segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Que eu nunca descubra a felicidade

eu achei estranho, mas ela veio e me disse que precisava deixá-lo
- eu preciso deixá-lo
e eu fiquei olhando com meus dois olhos abertos do tamanho das rodas de um caminhão
- eu preciso ir embora
ela disse que precisava ir embora e eu fiquei olhando com meus dois olhos arregalados do tamanho das rodas de um avião
não mais que uma semana estávamos as duas sentados no sofá da casa dela olhando o álbum de fotos da última viagem deles
mal se viam os prédios ao fundo
as obras de arte as portas dos museus as placas no metrô mal se viam as comidas nos pratos
era olhar para as fotos e estar hipnotizado pela hipnose dos dois
a maneira como os dois se olhavam em cada uma das fotos, como se olhassem pela primeira e pela última vez
como se a cada vez que se olhavam, o mundo passasse a ter um significado inteiramente novo
como se a cada vez que se olhavam, se assustassem com a presença um do outro
e até quando, nas fotos, não estavam se olhando, era possível ver as veias azuis, saltando das mãos de cada um, subindo pelos braços
a força feita pelos corpos para olharem para a câmera e não um para o outro
as fotografias que ele fez dela, trêmulas, borradas, mostravam há quanto batiam os corações
não mais que uma semana, ela esticava as pernas e tentando alcançar a ponta dos pés me dizia
- eu vivo da vida que ele me dá
a gente se servia de chá de erva doce ao longo da tarde
e vendo as fotos eu lembrava dela antes dele, quando mais nova, uma força imparável
que girava girava girava pelo mundo e pela vida como se não fosse parar nunca como se feita para isso como se feita para fazer vento e levantar as folhas secas no asfalto
girava feito o mundo feito roda gigante feito todas as luzes de quartos e salas acesos pela cidade à noite
girava como se nada pudesse interromper seu tão seu movimento
girava como se tudo fosse dela
sumiu por uns tempos, foi quando o conheceu e por mais que a falta feita por ela fizessem as coisas mais monótonas, nada foi pior do que quando se tornou inerte
- eu preciso deixá-lo
foi nesse momento em que percebi que ela já não mais girava
ainda levantava as folhas e todo o tecido morto espalhado pelos cantos
uma força ainda vinha do fundo dela e era o que a fazia sempre tão feliz sempre com os olhos sempre pintados de vida
quando perguntei os motivos os olhos se encheram de lágrimas e a tinta vida escorreu suave pelos cantos
ela se acostumou
a ser feliz
mas felicidade
tem que ser mais
que um costume
a vida precisa ser essa corda que quase se arrebenta para cima ou para baixo
essa linha que precisa ser ondulada pontuda afiada inesperada e que precisa oscilar infinitamente em si mesma e na gente
essa corda faca flor a nos penetrar
na vida a gente tem que sentir muito de tudo para nunca se acostumar com um sentir só
naquela noite, ela o deixou
ao lado de sua deixada ausência na cama, também um bilhete:
que a gente sempre seja feliz, mesmo sem nunca saber o que é a felicidade
aliás, que a felicidade nunca se defina, para que a gente nunca pare de procurar

mal chegou setembro e já cantam as cigarras

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