segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Algo mais sobre o amor

6h15
Eu me levanto. Mas ainda não me sinto de pé. Corro para o banheiro, onde lavo meu rosto de duas a três vezes, antes que ele me veja, às 6h20, quando se levanta. É que acordo cheia de remela ao redor dos olhos. E a pele toda seca, quase rachada, especialmente em volta do nariz e da boca. Há uns dois anos, acordo com essa dor de cabeça de quem chorou por horas. De quem secou por dentro e paga o preço por fora. Há cerca de seis meses descobri que a dor de cabeça era mesmo de quem havia chorado por horas. E pior, era mesmo minha. Havia um diagnóstico para minha dor, mas não para o meu choro.

Eu me deito todo dia um pouco antes das 23h, às vezes me empolgo com um livro e durmo lá perto já de 00h. E sempre acordei já lá pras 7h. Assim que ele batia a porta de casa e saía para o trabalho. Mas todo dia, há seis meses, acordo antes, às 6h15, corro para o banheiro e me limpo. Ele nunca foi de me amar tanto ao ponto de me assistir dormir. Então tenho quase absoluta certeza de que nos primeiros um ano e seis meses desses dois anos em que acordo com dor de cabeça de quem chorou por horas - e chorei -, ele nunca tinha me olhado dormir e tinha me visto toda coberta de lágrimas e remelas. Mas nesses últimos seis meses, desde que descobri, tenho tomado cuidado para que ele nunca perceba. Vai que, um dia, ele resolvesse me olhar em sono. Acordo, portanto, cinco minutos antes que ele acorde e me recomponho - fica só a dor de cabeça como prova do sono em choro.

Não faço barulho enquanto choro e durmo. Fiz o meu médico passar a gravação sete vezes para termos certeza. As lágrimas caem aos montes, mas o único barulho que elas me causam e o delas mesmas escorregando por minha pele já cheia de relevos.

Eu acordo mais cedo e me lavo e me limpo porque não quero que ele me veja devastada da maneira como acordo. Não quero que ele se assuste. Porque não vou saber localizar geograficamente em mim de onde vêm essas lágrimas. Estamos há quase dez anos juntos, e eu ainda vivo cercada pelo medo de que, um dia, ele me olhe e se assuste.

Esse medo constante do qual quase todos sofremos: de que quem nos ame vá embora.

- Ah, mas quem ama não se assusta e, simplesmente, vai embora. Isso não é amor.

Isso não é amor. Mas o que é amor, se não isso? Os dias tem 24h, e nós nos conhecemos, com sorte, antes dos vinte e cinco, e nos casamos antes que eu engravidasse. Não engravidei, aliás. O que aumentou, consideravelmente, o perigo eminente de um susto seguido de uma partida.

Não parta, senão serei partida.

Não sei, de coração, o que choro toda noite enquanto durmo. Eu já sofri demais, mas nada que não fosse característico da vida: sofri com a efemeridade das coisas, a comprovação de que tudo se desfaz, tudo se acaba, tudo se morre, tudo se termina.

Há seis meses eu sofro com o medo de que ele se assuste e me deixe. Nos um ano e seis anteriores, eu só sofria com a dor de cabeça. As dores físicas são, certamente, mais fáceis de lidar. Claro que para tê-las existiram antes as dores de alma - e quais, afinal?

Não sei o que me faz chorar toda noite, em sono. Deve ser algo que me faz chorar todo dia, mas que não vejo no reflexo das janelas dos ônibus, nem nas poças d'água que se acumulam debaixo dos aparelhos de ar-condicionado dos prédios.

Não sei qual caminho percorro. Não sei por qual caminho me sofro.

Eu não posso deixar ele partir, porque eu mesma serei a partida. E aí eu vou ser só choro em sono ou só sono em choro. Se ele me deixar eu não sei...vai que de repente eu começo a sorrir. E acorde com dores na bochecha de tanto riso.

Há seis meses eu fujo de mim para fugir dele.



quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A vida é uma história de amor

Eu olho para essa página e tenho absoluta certeza do que ela é: uma página em branco, e nada mais. É uma folha em branco, mas sem precisar, para isso, sê-la fisicamente. E o propósito é que eu vá, devagar, preenchê-la com minhas palavras. Que não são propriamente minhas - pela universalidade das coisas quando significam e encontram seus próprios signos -, mas é o que tenho.

A verdade é que gostaria de escrever numas palavras só minhas, da maneira como tudo está escrito aqui dentro. Isso porque queria que só eu pudesse lê-la, e assim comprovar materialmente, para mim mesmo, o nosso pertencimento mútuo. Ao mesmo tempo, quero que partilhem dessa leitura, para que eu tenha certeza de que ela existiu. De alguma forma, o que eu quero aspira por eternidade.

Não adianta. É impossível. Não vou conseguir.

Eu nunca fui de escrever dessa maneira, tão presa. Pontuando tão incisivamente meus pensamentos. E usando umas palavras que, normalmente, eu nunca usaria. “Incisivamente” só me lembra os dentes. Eu nunca fui de escrever, é por isso que estou travado. Nunca estivesse nesse lugar antes, e estou transformando tudo num drama. Nessa página, folha, espaço em branco, eu não me reconheço. Mas meu objetivo é a liberdade. É me libertar. E liberdade tem a ver com se perder, não tem? Ou deixar de se encontrar, ir do quadrado para a assimetria. Expansão, não é isso? Meu Deus...estou louco! Mas preciso disso, porque também quero, aliás, quero principalmente deixá-la ir, para que eu cesse de tentar materializá-la de novo.

Não adianta mais.

Estou aqui para deixar de insistir. Acredito sim, aliás, tenho certeza: há um pouco de razão em qualquer estado de loucura. Mesmo que dure pouco, quase nada, até menos que um segundo, mas há sim, em um dado momento: aquele precioso momento de sanidade. É preciso que haja. Eu precisei que houvesse. Só dessa forma pude enxergar as coisas com a clareza que tento exprimir agora: ela se foi. Ela se foi e não vai mais voltar. O teor dramático dessa última frase coloca em questão essa sanidade na qual, supostamente, me encontro agora. Mas não é exagero, é a verdade. É a verdade fazendo da vida o que ela precisa fazer: exagero.

Minto se disser que me lembro exatamente de cada detalhe. Mas não me esqueço de algumas coisas, sei que estávamos em meados de dezembro, pois chovia com frequência, dia 12, pois eu tinha acabado de sair do encontro do grupo de leitura – e todos são no dia 12. Estávamos no café mais antigo da cidade, e isso porque todas as histórias de amor precisam ter um café incluso, seja no começo, no meio ou no final. Minto, eu lembro de tudo. Ela vestia um vestido tão preto quanto seus olhos de jabuticaba. Com uma sapatilha...ah, dane-se! A maneira como nos vestíamos, e a hora em que nos falamos pela primeira vez – 19h32 quando ela se afastou da minha mesa -, a música que tocava na hora – Endless Cycle, Lou Reed. Nada disso importa. Nada disso importa. E nem assim eu me esqueço.

Parece que minha cabeça se esvaziou totalmente só para que ela coubesse. Só para que ela coubesse tanto e tão confortavelmente que nunca mais precisaria sair, que nunca mais procuraria abrigo em outro lugar.

A gente primeiro percebe que ama e só lá bem depois se dá conta de que o amor tem sede de posse, né? Uma dependência, um desejo egoísta de propriedade. E não se contenta com um puxadinho na lateral não. Amor quer fazenda com um número tão grande de hectares que nunca será visitada por completo. Amor quer apartamento em Copa com vista pra praia, cobertura, de preferência. Amor quer viajar de primeira classe e se servir de champagne – champagne mesmo, não espumante – quando chegar em Paris. Amor quer tudo, tudo, tudo. E quase sempre acaba com nada.

Amor quase sempre acaba em nada.

Amor quase sempre acaba como nada. Como se fosse um nada.

Eu digo quase sempre porque vai que. Vai que, né?

Ela tinha um sorriso engraçado, e foi a primeira coisa que notei. Que ela tinha uma maneira engraçada de achar graça. Mas era bonito, uma maneira bonita de me fazer rir, porque toda vez eu me lembrava desse primeiro pensamento e achava graça. Que foi a primeira coisa dela que percebi, e que com o tempo mudou de graça. Antes, engraçado. Depois, gracioso.

Toda vez que penso nela eu sinto vontade de arrombar cada porta de cada casa para ver se em algum lugar ainda a encontro me esperando na sala.

Da primeira vez que fomos para a cama, foi no sofá. Saímos para um bar, um happy hour, ela que me convidou. Não esqueço de sua voz falhando ao telefone, dizendo que não queria se antecipar, nem parecer oferecida, que só queria trocar umas palavras e beber alguma coisa. Foi a primeira vez que saímos depois do dia no café. Toda história de amor precisa de um café e de um bar. E de vinho. Tomamos vinho, portanto.

Tínhamos muita pressa, percebo agora, por não ter analisado isso antes. Estranho que pensei e revi tudo tantas vezes na cabeça. Tínhamos muita pressa em tornar aquilo logo um amor. E bebemos duas garrafas e meia de vinho. Eu fingi que sabia escolher a uva. Ela fingiu que gostou. Mas todo o resto era feito de verdade. Tanto e com tanta força que, de início, eu não reconhecia o toque.

Toda vez que penso nela eu sinto vontade de revirar cada sala de cada casa para ver se em algum lugar ainda a encontro me esperando atrás da porta.

Bebemos todo aquele vinho e de uma coisa, ao menos, eu tinha certeza: o vômito sairia roxo e azedo. E daria trabalho limpar todo o banheiro. E eu teria que avisar no trabalho que não apareceria no dia seguinte. Não vou ser cínico, o sangue que me circulava ficava mais vermelho por conta dela. Desejava que sim, mas não pensava que um desejo desse pudesse se realizar tão cedo.

Acabamos indo para a cama, o sofá. Não vou dizer que nunca tinha feito amor daquela forma. Primeiro que não vou me permitir conjugar de maneira alguma isso, de “fazer amor”. Amor a gente fazia, e fez. E não parecia tão cafona. Segundo que ela me escorregava um pouco, sabe? Quando a gente até quer, mas não encaixa? Não sei se por vontade demais, por pressa. A impressão que eu tinha era de que, desde o início, era tudo tanto que era difícil colocar em corpo – tão difícil quanto colocar em palavras.

Isso não deveria importar, mas para que conste, nos acertamos depois. Nos acertamos de um jeito que escorregávamos juntos. Nos acertamos de um jeito que era difícil desgrudar uma pele da outra.

Toda vez que eu penso nela eu sinto vontade de rasgar minha pele pela cidade e ir em cada casa cada sala cada porta de mim para ver se eu a encontro me esperando para ir com ela.

Depois do sorriso, a primeira coisa que pensei dela foi: ela não é daqui. Isso não mudou com o tempo, como sorriso. Começou como certeza e foi assim sempre. Ela não era daqui. Eu sabia porque ficava sem saber como aquela existência dela conseguia existir em mim daquele jeito. Eu nunca fui muito de sentir. Com ela eu transbordava, para cima, para baixo, pelos lados. Com ela até meu sorriso começou a ter graça, que eu ria até dele rindo.

Toda vez que eu penso nela eu saio de mim e não penso em mais nada. Não me encontro em casa, nem em sala, nem atrás de qualquer porta, nem na cidade, e eu fico esperando até eu voltar.

É trágico, e eu sei e você sabe.

Porque se eu disse que histórias de amor precisam de café e de vinho elas, certamente, precisam de tragédia. Essas palavras são muito fortes. “Forte” é uma palavra forte.

Pareço estar na introdução de um livro de auto-ajuda.

Que se foda! Toda vez que eu penso nela eu espero que se foda. Eu desejo que se foda. Tudo, a casa, a porta, a cidade, a espera dela na sala. Tudo o que eu procuro procuro procuro e que é o nada que vou encontrar.

Eu quero foder com isso tudo. Era o que fazíamos eu e ela. Não falei que fazíamos amor, porque era foda. Era de foder com tudo. O que a pele dela fazia da minha era mais que amor. Ela fazia da minha pele mais humana. E o toque dela tocava onde nada no mundo deveria tocar.


Você deve estar sentindo o cheiro de gozo. Mas o que eu sinto é cheiro de lágrima. E gosto.

Eu me diluía...eu me eternizava...e não podia nem ser amor, mas era. Não podia porque me parecia tão maior. Mas isso deve ser amor mesmo. Eu só nunca tinha experimentado...

As doses homeopáticas de amor que recebemos ao longo da vida nos deixam paralisados quando recebemos um amor por inteiro. E dói.

Amor dói. Mas muito por isso que é tão bom. É que nem puxar aquela pele solta no lábio. Aquela pele solta na unha. Nadar contra a maré. Sentir o sol de meio-dia queimando os ombros.

Toda vez que eu penso nela eu dispenso o resto do mundo.

Ela não era daqui. Ela veio de outro lugar. E trouxe luz, onde era escuro. E foi clichê, onde eu era silencioso e mal-humorado.

Eu a amei tanto que me recuso a aceitar. E é por isso que escrevo agora. Porque preciso que alguém leia e me avise: ela foi embora, e nunca mais vai voltar.

O tempo corre e é mentira se dizem que a gente acompanha. Ninguém diz isso, ninguém diz nada. As pessoas só falam e falam e falam.

Por que ela não falou comigo?

Toda vez que eu penso nela eu falo com ela e ela me fala tudo, da casa, da porta, da cidade, da espera na sala. Mas ela não se encontra mais aqui.

Eu gostava muito de relógios de pulso. Eu gostava tanto que ela me dava um a cada Natal, um a cada Dia dos Namorados, aniversário...ela me deu um até numa Páscoa. Foram mais de quinze – multiplicados por essas datas, mais alguns extras. Foram mais de quinze, os anos. E toda vez que a via sorrir, ainda sentia o mesmo gosto do café que tomava quando a conheci.

Toda vez que eu penso nela eu arrombo a porta da sala e a encontro me esperando e a cidade toda se cala. E nada tem lugar.

Que a vida era muito pesada eu sabia. A gente sempre sabe desse peso-morte que a vida tem. Esse peso-se-morra. Esse peso-se-aguente até uma hora que tudo se arrebenta.

Toda vez que eu penso nela eu penso na sala do outro lado da cidade na casa da gente e nos relógios que ela me deu e que eu esqueci todos em casa naquele dia. Naquele dia eu fiquei sem hora. E coincidiu de ser bem a hora dela.

Ela não era daqui, e não a culpo se teve que partir.

Ela me deixou anotado num papel uma frase que a deixava sempre muito inquieta e que gostava de debater especialmente depois de umas garrafas de vinho ou no meio da tarde tomando um café: na natureza, nada se perde, tudo se transforma.

Eu a perdi.
Foi nesse momento que tive certeza, ela não era daqui...

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Coletâna de fragmentos I - As mulheres

Fragmento I - Marília -

Eu preciso rescrever Marília. De todas as mulheres do mundo, é justamente ela a quem preciso rescrever. E não por acaso. Só ela era ela e só ela seria quem só ela poderia saber. Sabe coisa do além? Pois é, ela ia além disso. Marília tinha aquelas bundas-mãe, aquele tipo de bunda-coração. Olhando a bunda despida, virando a cabeça pra baixo, se via um coração grande, ch
eio, polpudo. Sem contar como era incrível, também, a capacidade que tinha de sempre comportar mais um. Bunda-coração-de-mãe. Cabia sempre mais um. Sob ou sobre ela. Tipo de bunda que atravessa, é travessa e travesseiro.

Eu preciso rescrevê-la porque da primeira vez que a escrevi não consegui relatar com precisão a graça que só Marília tinha. Que só Marília tem. Que só Marília terá. Eu a deixei um pouco para trás. É que ela me atrasa o tempo.

(Marília, meu benzinho, se estiver me lendo agora, saiba que quando te vê, meu relógio biológico toca de um em um segundo o despertador).

Eu a deixei um pouco apagada, como se a escolha das palavras valesse mais que Marília em si.

(Marília, minha nega, se estiver me lendo agora, saiba que, para mim, brilha mais que céu de bêbado quando passa das 19h e ligam os postes de luz).


Ela era assim: para mim, coisa que só ela podia, pôde e poderia ser. E como? Ah, parecia aquela canção de amor saudoso com gosto de caramelo de doce de leite que toca, de repente, na rádio do carro, aliviando a insatisfação de estar preso por 3h em um engarrafamento, em um dia de chuva torrencial. Não sei o significado exato que isso tem. Mas Marília era assim para mim, significativamente sem significado. Dessa forma, ela me vinha: temporal que cai sem avisar no meio de uma tarde de segunda-feira e muda toda a sua semana. Ela me deixava sem reação, e sem saber se fugia, se me escondia ou se ficava: me molhava. Eu me encharcava todo dela. Era estranho, que eu olhava Marília e, por isso, olhava mar e ia.

Olhava Marília. Olhava mar e lia, imagine. Imagine que era feito pudesse ler o que as ondas escrevem na praia. Ondas sim contam histórias, e por isso, livros são apenas bobagens. O mar, o mar todo, cada movimento dele é uma frase. E eu olhava Marília e sabia. Sabia dos afogados e que, logo logo, me afogaria. Marília era aceitar nadar por horas para depois morrer na praia.

Ou não era nada disso. Mas uma coisa eu sei, aquela bunda...aquela bunda-coração dela desbundou meu coração.


Fragmento II - das outras mulheres -

Ela me olha. E não sei por qual motivo me olha tanto. Mas me olha. Toda vez que me vê, fica de longe me olhando. Que passem horas, não se importa. Quiçá dias. Se por exemplo, nos encontramos no café que fica logo ali na esquina, ela me acompanha desde o começo, desgrudando o olhar vez ou outra para tomar um gole de seu cappuccino ou tentar se concentrar em umparágrafo do livro que, supostamente, lê. Digo cappuccino assim com tanta certeza porque ela tem cara de quem toma cappuccino, sabe? Eu nunca perguntei, mas ela tem bem cara dessas. Com leite sem lactose, ou de soja. A xícara é sempre muito grande, e não seria um expresso duplo, nem longo, talvez chocolate quente, mas tem cara de quem já superou essa fase, de quem já deixou o chocolate em pó pela canela, e que usa lingeries bordadas, bordô – não consigo visualizar essa cor, mas pelo som, certeza que é essa.

Fica a me olhar com seus cabelos avermelhados caídos nos ombros e não sei nem seu nome. Ela me penetra devagar e é, ao mesmo tempo, um silêncio estranho e uma voz macia cantarolando no pé do ouvido. Só a ouvi falar uma única vez, quando esqueceu seu livro e me levantei correndo para ir atrás e avisá-la: a voz quase não saiu, mas agradeceu timidamente. “Gratidão”, ela disse como quem mastigasse e engolisse cada uma das letras bem rápido para não ter que dividir com ninguém. Era Virginia Woolf, mas eu teria apostado em Jane Austen. “Gratidão”, a única palavra que ouvi dela me desce que nem nuvem quando repito em voz alta. Ela me olha como se fosse leve o suficiente para me atravessar. Não sei o que vê em mim, mas ninguém nunca me olhou assim.

Fragmento III - são muitas as mulheres -

Ela chegou e virou tudo de cabeça para baixo. Quando eu era pequeno, me lembro, uma das coisas que mais gostava era de plantar bananeira. Vivia com calos nas mãos, de vez em quando caía e batia de costas. Mas era uma das minhas coisas favoritas, logo em seguida aos jogos de memória – que disputava com vovô - porque acreditava estar mais próximo do céu. Em dias de céu florido de nuvens, se acertasse o ângulo, meus pés sujos de lama podiam encostar em umas, com muito esforço eu conseguia até segui-las na mesma direção que o vento. Quase sempre escorregava, ou perdia a força nos braços e caía de costas no chão. Às vezes até de cara.

Mas é basicamente isso, ela veio. Em tempos onde nada nunca vinha. Veio e virou tudo de cabeça para baixo e eu tive fôlego para ficar plantado em bananeira, sem nem arriscar cair. Era uma coisa que só ela. Ela era uma coisa que só. Dessas coisas que você pensa que poderiam existir sozinhas, sem mais nada. Não que fosse completa, não era, mas seus vazios, suas ausências, suas rachaduras que lhe davam a leveza tão própria. Ela chegou, sem mais nem menos – como eu disse, ela tinha condições de existir por si só, então quando ela veio a luz do mundo ao redor se apagou por um instante para que somente ela viesse a mim e somente eu a recebesse e somente isso e mais nada, mais nada. Chegou e virou tudo de cabeça para baixo, e a vida daquela forma era muito mais bonita. Muito mais leve, eu pisava nas nuvens com ela e me ardia de sol.

E o mundo assim, com ela, fazia muito mais sentido, porque era muito melhor ter o céu debaixo dos pés. E se sentir infinito. Porque não existia linha do horizonte, horizonte ali era tudo. Fora do alcance dos olhos. Tudo imensidão. Era muito melhor ter o céu debaixo dos pés e nunca mais precisar olhar para cima – só de vez em quando, que de vez em quando eu sentia falta de todo o concreto e da fumaça e dos ônibus lotados e do cheiro de pastel frito com caldo de cana na rodoviária. E de ver as nuvens escorrendo pela cabeça.

Fragmento IV - são muitas, mas tantas, as mulheres -

Eu quero escrever, pai, sobre uma mulher que mudou o mundo, pai. Se não o mundo inteiro, ao menos o meu. Ela inverteu a rotação. Ou parou, indefinidamente. Essa mulher…você sabe, né, pai, espero que você saiba que cada um de nós é um astro um mundo melhor um planeta. Todo um universo! Ela veio assim, sim, todas elas vêm. Mulheres não brotam da terra, nem caem das árvores, eu não sou tolo e ainda as assisto porque não é possível, pai, isso que elas fazem, elas espalham sei lá o que é isso que mulheres têm, mas elas espalham por aí, por esses mundos astros universos, que fazem os dias de sol hipnotizantes e os dias de chuva de sol para serem hipnotizantes da mesma forma. E a melhor parte, pai, é que de vez em quando alguns homens têm a sorte de que uma venha para eles. E ela veio, como veio, veio vindo, assim de fininho, mas arrombando a porta sem nem descascar o esmalte de um dos dedos, sem nem pingar uma gota de suor. Sim, pai, não voltei. Parei, juro, pai, parei com o pó. Não, nunca mais, nem desodorante, pai. Cerveja sim, mas como sem cerveja? Como ser,-veja? Como ser sem ela? Ah, eu já não sei, porque ela se instalou em mim e nem fazia frio, ela se escondeu debaixo da minha pele e de vez em quando levanta meus pelos em calafrio. Ela gosta de silêncio. Eu juro, já faz mais de ano, pai, e nem deus sabe o tanto que suei. Se juro pela minha mãe? Mas ela já tá morta, pai, não acho que vá morrer de novo. Se bem que sei lá, a vida toda é tanta morte que a morte não deve acabar por ser vida não, só cerveja e buzina da alegria, pai, eu juro. Mas nada disso te interessa, eu estava falando dela e você vem e me interrompe e não é alucinação, deus quisesse que fosse e eu não me arderia tanto. Amor arde, pai. Queima o peito. No Carnaval, pai, buzina de alegria só no Carnaval. Sim, e a cerveja. Você pode abrir as gavetas e verificar, não vai encontrar nada, nem pó nem pedra nem nada. Eu sei, pai, você já me disse que quem se mete com essas coisas para de se aproveitar dos melhores prazeres do mundo: nem come e nem fode. E você pode ver, eu tenho comido e me fodido muito. Chega estou mole. Chega estou seco. Mas a vida toda é Carnaval, serpentina som alto cerveja praia sol pele dourada suor gozo gozada essa vida é muito gozada, pai. Você me disse para ser feliz, estou sendo. E tem felicidade maior que pular Carnaval todo dia, pai? Chega estou seco. Chega estou mole. A felicidade, uma hora, cansa. Além disso, perdi uns 10kg. É que lá em casa, desde que ela chegou, não tem mais nem panela. Minha fome só se mata no corpo dela.

Fragmento V - eram muitas as mulheres -

Nós não éramos. Eu era, ela também. Seríamos juntos desde que assim: eu e ela, ou ela e eu. Mas nunca nós. Até tentamos, mas os ossos perto da virilha dela me espetavam a barriga. E ela achava que eu roncava demais. Mas ainda assim, nada me deixava da mesma forma que ela. Que chegava e partia em menos tempo que uma piscada. E nada me deixava como ela – falo da forma como meu corpo ficava. Ele respondia como se tivesse nascido pronto para recebê-la. Como se só ela o pudesse despertar do cansaço da exaustão e do sono da vida quando tudo que ele mais queria era um instantinho de morte. Mas ela me espetava com os ossos a barriga. E achava minha respiração alta demais, mesmo acordado.

A gente tentou. Um pouco mais do que normalmente tentariam. Porque ela gostava muito da minha voz e do meu cheiro. E das palavras que eu escolhia para dizer coisas que ninguém escolheria dizer. Ela me achava meio louco, e eu achava totalmente, mas dessa forma que era bom, que daí a gente nunca se perdia. A gente gostava de sair. A gente gostava muito de assistir a cidade e abordar estranhos para dizer coisas que ninguém diria. A gente gostava de sentar em restaurantes para assistir as pessoas e escrever a história delas em guardanapos.

Ela me achava meio louco e eu era totalmente, mas por ela. Seus ossos me espetavam a barriga, mas era ainda pior, já que seus olhos me espetavam o coração. Eu lembro de uma noite quando saímos, eu e ela, era junho. Festa junina. Nós dois vestidos com o mesmo xadrez, usando umas botas maiores que nossas pernas e uns cintos de fivelas bem chamativas. A gente se divertia com nada e isso era, basicamente, tudo. A gente passou pela barraca de doces, e ela pulou para trás, e abriu bem a boca num grito tão agudo que me abaixei para escapar do tiro. Ela se aproximou do balcão e apontou. Voltou com uma maçã-do-amor, maior que seu rosto, espetada num palito, envernizada de açúcar nas mãos e um sorriso maior que toda a Austrália. E disse assim:

- Eu adoro isso! Como é mesmo o nome? Disso aqui, desse amor duro de maçã?

E eu nunca me esqueci, porque depois que ela falou, sem pensar, se riu que quase se borrou na vida. Quase se desfez em riso. E chega roncou. E seus ossos todos quase explodiram do tanto que ela não se cabia de risada. E foi mesmo engraçado, especialmente a cara que ela fez depois que se escutou. E ela ria que quase se caía e eu a segurei. Seus ossos da virilha me espetando a barriga. E ela maçã avermelhada brilhante se morrendo se vivendo de tanto rir. E de repente vi, que era exatamente aquilo ali que nós éramos, um avesso do que eu e ela éramos. Ela maçã e eu palito.

Era um amor duro de maçã.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Fragmento IV - ou cartas para um corpo ausente

Eu sinto muito. E muito do que sinto é só falta. Como uma parte que me foi arrancada de súbito. Um membro que perdi num acidente - e ainda sinto se movimentar. E foi mais ou menos isso. Não digo qual membro me foi arrancado porque precisaria confirmar ter sido o coração. E dizer isso me daria urticária. Falar do coração, como algo passível de ações de outros, como algo passível de trocas - inclusive na posse dele -, é uma coisa cafona. Diria até desnecessária. Pulemos essa parte. Mas é mais ou menos isso, como um membro mutilado em um acidente - odeio essa palavra "mutilação", é tão dramática. Mas é, é mais ou menos isso, fui acidentado. Atropelado pela vida. Que parecia uma senhora paciente a me assistir brincar no jardim, a me ajudar catar as pitangas nos galhos mais altos, a me ajudar a amarrar o cardaço a cada novo tropeço. Um dia, que parecia como outro qualquer, nem a vi se levantar da cadeira de balanço e quando abri os olhos de novo, no jardim não estavam mais os pés...nada de jabuticaba, nem de amora, jaca, manga...nem mesmo as pitangas! Nenhum pé. Nada mais ali me dava, e nem daria, pé. A grama toda queimada. E um jardim todo feito de vazio. A velha senhora, a vida, acabava de me dar um tapa. E o que escutei, antes de cair me dizia, dentre outras coisas, que a vida não deve ser só feita de flores. Abri os olhos, e olhei aquilo tudo. Por horas, dias, meses. E eu não podia me mover, me via cada vez mais preso ao chão. As cores todas tinham se perdido. E a coisa mais estranha, é que logo depois de abrir os olhos, me pegaram pela mão. Aquela senhora e alguns dos meus tios. Me pegaram pelas mãos e me levaram para um lugar claro, mas que me fazia me sentir escuro. Entrei por uma porta, e todos em volta me olhavam e não me viam. E eu sentia por eles, cabisbaixos, a quem não reconhecia. Entrei pela porta aberta que dava para uma sala toda branca, mas sem sê-la, revestida de granito acinzentado do chão ao teto. Nela, haviam flores. Muitas flores, principalmente brancas e amarelas. Amarradas em círculos, espalhadas. Circulando um caixote de madeira. Madeira feia, avermelhada, que brilhava cheia de...como é? Cera? Era uma presença de extremo mau gosto. Mas haviam flores, ao contrário do que a senhora havia me dito. Me aproximaram do caixote e quando fui olhar, continha dentro dela, além de flores, uma presença ausente, que me foi deixada, pela vida.

E eu sinto muito, pela vida ter que atropelar, às vezes, dessa forma, para nos fazer perceber que nem tudo é feito de flores. Mas que flores são tudo. Dito e feito.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Um conto sobre o amor

Se ficar bêbado fosse uma profissão, eu já estaria perto da aposentadoria. Não passo uma noite longe do bar. Isso é estranho? Mas não acho que eu seja alcoólatra. Eu só gosto desse ritual. De me assistir no processo, entre estar atado ao chão e começar a levitar. A verdade, é que me sinto meio à parte do que acontece no mundo. E quando bebo, qualquer lugar é mundo.

Ontem eu me senti mal, porque entre os copos de vodka e o frio, começaram a falar de saúde doença câncer terminal avc hepatite pílula do dia seguinte anti-concepcionais hipotireodismo, e eu nunca nem fiz exame para saber se tenho alguma disfunção hormonal ou um sinal cancerígena na pele, ou sei lá...pressão alta! Eu não sei nem dizer em que andar vive a minha pressão. Não gosto de médicos. Semana passada eu saí correndo da sala de medicação por não aguentar mais tomar soro, e ver aquele branco todo.

O que aconteceu foi que bebi tanto que passei cinco horas vomitando, depois dei um intervalo de duas horas para me deitar no chão do banheiro e encarar o teto. Nunca tinha percebido o quão feio e embolorado ele está. Dá uma sensação de sujeira, mas aqui em casa é tudo bem limpinho. Minha mãe lava as embalagens de tudo o que compramos, antes de guardar. Sim. Minha barba já está crescida há tanto tempo que logo já deve começar a cair, mas ainda moro com minha mãe. Não sei como deixa-la. Como deixar alguém que lava todas as embalagens antes guardá-las? E as seca. Ela as seca também. É uma coisa meio psicótica paranóica doentia, eu sei lá. Mas acho bom. Acho que é bom sim, de alguma maneira.

Enfim, durante o meu intervalo, enquanto estava deitado no chão do banheiro pedindo a Deus para que por favor me levasse e deixasse essa minha dor esse meu vômito essa minha tontura para trás eu recebi uma mensagem de uma mulher que me ama lá de longe. Ela me ama lá do outro lado do oceano. Rodeada de uma língua que conheço, mas pouco compreendo. Ela me ama inclusive em mais de duas línguas. E eu não sei porque, mas ela simplesmente me ama. Como se nada lhe restasse fazer além disso. Me amar, me amar, mar mar, a distância que seja. Uma vez despencou de lá só para me dar uns beijos. Uns milhares. Na minha língua e nas dela. Foi legal foi lindo porque parecia coisa de cinema e tinha cheiro de pipoca, mas ela andava na ponta dos pés, e eu não consegui parar de odiar isso depois que comecei. Em alguns momentos, até cheguei a achar bonitinho, parecia que ela estava escalando as nuvens, mas aí eu me lembrava que ninguém faz isso, e eu tinha vontade de tirar fora os pés dela. Mas mesmo sem eles, não era, nem nunca seria ela. Entende? Ela pesava demais para pisar nas nuvens. E meu sonho sempre foi amar no céu.

Mas é isso, enquanto eu estava naquilo de encarar o teto, tinha uma outra mulher dormindo quase desmaiada no meu quarto esparramada na minha cama. Ela vive aparecendo por lá, isso já faz uns dez anos. Talvez menos. Com certeza mais. Já mudei a cama de posição, já mudei de cama, mas ela continua indo parar lá. E isso quase toda noite. Ela me chama de amor, e ainda diz que sou dela. Me chama de meu amor mesmo sabendo que já fui amor de outras, enquanto era amor dela. E quando ela me pergunta quantas eu digo que não sei. E ela diz que mais de dez em cada ano. Talvez menos. Com certeza mais. Então deve ser amor mesmo, né? E eu devo mesmo ser dela.

Quando consegui, finalmente, levantar do chão e voltar para o quarto, ela viu que a outra, a que fala mais de uma língua e me espeta com os lábios, apareceu nos meus olhos. Não sei como. Ela simplesmente vê através de mim. E me atravessa não importa a hora não importa o tempo não importa nada. E mesmo assim, vendo a outra em mim, viu primeiro minha palidez e meus joelhos trêmulos e meu cabelo com cheiro amargo e me levou até o hospital, onde ficamos por umas duas horas, sentados. Esperando, e ela sem falar nada. E eu gemendo mais alto que um cavalo – cavalos gemem? Se não, deveriam – para ver se ganhava um olhar dela. Um olhar dela no meu e meu coração pararia de disputar a dor no tapa com o estômago.

Sabe que não sei em que ponto quero chegar. Hoje fomos ao cinema, eu e ela, como fazemos todos os domingos - é quando a gente se despede e se vê quando der -, e eu falei que acho esse troço de amar meio psicótico - pior, ainda, que lavar todas as latinhas. É claro que discutimos, a gente sempre discute. Porque ela sonha em constituir família, e eu só espero ter dinheiro para nunca faltar bebida na geladeira – que ainda é a da minha mãe. Ela é meu amor pão com ovo. A gente até finge que não, mas nada no mundo é mais gostoso.

“Basta querer” é isso que ela me diz quando eu tento dizer que é ridículo tentar garantir que vai me querer para sempre. No começo, me dava vontade de vomitar, mas eu já me acostumei. Eu odeio a hora que ela vai embora, porque só ela sabe me deixar. E só ela volta depois que me deixa. Eu tenho muito medo de que um dia ela vá embora, e não volte no domingo seguinte. Vem muita pipoca no saco pequeno. Às vezes você não fica assustado pensando na possibilidade de nunca ser amado?

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Mais um de amor/ mais de um amor

Era só um instante. Um instante que nos separava daquilo que éramos para algo muito maior. Eram alguns centímetros, entre meus lábios e os seus. Entre seu pescoço e a minha nuca, alguns a mais. E toda essa distância podia ser, era, muito maior. Questão de milímetros e quase, mas quase mesmo, poderíamos desafiar todas as leis da física da química da matemática as leis de todo o mundo e ocupar o mesmo espaço – mas ele não existia. Isso era quase. E eu tenho certeza. Entre nós, quando não nos encostávamos, quando ficávamos só a nos olhar com estranheza – afinal, éramos um estranho ao outro, por mais que uma luz se acendesse no fundo dos olhos nos dizendo que não -, quando ficávamos assim, nesse bem querer distante que se queria desde o cálcio nos ossos, parecíamos dois seres vivos em morte – de tanta vida que nos petrificava. E ficávamos, na distância entre nossos corpos, a nos olhar com estranheza naquela intimidade distante que, tão logo, se revelaria ainda maior. Porque éramos, afinal, um talhado de maneira a caber encaixar em cada ausência rigidez orifício do outro. E por sermos assim, já tanto e já tão depressa, as coisas desandariam um pouco – caminhariam no tempo próprio, onde não caberiam as palavras e só os olhares estranhos que ficariam a se estranhar e se querer nesse bem querer tão grande que se confundia. Ficávamos a nos olhar, os lábios se tocando mesmo distantes, e havia um espaço ali. Naquele espaço entre o meu corpo e o seu: o infinito. Era ali onde se encontrava. E quando nos encostávamos: o infinito escorria pelas nossas pernas, escapava pelos lados e subia, arrepiando os cabelos. Também subia. O infinito era em horizontal vertical e em diagonal. Transcendia, num sambinha meio mole, meio caído para o lado esquerdo, com os ombros encostados na poltrona, sonolentos, esperando só a hora, os pés querendo ir, querendo ser levados, sem nem se importar para onde.

Isso tudo. Isso tudo é besteira. Isso infinito. Que nos possui de uma forma estranha. Onde, mesmo estranhos, nos beijamos a boca e lambemos as feridas. E por um segundo que seja, de uma noite fria de maio, parecemos feitos um para o outro, e nos desfazemos, por meia-hora que seja, um no outro. Isso infinito que se soma as miudezas dos dias e nos arrastam pelas ruas, a atravessar rapidamente enquanto os carros se embaralham, a segurar as mãos. Esse espaço infinito em que nos molham os lábios e eu só penso em algumas palavras para te dizer e espero que sejam ditas sem que eu precise abrir a boca. Essas palavras que nos saem pelos poros e eu te olho e você me entreolha – e na estranheza não lhe deixo mistérios, você me entra e nenhuma porta trancada, nem semi-aberta, nem nada. Eu deixo que entre e espero mesmo que nunca saia, por isso, essas palavras nunca ditas já dizem, imediatamente, que eu espero por algo infinito em tempo, mesmo sabendo que não existe. Ou querendo acreditar que sim, mas homem o suficiente para dizer que não. Não vamos nos assustar. Não vamos nos assustar. E eu te beijo os lábios e você me morde a língua. E nada nunca é tudo e tudo sempre é nada. Eu te beijo com essas palavras engasgadas. E nosso beijo tem gosto de verbo. Que saiba, eu conjugo, com a precisão de quem costura um peito aberto, num volume baixo quase afundado na terra, antes de dormir, e a cada vez que acordo, ao longo da noite, e te olho acordada em sonhos...

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Irônica crônica sobre o tempo

Postada, originalmente, no Entre-vistas.

Maria todo dia acorda, olha para o relógio digital na cabeceira da cama, que sempre se diz entre 07h00 e 07h30, e liga o abajur. O quarto amanhece sempre anoitecido já que, de segunda a segunda, à noite, quando o relógio digital se diz entre 07h00 e 07h30, ela fecha as persianas, cujas frestas são tão pequenas que qualquer dia pode se tornar noite no mais simples do movimento – “só puxá-las da direita para a esquerda”, ela grita, em geral da sala, quando coincide de alguém passar pelo corredor por volta desse horário e ela estar com os ossos duros demais para se levantar da poltrona.
Depois de ligar o abajur, se senta com os pés para a fora – suas pernas curtas não permitem que os encoste no chão -, do lado esquerdo da cama de casal. O lado direito vive há dez anos vazio, e depois de sentada de seu lado, Maria olha para ele e constata, mais uma vez, as fronhas perfeitamente passadas de dois dos quatro travesseiros dispostos, igualmente, na cama. Se assusta, mas se lembra que já passou do susto, e então ajeita os cabelos, já quase todos brancos, passa a mão pelo algodão da camisola, e coloca o relógio de pulso, no qual checa, outra vez, as horas. Entre 07h00 e 07h30.
Tira uma roupa do armário. Todo dia uma camisa estampada de flores – Maria ama flores, especialmente as gérberas - e uma saia, geralmente em tons de cinza, que alcança os joelhos. Alcança um sutiã e uma calcinha – chama de “calçola” e ri, como Maria ri das coisas que só saídas dela tem graça – e entra no banheiro. Depois que tira a camisola e já está entrando no box do chuveiro, volta para a bancada – onde deixa seus colares, escapulário e o relógio de pulso – e olha, mais uma vez, as horas. Pouco passou de entre 07h00 e 07h30, mas ela olha e leva um susto, e diz só para ela: nossa, já são mais de (um horário entre esses dois)?
Abre o chuveiro, bem pouco, a água cai quente no seu corpo desenhado pelo tempo, o sol, e a gravidade. Aí se lembra que não gosta de banhos quentes – quem ocupava o, agora, vazio da cama é que gostava que ela lhe preparasse um banho quente -, e se lembra ter se confundido – pelo sono, é claro - e sai do chuveiro para chamá-lo. Se enrola na toalha e vai descalça até o corredor e grita: Zeca? Zeca? Zeca, homem? E se chateia, e faz aquele barulho típico de chateação com a boca e volta para o quarto, é quando olha a cama e vê metade dela intacta, a metade dos travesseiros com a fronha passada, e se lembra que esqueceu que ninguém mais ocupava aquele banho quente há dez anos.
Se assusta, mas se lembra que já passou do susto, e ajeita o cabelo já meio molhado, e se senta do seu lado da cama, o esquerdo, sem encostar os pés no chão, pelas pernas curtas, e então olha para o relógio digital e vê que já passam bem das 07h30, e vê as persianas fechadas, no escuro do quarto, o corpo quase todo molhado, lembra que esqueceu de se secar depois que saiu do banho, e se seca. Pega outra camisola de algodão no armário, olha as camisetas estampadas de flores e se lembra dos jardins da infância. Faz barulho de nostalgia com a boca e retorna ao banheiro, coloca a camiseta estampada de flores e a saia que vai até o joelho no cesto de roupa suja, pega o relógio de pulso e pensa em como já está tarde. Coloca ele na cabeceira, junto com os colares e o escapulário. E se deita para dormir.

domingo, 27 de outubro de 2013

Fragmento X - ou sobre perder as contas

Eu descobri, há pouco, que já te olhava, há muito. E fiquei sem palavras. Sem saber como dizer o que nunca imaginei que diria. E fiquei sem rumo – não que tenha, em algum momento, imaginado um caminho. Mas fui me arrastando, feito bicho, para perto. E me enrolei, feito bicho, em suas pernas. E me emaranhei, feito folhas que caem das árvores com o vento, nos seus cabelos. E era natural, nisso de ser seu, ser natureza. Pois é na natureza das coisas, que as coisas realmente estão. Existem. Em essência, e depois se alongam, em existência. É natural que, de alguma maneira, eu queira existir em você. É natural que, essencialmente, e por natureza, eu queira ser, em fato – corpo - e em essência, de alguma forma, algo que exista em você.

Porque – e eu sempre me justifico – ao te olhar, eu absorvo o mundo. Acredite, quando eu digo – embora, vez ou outra, sendo humano, minto - o mundo,  em si, é um universo, dentro desse universo maior - que a gente estuda nas maquetes da escola - e pessoas são mundos, planetas, e a vida feita de galáxias, e as superfícies de contato onde os corpos – e essências – se encontram, astros. Os toques são estrelas! E por isso, caem – como luva ou se despedaçam. Fico nervoso quando te falo mas, por favor, me escute – caso queira, ignore, mas não me conte. Eu te olho e através desse olhar que eu te recebo mundo. Um que só eu vejo. Porque eu te recebo, agora, de uma forma, e mais tarde te receberia de outra, e nunca como teria sido antes, nem como outra pessoa te recebe, ou receberia – porque expandimos e nos remoldamos junto a esses universos. E só eu te vejo assim, mas não por te querer  te olhar tanto. Não por esse querer descabido que me explode o peito e que me expande. Me sinto universo no meu próprio mundo. E dessa maneira que enxergo - porque só eu te vejo assim – vou e vasculho, pelos seus olhos, esse seu mundo. Por detrás dessas paredes, íris, retina – desconheço a fisionomia dos olhos, mas enrolo -, uma parte caos e um inteiro acaso. E eu caso, casaria, tão bem contigo. Porque entre poeira e tinta descascada eu ainda vejo o seu brilho. E como brilha e me traz arrepios.

Eu te vejo e revejo todo esse caminho – um que eu nunca decidi tomar, pois prefiro vinho. E te tomei pelos braços e te engoli e senti, finalmente, a satisfação de estar cheio. Não de estar completo, não acredito nisso. Somos sempre fragmentados. Mas enfim...você me encheu, e senti, ao longo do meu corpo – como um todo, e parte por parte – sua presença me ocupando. Eu te ingeri com os olhos, perpassei sua boca e te instalei no coração.

Daí, naturalmente, já não sei mais onde queria chegar, pois te olhei e fui feito bicho me emaranhar nos seus cabelos, e fui feito folha cair sobre seu colo e fui feito não sei nem por qual motivo, mas com certeza entre o caos e o acaso era para vir parar aqui... o natural seria que me instalasse da mesma forma. De qualquer maneira, em essência, existo e aguardo que me receba.

Para onde vão os grandes amores?

*Esse meu texto foi publicado no http://entreasvistas.web73.f1.k8.com.br/category/entre-linhas/
Ao longo das crônicas dessa coluna, vocês vão perceber que o meu ir é sempre o voltar para esse mesmo tema. Por mais que resolva dar voltas e pincelar outras coisas, em um momento seguinte, acabarei retornando a ele: ao amor. Isso não faz de mim uma pessoa meiga, não precisa fazer barulhos agudos e querer me abraçar. Ir e voltar ao amor, à sua reflexão, não me torna afável, mas humana. Também não me classifica como romântica, e sim revela um fetiche pessoal. Sou um voyeur dos amores dos outros – e dos meus.
Dia desses, na internet, li algo sobre rever um grande amor. E a leitura ficou impregnada em mim. Nem tanto pelo conteúdo do texto, mas pela situação indicada. Isso, de “rever um grande amor”. Não quero definir aqui os tamanhos de cada afeto. Cabe a cada um saber do seu. Dos meus grandes amores, sei muito pouco ou quase nada – sei que não cabem no conceito de “tamanho.”
Essa minha incapacidade de dar a eles medida, pode te levar a uma outra conclusão sobre mim: de que só amo amores sem tamanho. Sim. Amores precisam ser desmedidos. Aqui, não pretendo me direcionar a quem ame com fita métrica e horário fixo. Já nos bastam as contas que chegam em um mesmo dia de cada mês, e o número de xícaras de açúcar que vão na receita do bolo, e o número de minutos que espero até o sinaleiro ir do vermelho ao verde. Eu quero falar do amor que, em algum momento, te faz perder o Norte. Mesmo que já perto no fim. Ou, o ainda mais e melhor, no êxtase adolescente do início.
Para onde vão esses amores que nos viram do avesso? Para onde foi aquela pessoa que te fazia pular e levantar os braços, entusiasmado com a sintonia entre os dois, a cada vez que saía de perto? Para onde foi quem subiu em uma escada de alumínio, na frente do seu prédio, só para alcançar sua janela e te deixar flores? Para onde o tempo levou aquela pessoa que deu seu próprio nome a uma pinta minúscula – e que nenhuma pessoa, além dela, veria – que você tem, desde criança, na barriga?
Como é difícil rever um grande amor. Por mais que anos passem, existe um choque que te impede de olhar firme, com os dois olhos, para aquela pessoa. E a culpa não é sua. Nem dela. A dificuldade está nessa lacuna: em que momento o “grande amor” abandona o corpo físico e se desfaz? Quando você passa a olhar aquela pessoa como um peso morto jogado no seu sofá da sala, um barulho incômodo que te impede de dormir? Com sorte, essa pessoa não sairá da sua vida completamente e retornará de outras maneiras: em pequenos afetos, trocas de favores no trabalho, ou em encontros casuais onde ambos se limitarão a conversar amenidades e trocar as mesmas informações pessoais que constam no Facebook.
Grandes amores não se refazem no convívio. Grandes amores não encontram espaços outros que não o da boa educação – isso, na melhor das hipóteses. Existem, é claro, exceções. Mas as quais não dou muito crédito. Para mim, essa enormidade de sentimentos e sensações, quando se transforma em amizade, ou em companhia para o cinema de toda quarta, mostra não ter tido a dimensão ou a profundidade imaginada. Grandes amores rasgam!
Quando um amor desses some entre duas pessoas – seja da parte de uma, ou de ambos -, os laços entre elas se desfazem. Perdem sua natureza. E para onde vão? Não escrevo no intuito de descobrir. Não acredito na existência de um espaço onde morre o amor. Talvez ele dilua na água gelada dos compromissos e da rotina, ou na monotonia. E depois que isso se dá, terreno-comum: grandes amores só são grandes enquanto amores, depois se reúnem as miudezas da vida.
O desejo que antes não se satisfazia no gozo, a vontade que não se limitava ao corpo, a presença que mesmo presente se fazia saudade: quando isso desaparece, entre esses dois corpos, não existirá nada se não o estranhamento. O desacostume. Parece extremo, mas é como se lhe fosse amputada uma parte. Você perde um membro. A pessoa se torna outra diante de seus olhos. Em algum momento, depois que acaba, é inevitável se perguntar: agora que não somos mais um grande amor, o que somos um para outro? E o pior: quem sou eu agora?
A sorte é que haverão sempre amores. Uns parecerão maiores. Outros mais apertados. Terão os livres, os neuróticos e os grandes amores de antes continuarão circulando por esse mundo. E será sempre estranho. Até acontecer tudo outra vez. E, quem sabe, a gente se acostumar com o fato de que, mesmo que não se perceba, o amor é algo tão grande que chega e vai embora por vontade própria, sem dar nem satisfação.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Fragmento 4 - das compulsões

com pulsões,
esse amor-músculo
me expande 
e me comprime

Às seis horas já estamos de pé. Eu sempre te olho ainda deitada e te desejo bom dia. Bom dia, amor. E encosto meus polegares próximos aos seus olhos e limpo suas remelas. Você se agonia e contrai os braços. Se de bom humor, ri. E me pede para deixar de ser louco e eu te digo que isso só sou por sua causa. Você ri de novo e deixa a calcinha jogada pelo chão e entra para o banho. Eu tento ir atrás, mas você, mesmo depois de me deixar, não me deixa. Tranca a porta e me diz que só te atrapalho.
Eu sou todo atrapalhado e mesmo correndo para o banheiro, você fecha a porta na minha cara e eu quase sempre bato com o nariz. Meu nariz nasceu primeiro e cresceu mais que o resto. Quando te disse isso, pela primeira vez, você riu por vários minutos. E eu concluí que estar apaixonado dá mesmo mais graça as coisas.
Se de mau humor, você empurra meus dedos afastando meus braços e acaba se arranhando e me fazendo arranhar você. Diz que já está atrasada e que eu só te atrapalho. E reclama que minhas unhas estão grandes demais para um homem. Então critico seu sempre presente discurso sobre a crueldade dos estereótipos. E você me bate a porta na cara. E quase sempre pega no nariz. E eu sei que do outro lado da porta você escuta o barulho da madeira do osso e da cartilagem. E eu escuto e sei das suas costas em atrito com a madeira os pêlos e ossos e o barulho das suas nádegas batendo no chão pouco depois de escutar a pele em atrito com o esmalte da porta e seu corpo deslizando até as nádegas fazerem o barulho que fazem ao encostar inconsoláveis no piso frio de cerâmica.
Eu sei que fica sentada por uns dez ou doze minutos respirando com força com a cabeça para baixo e a testa apoiada nas mãos fechadas. E eu escuto você pensando que queria ser mais calma e mais controlada e que não deveria me dizer o que diz quando está irritada sem saber nem o motivo. Pensa que não deveria nem de brincadeira me dizer que só atrapalho e nem fechar a porta em minha cara porque um dia poderia acabar quebrando meu nariz. Pensa que um dia poderia, até, acabar nos quebrando. Nos fraturando. Fazendo sangrar. Pensa que então eu poderia ir embora. E eu escuto você me pedido para por favor não ir. E alguma coisa que não consigo escutar direito te desespera e você se levanta e abre a porta assustada. Sossega quando me vê deitado na cama e vem com seu corpo nu me cobrir. Respira fundo todos os seus pensamentos que acha secretos e me aperta até dormir. Me aperta até suas mãos afrouxarem e você partir. Amo quando sai para sonhar
e esquece seu corpo no meu.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Fragmento 3 - da distância que percorrem os sonhos

(Voz vinda da televisão) Segunda-feira, dia 20 de dezembro. Boa noite, começamos agora o Jornal Local. Relatório da Polícia Militar revela que a incidência de acidentes de carro é quatro vezes maior no período das festas de final de ano.

Na noite de domingo eu disse, enquanto tomava a sopa, que na segunda eu começaria a reler Dom Casmurro. Porque na madrugada, de sábado para domingo, eu havia sonhado com um machado me perseguindo. Um machado preto e branco, duas vezes o meu tamanho, do qual eu fugi incansavelmente durante todo o sono. Foi um sonho de noite inteira. Sonho! E não pesadelo porque, quando senti o coração prestes a pular pela boca, parei, com as duas mãos para o alto e me virei em direção a ele, que desacelerou o passo, e fez o coração fazer saltar a pele, veio andando quase se arrastando e me abraçou sem braços. Me abraçou um abraço desabraçado e eu me senti mais leve. Quando acordei, pesava todos os meus quilos a menos. Era quase negativa do tanto peso que me foi tirado, mas não é esse o estado, "ser negativa" me pesa. Eu era toda leveza...
No fim da tarde de sábado encontrei alguns amigos da faculdade. Depois de assistir o sol se pôr e traçar uns cigarros, decidimos prolongar a companhia, o estar-junto. Enquanto o álcool percorria seu caminho - da mesa do bar, para a quina da mente -, demos voltas e voltas por pontos difusos de opinião até desaguarmos em Capitu. Não sei mais nem como, mas chegamos até ela. Entornamos Capitu. Viramos a moça do avesso. Pegamos carona na ressaca dos olhos dela e nadamos nadamos nadamos. No final, a mesa quase toda se colocou contra mim. Que decidi que nunca seria uma Capitu. Decisão já feita antes, na escola, quando precisei ler Casmurro, e retomada, então, depois de anos passados e depois de anos esquecida. Nunca cigana, nem dissimulada e nem oblíqua. Condenei aqueles olhos que nunca vi. E que terra nenhuma pôde comer. Ainda ergui o copo e pedi para que um Bentinho fosse enviado para mim. Que todos os Bentinhos escapassem dessas Capitus, pelas quais se sentem imamente atraídos. Por detrás disso, o pedido era para que alguém olhasse em meus olhos ao ponto de querer descrevê-los - sutilezas que a linguagem não revela. Eu repeti várias vezes que jamais seria como Capitu. Teria raízes na terra, não tremularia nem por catástrofes e, sob condição alguma, teria quinas, pontas apontadas para fora de mim. 
Fui obrigada a fazer as pazes com Capitu, no sonho. E essa paz feita me desfez. Acordei tão mais de ressaca do que qualquer mar, do que qualquer par de olhos. Estava leve feito pluma. Feito areia que vai e volta faceira na beira da praia com a menor das brisas. Pus as tripas para fora, antes de dormir. Acordei sendo só coração. O corpo fraco, mas gostoso de vestir. Parecendo pijama de avó. Aquele cheiro de talco e algodão macio.
Por isso, enquanto tomava a sopa, sentada na mesa da cozinha, sujando a toalha toda a cada vez que servia o vinho, disse que releria Dom Casmurro. Que me debruçaria pelas páginas empoeiradas onde vive Capitu. As linhas de horizonte Arial Black tamanho oito estampadas nas folhas. Por onde andam, rebentam, dissimulam, perfuram, os olhos de Capitu.
Eu sei, não consigo me sentar com os dois pés no chão. Ficar de pé, tudo bem, me dá a sensação de estar passando pela vida, e não ela por mim. Sentada, pelo menos um dos pés para o alto, apoiado em algo ao redor, qualquer coisa, qualquer coisa que não me dê a sensação de que a vida passa por mim e de que não flutuo com ela. De que o vento levanta as cortinas e eu permaneço imóvel. As cabeças que viajam para muito longe sempre são precedidas por pés que querem correr-mundo. Não, que querem correr-universos. Atravessar galáxias.
Já me disseram inúmeras vezes que não sou daqui. Acho que até sou mas, às vezes, vou parar desembestada lá longe.
Minha mãe, uma vez, me contou que quando criança, me perguntaram o que queria ser quando crescer, e eu disse
- Quero ser grande, enorme, pra poder guardar o céu em mim.
E me perguntaram o motivo
- Porque é um jardim azul cheio de nuvens, pra onde vão as estrelas e as pessoas, quando viram estrelas.

Aliás, você escutou o jornal? "Incidência" é uma palavra muito bonita. Gostosa de falar. Fica esse gosto de incidência na boca. Outra muito boa é "estrelas", a língua sobe dura e desce mole quase desmanchando. Estrelas fazem cócegas no céu da boca.

Que eu nunca descubra a felicidade

eu achei estranho, mas ela veio e me disse que precisava deixá-lo
- eu preciso deixá-lo
e eu fiquei olhando com meus dois olhos abertos do tamanho das rodas de um caminhão
- eu preciso ir embora
ela disse que precisava ir embora e eu fiquei olhando com meus dois olhos arregalados do tamanho das rodas de um avião
não mais que uma semana estávamos as duas sentados no sofá da casa dela olhando o álbum de fotos da última viagem deles
mal se viam os prédios ao fundo
as obras de arte as portas dos museus as placas no metrô mal se viam as comidas nos pratos
era olhar para as fotos e estar hipnotizado pela hipnose dos dois
a maneira como os dois se olhavam em cada uma das fotos, como se olhassem pela primeira e pela última vez
como se a cada vez que se olhavam, o mundo passasse a ter um significado inteiramente novo
como se a cada vez que se olhavam, se assustassem com a presença um do outro
e até quando, nas fotos, não estavam se olhando, era possível ver as veias azuis, saltando das mãos de cada um, subindo pelos braços
a força feita pelos corpos para olharem para a câmera e não um para o outro
as fotografias que ele fez dela, trêmulas, borradas, mostravam há quanto batiam os corações
não mais que uma semana, ela esticava as pernas e tentando alcançar a ponta dos pés me dizia
- eu vivo da vida que ele me dá
a gente se servia de chá de erva doce ao longo da tarde
e vendo as fotos eu lembrava dela antes dele, quando mais nova, uma força imparável
que girava girava girava pelo mundo e pela vida como se não fosse parar nunca como se feita para isso como se feita para fazer vento e levantar as folhas secas no asfalto
girava feito o mundo feito roda gigante feito todas as luzes de quartos e salas acesos pela cidade à noite
girava como se nada pudesse interromper seu tão seu movimento
girava como se tudo fosse dela
sumiu por uns tempos, foi quando o conheceu e por mais que a falta feita por ela fizessem as coisas mais monótonas, nada foi pior do que quando se tornou inerte
- eu preciso deixá-lo
foi nesse momento em que percebi que ela já não mais girava
ainda levantava as folhas e todo o tecido morto espalhado pelos cantos
uma força ainda vinha do fundo dela e era o que a fazia sempre tão feliz sempre com os olhos sempre pintados de vida
quando perguntei os motivos os olhos se encheram de lágrimas e a tinta vida escorreu suave pelos cantos
ela se acostumou
a ser feliz
mas felicidade
tem que ser mais
que um costume
a vida precisa ser essa corda que quase se arrebenta para cima ou para baixo
essa linha que precisa ser ondulada pontuda afiada inesperada e que precisa oscilar infinitamente em si mesma e na gente
essa corda faca flor a nos penetrar
na vida a gente tem que sentir muito de tudo para nunca se acostumar com um sentir só
naquela noite, ela o deixou
ao lado de sua deixada ausência na cama, também um bilhete:
que a gente sempre seja feliz, mesmo sem nunca saber o que é a felicidade
aliás, que a felicidade nunca se defina, para que a gente nunca pare de procurar

mal chegou setembro e já cantam as cigarras

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Fragmento 2 - o que desandou

Presença turva, em meio a milhares de corpos. Noite de céu aberto, estrelas a serem contadas nas mãos e um frio de rachar os lábios.
Eu bem te olhava. Eu bem-te-vi. E bem-te-veria, daquele momento em diante. E você mal me olharia, porque certas presenças, de luz muito fracas, de lâmpadas quase queimadas, às vezes, passam imperceptíveis por olhos que podem olhar-oceano. Olhar-se-ano.
De alguma forma, desde aquele momento, você entrou. Você adentrou por todos os meus cômodos - internos e externos. Deixava as portas abertas e largava as roupas pelos cantos. Eu não suportava o seu descaso. Também não suportava o cheiro dos seus incensos, especialmente o de canela. Que me transportava pra um tempo passado. Sobre isso não falo, nunca te falei. Só me irritava e saía batendo pé. E você saía batendo o pé atrás. Contando assim, parece que tudo se deu imediatamente. Sua presença no mundo e ausência de algo em mim se fundindo numa soma perfeita. Meu corpo, em espírito, te pedindo para entrar. Me pedindo para me entregar. Como, se de repente, as forças do universo percebessem que a falta em mim tinha exatamente o seu tamanho.
Eu me aproximei. Eu me aproxi-metro até que fossem só centímetros. E ainda assim, você sentia dificuldade em me enxergar. Pressionava forte os olhos e eu me sentia a menor das coisas. Para minha sorte, eu falava bem alto, então você me soube ali. Me percebeu, ausência presente. E achou graça do meu esforço em ser notado. Achou graça, também, na minha dificuldade para pronunciar certas palavras. Por sorte, eu te causei alguma coisa, logo o riso.
Para a sorte se tornar azar, só é preciso trocar de roupa. Foram meses, e a passagem latente de um dia após o outro. Os joelhos barulhentos se arrastando pelas horas. O coração vindo até a boca e o gosto de ferro.
Eu sempre soube que iria embora. 
Eu sempre soube que, mesmo tendo acabado de chegar, estava de partida.
E que me partiria, num momento seguinte.
Mas te segui, mesmo assim. Pelos corredores pelos quartos as calçadas das cidades ruas estradas avenidas becos. Eu te segui de joelho correndo repetindo, a cada movimento, o quanto sua existência me movia. E eu te via e me via indo para frente 

E eu te amava. Nossa, como eu te amava. Como eu te amei. Como eu te quis e me refiz, só para caber. Só para tentar me prender em você. Porque assim, quando estivesse de partida, pronta para abrir a porta, pegar o elevador, e sair mundo afora, me carregaria junto. Me carregaria junto porque eu te pertencia. E você não poderia me tirar dali. Nunca me tirar de você.
Desmoronamos, eventualmente. E essa história se repete, com uma melodia que nos parece familiar. De algo deixado para trás ou imaginado.
As histórias se repetem, é assim com todas elas. Eu fraquejo, agora, ao tentar encerrar o que escrevo aqui. Parece desnecessário. E assim são todas as coisas. Repetições desnecessárias.
Sofro as dores desse amor-fratura:
exposto.
Mas que se repete,
de dor em dor
de história em história
de amor em amor.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Fragmento 1 - sobre a parte ou perda da nossa existência que se rompe

como ser
sem ser
seu?
como seu
sem ser
céu?

Sempre escutei que tudo acaba. Absolutamente tudo, sem exceções de qualquer tipo. Variam os motivos, as razões, a falta delas. De repente, começo a escutar que até o mundo vai acabar. O mundo. Digo, justamente o mundo - se eu pudesse escrever, aqui, as palavras de forma a representar o exato tom com que devem ser lidas, certamente você teria arregalado os olhos. Não me espanto. Não 
me deixo espantar. Já sabia que nenhuma terra é completamente firme para os pés. Mas quando o vento parece trazer sorte, a gente até se deixa acreditar.
Naquela tarde, dirigia o carro pela estrada, e me atravessavam todas as cores, todos os cheiros e todos as sensações. Na paisagem em volta nada que fugisse muito do verde, azul, e branco - soma das terras com o céu -, mas eu era bem maior. Naquele momento, naquela tarde, em que eu saí com o carro pela estrada sem rumo, onde me encontrei, eu fui bem maior. Eu fui e nada mais do que era ficou.
Às vezes a mente escapa e vai dar voltas em torno de um astro qualquer. Coisas absurdas parecem sensatas e pequenos detalhes deixam de ser contornáveis. Passo a observar o mundo com uma lupa.
Parei o carro. No meio da pista. No meio do - que pareceria - nada. Estacionei na grama e como se algo falasse por mim, fui descendo pela mata baixa. Não gosto muito de insetos, nem da natureza, mas não me detive. Mesmo coçando dos pés a cabeça. Mesmo com o rosto pingando suor.
A copa das árvores foi se tornando cada vez maior, ou eu passei a vê-las assim, mais verdes, mais altas, e de repente aquela natureza foi se fechando e me fechando nela.
Estava só. Fui sol. De cabeça para baixo.
Parei o corpo. No meio da mata. No meio do - que pareceu - tudo. Deitei na grama e como se algo falasse por mim, fui soltando os músculos. Eu parecia prestes a escorrer a qualquer minuto. Eu era tão parte daquilo tudo. Fui flor, e como for, fui terra, pedra, musgo, cheiro do verde, cheiro de cor. Que eu nem conhecia, mas soube de cór. De coração.
Ali, eu quase te esqueci. Deitado sob as sombras, escutando o que deveria ser um riacho.
Ali, eu quase esqueci que estava tentando te esquecer. Deitado, sem sombras que não me escutariam e nem me diriam o que eu deveria ser.

Os raios de sol que conseguiam atravessar, tornavam as folhas quase translúcidas. O mundo nunca tinha sido servido aos meus olhos de maneira tão crua. Estávamos nus, eu e ele, um de frente para o outro. Girando, girando, até nos vermos ao avesso. O mundo, num espasmo, pareceu um reflexo meu. E eu, finalmente, nos reconhecia. Ou conhecia, genuinamente.
Ao estar deitado ali, eu era apenas um pedaço de algo. Mas aqui, dentro, eu me sentia inteiro.
Nunca tendo sido fácil te esquecer, mesmo leve e desprendido, algumas imagens me vinham à cabeça. Você perdendo o bíquini no meio do mar, seus cabelos molhados e cheios de sal cobrindo seu rosto desesperado. Quando subia nas cadeiras para alcançar os objetos nos armários. Quando ralou o joelho ao cair da bicicleta. A primeira vez que bateu o carro. Eu só lembro de ter a certeza de que me amava quando precisava de mim. Quando eu me fazia necessário e você me olhava uns olhos arregalados, os braços em volta do meu.
Eu caí no erro de achar que só se ama uma vez na vida. E aí eu te amei por uma vida inteira.
Me desesperei, quase entrei em colapso. Os prazos se acumulando na mesa e você me dizendo que estava de partida da minha vida. Vida da qual achei que até eu queria sair. 
Eu joguei, muitas vezes, para cima de você o peso das suas próprias palavras. Antes, sem nem saber que as palavras não tem peso. São entes leves. O peso é o que está na gente. 
Eu te cobrei o número de vezes que repetiu "para sempre". E só depois fui perceber que a eternidade está no coração de quem sente. Foi o que deveria ser - e assim são todas as coisas.
Parei o coração. No meio das recordações. No meio do - que virou - nada. Encostei com as mãos no centro do meu peito e como se tomasse posse de mim outra vez, fui te soltando. Te vi ser borboleta e te vi voar de mim para bem longe. Me vi ser raio de sol, no maior esforço para atravessar e tornar translúcidas as folhas, e voltar para mim.
Ali, eu fui tão maior. Fui tão eu. E eu é uma palavra tão pequena para o ser. Fui o que deve ser a existência rompendo os limites de seu próprio corpo para, eventualmente, abrigar um outro.