo segura de que não deve mostrar-se por inteiro a qualquer visitante.

Adorei o texto... Adorei a forma que escreve.

Sucesso!

Julianna Motter disse...

Muito obrigada, a todos. Fico feliz por terem lido, mais ainda por terem comentado, e ainda muito mais por terem gostado.
Continuem voltando!
Muito obrigada!

Anônimo disse...

o grande problena é chegar bebado e não ter coisa sua pra ler, pequena.
É com que não tenha morrido

Julianna Motter disse...

Agora tem!

Geovanna disse...

gostei muito, muito, muito, muito!