segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Fragmento 3 - da distância que percorrem os sonhos

(Voz vinda da televisão) Segunda-feira, dia 20 de dezembro. Boa noite, começamos agora o Jornal Local. Relatório da Polícia Militar revela que a incidência de acidentes de carro é quatro vezes maior no período das festas de final de ano.

Na noite de domingo eu disse, enquanto tomava a sopa, que na segunda eu começaria a reler Dom Casmurro. Porque na madrugada, de sábado para domingo, eu havia sonhado com um machado me perseguindo. Um machado preto e branco, duas vezes o meu tamanho, do qual eu fugi incansavelmente durante todo o sono. Foi um sonho de noite inteira. Sonho! E não pesadelo porque, quando senti o coração prestes a pular pela boca, parei, com as duas mãos para o alto e me virei em direção a ele, que desacelerou o passo, e fez o coração fazer saltar a pele, veio andando quase se arrastando e me abraçou sem braços. Me abraçou um abraço desabraçado e eu me senti mais leve. Quando acordei, pesava todos os meus quilos a menos. Era quase negativa do tanto peso que me foi tirado, mas não é esse o estado, "ser negativa" me pesa. Eu era toda leveza...
No fim da tarde de sábado encontrei alguns amigos da faculdade. Depois de assistir o sol se pôr e traçar uns cigarros, decidimos prolongar a companhia, o estar-junto. Enquanto o álcool percorria seu caminho - da mesa do bar, para a quina da mente -, demos voltas e voltas por pontos difusos de opinião até desaguarmos em Capitu. Não sei mais nem como, mas chegamos até ela. Entornamos Capitu. Viramos a moça do avesso. Pegamos carona na ressaca dos olhos dela e nadamos nadamos nadamos. No final, a mesa quase toda se colocou contra mim. Que decidi que nunca seria uma Capitu. Decisão já feita antes, na escola, quando precisei ler Casmurro, e retomada, então, depois de anos passados e depois de anos esquecida. Nunca cigana, nem dissimulada e nem oblíqua. Condenei aqueles olhos que nunca vi. E que terra nenhuma pôde comer. Ainda ergui o copo e pedi para que um Bentinho fosse enviado para mim. Que todos os Bentinhos escapassem dessas Capitus, pelas quais se sentem imamente atraídos. Por detrás disso, o pedido era para que alguém olhasse em meus olhos ao ponto de querer descrevê-los - sutilezas que a linguagem não revela. Eu repeti várias vezes que jamais seria como Capitu. Teria raízes na terra, não tremularia nem por catástrofes e, sob condição alguma, teria quinas, pontas apontadas para fora de mim. 
Fui obrigada a fazer as pazes com Capitu, no sonho. E essa paz feita me desfez. Acordei tão mais de ressaca do que qualquer mar, do que qualquer par de olhos. Estava leve feito pluma. Feito areia que vai e volta faceira na beira da praia com a menor das brisas. Pus as tripas para fora, antes de dormir. Acordei sendo só coração. O corpo fraco, mas gostoso de vestir. Parecendo pijama de avó. Aquele cheiro de talco e algodão macio.
Por isso, enquanto tomava a sopa, sentada na mesa da cozinha, sujando a toalha toda a cada vez que servia o vinho, disse que releria Dom Casmurro. Que me debruçaria pelas páginas empoeiradas onde vive Capitu. As linhas de horizonte Arial Black tamanho oito estampadas nas folhas. Por onde andam, rebentam, dissimulam, perfuram, os olhos de Capitu.
Eu sei, não consigo me sentar com os dois pés no chão. Ficar de pé, tudo bem, me dá a sensação de estar passando pela vida, e não ela por mim. Sentada, pelo menos um dos pés para o alto, apoiado em algo ao redor, qualquer coisa, qualquer coisa que não me dê a sensação de que a vida passa por mim e de que não flutuo com ela. De que o vento levanta as cortinas e eu permaneço imóvel. As cabeças que viajam para muito longe sempre são precedidas por pés que querem correr-mundo. Não, que querem correr-universos. Atravessar galáxias.
Já me disseram inúmeras vezes que não sou daqui. Acho que até sou mas, às vezes, vou parar desembestada lá longe.
Minha mãe, uma vez, me contou que quando criança, me perguntaram o que queria ser quando crescer, e eu disse
- Quero ser grande, enorme, pra poder guardar o céu em mim.
E me perguntaram o motivo
- Porque é um jardim azul cheio de nuvens, pra onde vão as estrelas e as pessoas, quando viram estrelas.

Aliás, você escutou o jornal? "Incidência" é uma palavra muito bonita. Gostosa de falar. Fica esse gosto de incidência na boca. Outra muito boa é "estrelas", a língua sobe dura e desce mole quase desmanchando. Estrelas fazem cócegas no céu da boca.

Um comentário:

Bárbara Gontijo disse...

Obrigada!!!!! Mesmo....