terça-feira, 30 de abril de 2013

Algum lado da vida.

“Dói olhar para as nuvens, mas também ajuda, como a maioria das coisas que causam dor”.

Adoro mingau, logo pela manhã. O cheiro do leite, esquentando junto com a canela, incorporando na aveia. Depois de pronto, colocar mel. Mas mel mesmo, aqueles de cultivo familiar, com uns pedaços restantes da antiga colmeia. Mel que vem com história.
Adoro acordar e descobrir que choveu na noite anterior. O cheiro do sol aquecendo a grama. O barulho dos carros no asfalto úmido. Os papéis da mesa derrubados pelo vento.
Adoro o som de um novo dia. As vans lotadas de crianças indo para escola. As pessoas reunidas no ponto de ônibus. As filas em caixas de padaria.
Adoro o imaginário. Especialmente, as coisas que criamos para reforçar que está tudo bem.
“Está tudo bem”, alguma outra coisa no mundo soa tão falsa?
Como assim “que tristeza é essa”? Se tenho andado um pouco triste? Talvez. Talvez sim. Sim, tenho me sentido um pouco para baixo. Mas tenho me alimentado bem. E na semana passada, fui ao teatro. Era uma peça que tratava, basicamente, das dinâmicas familiares. Não, não estou obcecado pelo assunto. Sim, as últimas peças que assisti tratavam todas disso. Mas isso tem a ver com o Centro Cultural. É responsabilidade dos organizadores de lá. Uma coisa, são curadores que trazem as peças? Como funciona? Entendo mais ou menos do processo para trazer uma exposição. Eu tenho feito outras coisas. E tenho conhecido algumas pessoas. Não, o fato de ter emagrecido não tem a ver com as peças. Já disse, tenho me alimentado bem. Não, não estou doente. Não sou eu que escolho os assuntos das peças! Mas sim, acho que talvez coincida com meu estado. Não disse com certeza, eu disse que talvez! “Talvez”, você entende o que essa palavra significa? Recentemente, fiz uma observação: parece que quanto mais falta lhe faz, mais falta lhe parece fazer. Não fez sentido esse raciocínio? Tem um pouco a ver com as peças. Tenho quase certeza de que as coisas não vêm a nós aleatoriamente. Como se uma força – que cabe a cada um – puxasse somente o que nos interessa – nesta classificação entra, principalmente, as coisas das quais tentamos fugir. Quanto mais família lhe falta, mais família lhe aparece. No meu caso, neste recorte de tempo, família – não a ideia, mas o conceito – é algo que me incomoda, pela falta dela. E ainda assim, tudo a minha volta grita, respira, cospe família. É uma conspiração. E sim, tenho ido ao analista. Eu quero te escutar, mas dessa forma você só complica as coisas. O diálogo precisa vir de, no mínimo, duas parte - ultrapasso ao pensar que essas partes podem ser eu e eu-mesmo, mas isso não vem ao caso. Não é diálogo se eu tento falar e você não me escuta! Isso é ditadura, imposição!
Continuo tomando remédios para controlar a ansiedade. Você não precisa checar minhas unhas toda vez que me encontra. Tem certeza de que não está com sede? Vou pedir dois cafés e duas águas. Se você não quiser, deixa aí, que eu tomo. Não, a cafeína não interfere. Não, você não leu que ela interferia. Quero quatro cafés então! E nenhuma água! Você não dá conta nem na sua, vai querer tomar conta da minha vida?
Não estou bravo, nem estressado. Eu gosto do lugar, só não entendo o problema do atendimento. Deveriam demitir todos e contratar funcionários novos. Não estou tentando tomar conta da vida dos outros! É só uma sugestão...
Não tenho notícias da Ana. Já deve ter terminado seu mestrado, se duvidar, ter se mudado para a Colômbia, passado por três divórcios. Eu sei que você gostava dela. Eu também. Nunca disse ser poligâmico. E nem o contrário. Acho bonito o poliamor. Nunca disse nada, além disso. Mas repare, “bonito”, não quer dizer que eu o pratique ou que seja praticado em mim. Também nunca assisti nada poliamoroso. Nada escancarado, pelo menos. Então como eu acho bonito? A ideia. É preciso ter muito amor em si para poder distribuir a mais de um.
Está ficando tarde.  Mas antes que você vá...
Não é tristeza, é só saudade...

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Ao dormir, tudo passa...

Eu não me engano - sossegue, logo mais vem o sono...
Eu não me aguento - feche os olhos, assim você vai dormir...
É que tem algo aqui dentro - não me surpreende que não seja vazio...
É que estou olhando você - quando deveria estar já de olhos fechados...
E estou sentindo um vazio - mas e o que havia aí dentro?

Já não lembro mais.

Quarta-feira e você chega do trabalho (põe as chaves sob a mesa). Atravessa o corredor sem emitir um som (próprio, aqui não contam as solas e nem o piso de madeira). Entra no banheiro (onde permanece por cerca de dez minutos). A casa já invadida pelo seu cheiro (até mais cedo, o de mofo, que domina quando todas as janelas são fechadas). Eu estou sentada assistindo televisão (nada que preste neste horário). Ao sair do banheiro, você passa no quarto (para tirar as meias e os sapatos). O suor dos seus pés faz um barulho engraçado ao passear pelo piso (mas não rio). Você se senta ao meu lado (em um sofá com quatro lugares). Permanecemos em completo silêncio desde que cruza a porta até o fim do jornal das sete (oceano). Sua barriga ronca (trilha sonora para a intimidade).
- Temos algo pronto para jantar?
Você vai até a cozinha e abre a geladeira (eu espio, logo atrás). Abre todas as vasilhas (tirando tudo do lugar).
- Macarrão ou sanduíche?
Eu digo que tanto faz (mas o dia estava bom para uma sopa). Entre colocar a água na panela e esperá-la ferver você me conta como foi seu dia (bom, nada demais). Mas esquece de perguntar como foi o meu (bom, nada demais). Abre um vinho (antioxidante, você sempre diz). Quando pronto, nos sentamos à mesa (na sala, para acompanhar a televisão).
- Ficou bom.
- Acho que errei no sal.
Enquanto lavo a louça, você avisa que vai tomar banho (e me beija na testa). Quando sai, vou eu (nos cruzamos, sem beijo). Observo meu corpo nu (ficando de frente e de costas para o espelho). Passo a mão por umas pintas que nunca vi (preciso passar mais protetor solar). Entro e saio do chuveiro (levo uns trinta minutos). Arrependo ao ver meus dedos todos enrugados (devo tomar banhos gelados, recordo). Entro no quarto (você já dorme). Deixo a toalha na cama (você acorda). Encara meu corpo nu (indifente). Eu rio (você nem nota). Escolho o branco com desenhos de nuvens (é o que você mais gosta). Quando deito, você já voltou a dormir (desligo a luz). Acendo o abajur para ler mais um pouco (Lolita, do Nabokov). O barulho das folhas te faz resmungar (as viro com mais cuidado). Não consigo dormir (mexo e remexo na cama). Você resmunga (não resiste e acorda). E briga comigo (depois me segura entre seus braços). Eu disparo a chorar (você não entende). E fica me olhando (eu também não entendo). Tem uma foto nossa na sua cabeceira (olho para ela). Eu no seu colo, numa noite de Natal (sorríamos muito, sorrisos bem grandes). Choro ainda mais alto (pareço um bebê). Você me pergunta o que houve (eu não sei). E eu digo (você não entende). Eu peço desculpas (você aceita, mesmo sem entender).
- Dorme, que tudo passa (você diz).
E eu te olho (e está tudo vazio). E volto a olhar a foto (vejo que havia algo ali).
- Se não dormir, as dores não passam?
(você não me pergunta que dores).
E volta a dormir (as dores de quando a gente não percebe que não está mais ali - ausência).

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Geografia dos corpos - ou vidas limitadas...

Jamais abandonar a poesia. Mas de vez em quando, diluir o que reage por dentro. Reencontrar o prazer do texto em sua trabalhosa prática. Tentativa de dar a mesma fluidez dos sentimentos às palavras.
Eu sempre soube que algo aconteceria. Maior que dor de dente, cotovelo ou decepção. Mesmo caminhando em linhas firmes, ou retas, mesmo seguro, eu sempre olhei para trás.
Ninguém pode ser merecedor de tanta sorte, pensava.
Deixe de ser pessimista, escutei.
Nunca irei me esquecer do caminho que fiz naquele dia – em que o mar se fez céu, e despencou.
As placas, as lojas, as portas abertas, os ipês. Nada nunca mais será o mesmo.
Eu repeti tantas vezes um mesmo pedido para “Deus” que, temo que, por isso ele tenha resolvido ignorar.
Meu Deus talvez só pertença a mim. Ele quem me põe a ninar e me tira o chão. Não sei se é por Deus que devo chamá-lo.  Mas chamo...
Peguei o caminho mais rápido – que pude visualizar no mapa da mente. Em menos de oito minutos, metade da cidade já tinha sido percorrida.
Inconscientemente, me achei capaz de impedir algo.
Naquele momento, nada era mais minha do que a ilusão de ser o centro do universo.
Não sei nem se eu falava com Deus, ou se falava comigo mesmo – achando, inclusive, que eu e ele éramos um.
Não se pode percorrer o mesmo rio duas vezes.
Isso porque um rio nunca é o mesmo.
Pois águas passam por ele e por nós – nos transformamos.
A cidade que conheci, não reconheço mais.
Não atravesso as mesmas ruas.
Não sou sequer quem escreveu a frase anterior. Daqui a pouco não serei quem escreveu essa.
Estar vivo é estar em mutação – grande novidade...
A existência, então, só se fixa após a morte?
Antes, só rascunhos e borrões.
Eu repetia, com as mãos no volante.
Meu consciente, o inconsciente.
Repetia em voz alta e voz nenhuma.
Por favor, faz alguma coisa...
O desespero contraía os pés, que descontavam no acelerador.
Eu falava com quem?
Desci correndo as escadas, o carro estava do outro lado da avenida. Não me preocupei em ver se vinha algum carro.
Joguei tudo no banco de trás.
E fui repetindo, a cada minuto...
Faz alguma coisa!
Não sei o que mais passou por minha cabeça.
Eu continuei tentando salvar alguém de algo sem saber nem o que.
O que é a morte?
Preciso ouvir de quem já a viu.
De quem realmente já sentiu ela de perto.
E não a falta  - lacuna - que ela deixa...

terça-feira, 2 de abril de 2013

Experimentação textual

A verdade é que mal posso enxergar minha mesa debaixo de tantos papéis: certidões, ossos, e ofícios. Acumulados durante meses - desde o momento em que perdi a capacidade de me concentrar. Como muitos, você também vai dizer que devo estar dormindo mal. Pouco, ou tarde – aliás, um estudo recente comprova que quanto mais tarde dormimos, mais chances de termos pesadelos. Mas isso não importa, até porque nada mudou no meu sono. Tomo um banho, e só de cueca, deito e me afundo.
Perdi a concentração. E mais que isso, perdi o interesse, e o fôlego.
Dizem que com certa idade a gente vai se tornando mais distraído, as informações se tornam mais desconexas, e o olhar mais avoado.
Eu não vi esses anos passarem.
Posso ter ficado tempo demais sentado à escrivaninha. Tempo demais com as persianas fechadas. As luzes ligadas o dia inteiro – mesmo com o sol batendo lá de fora.
Quando mais novo, eu tinha muito medo. Medo de que a vida não me reservasse nada anos à frente. Não confiava quando diziam que sacrificar madrugadas na rua e garrafas de vinho poderia me garantir algo quando eu “chegasse lá”. Não tinha ideia do que isso significava – e ainda não tenho. Mas resolvi me concentrar no meu espaço. Nunca maior que 3m². Eu me habituei a viver assim.
Durantes esses anos todos – os que não vi –, nunca deixei que nada se acumulasse. Nada, nem mesmo poeira – quando chega setembro, e a seca.
Não haviam maneiras de traçar o caminho exato, dessa maneira eu nunca me enganei. Mas o destino final? Sobre ele eu tinha certeza: era "lá" onde eu queria chegar.
Noites arrastadas em aeroportos. Engarrafamento na Marginal Tietê. Escala em Ezeiza. De Recife à Curitiba. Meio de semana com um bate-volta em Nova Iorque. O tempo todo em trânsito. Mas nunca subi no Cristo. Nem visitei o Pelourinho. Não sei o cheiro de um tacacá. Não sei dizer se as ruas de certas cidades são menos sujas que as de outras.
O tempo passou para ou por mim?
Eu li bons livros. Alguns dos melhores. Assisti os clássicos dos clássicos do cinema europeu. Ouvi falar de muitas coisas, que depois procurei saber mais. Outras muitas coisas interessantes fui eu quem disse. Citei Nietzsche de cor. Sartre. Sêneca. Interpretei Machado de Assis. Indaguei sobre o Betinho que cabe a cada um de nós. Aguardei, sem mistério, que Crepúsculo chegasse do cinema à televisão. Ainda me lembro o ciclo da água, que eu desenhei por anos com giz-de-cera. Aprendi a escolher uma manga bem madura. E a catar feijão.
É preciso saber de tudo - meu avô um dia disse -, nem que seja para uma única conversa e nunca mais. Ninguém sai do lugar sem saber onde está pisando, capisci?
Lá de cima ele deve se orgulhar. “Lá”: usado sempre para designar um lugar que, na verdade, é completamente abstrato.
Para designar um lugar que ninguém sabe onde fica.
E nem se existe...
Eu fui longe. E se o lá já é aqui, não entendi a recompensa. Pior, se o lá ainda não chegou, não tenho força, nem masoquismo, suficiente.
Emoldurei o verde das íris com o roxo mórbido destas olheiras.
O destino era claro, mas não impediu que me distraísse em alguns momentos. Fiz uns bons desvios. Mas todos sem muita entrega – o coração, às vezes, nas mãos de alguém, mas os olhos sempre no restante do caminho.
Dois casamentos. Não tive filhos. Ambas me deixaram assim que verificaram a permanência da minha incapacidade em me dedicar – de forma verdadeira e esforçada – a algo que não me levasse até “lá”.
Elas queriam o computador desligado, o telefone na gaveta por um final de semana, um café da manhã sem devorar todos os jornais.
Estive, então, sozinho na maior parte do tempo. Com isso não quero dizer que não fiz amizades. Nunca deixei me desapeguei à vista da cidade, apreciada de uma cadeira de bar. Nem de domingos de churrasco, partidas de futebol. Não me desfiz de todos os prazeres imediatos. Mas todos meus amigos, hoje, se voltam para bagunças próximas a esta que me restou.

Encarando essa pilha de acúmulos, não posso deixar de me perguntar: será se cheguei lá? Será que tudo é só isso aqui?

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Contrações


“Nem a beleza nem a força podem te fazer feliz, nada resiste ao tempo”.



Como são engraçadas as coisas que fazem parte de cada um. Dia desses, lendo uma crônica, me apeguei, especialmente, a uma frase: “você encontra a beleza na solidão”. Pensei em anotar num pedaço de papel e deixar em cima da mesa, para lembrar depois. Fui reler o texto e descobri que a verdade é que eu tive pressa quando passei os olhos pela frase. E o que estava escrito ali, tinha um significado diferente do que lhe dei: “você encontra a beleza da solidão.

Um engano de contrações: o sentimento que eu achava ter encontrado ali não existia.
Tem que se ter muita sensibilidade para encontrar a beleza na solidão. Também como encontrar a beleza dela. Mas cada coisa é uma coisa, e a beleza nela e a beleza dela percorrem caminhos que eu considero distantes.
A solidão continua tendo um conceito vago. Aliás, continua sendo coisa demais, e ao mesmo tempo: coisa nenhuma. É uma dificuldade orgânica, impregnada, em tudo o que nos tira de nosso estado “natural”, e que não conseguimos enxergar, nem dar forma.
A beleza da natureza. A beleza da música. Da arte. De alguém. Do cinema francês. Da fotografia. Da mulher brasileira. Do expressionismo, do pôr-do-sol, do litoral brasileiro, do céu ensolarado, das cantigas de ninar, da pureza infantil. A beleza da solidão. Daquilo que é visto, e nos toca. Que é sentido. Daquilo que se torna brevemente presente – na lembrança, na frente dos olhos, ou no coração.
A beleza em alguém. A beleza na contradição. No Rio de Janeiro. No outono. Naquilo. A beleza do que pode ser - ou é - vivenciado. Naquilo em que estamos inseridos. Onde somos personagens, e não só público.
Se encontro a beleza na solidão, quero dizer que estou, imediatamente, nela. O que encontro, na verdade, fica agora em um plano secundário. E o que importa é perceber onde estou. Envolvido, emaranhado, enraizado – se duvidar... -, na solidão. Enquanto aquele a quem eu lia, apenas expressava um reflexo, uma reação, diante de sua presença.
Embora esteja comumente associada à tristeza, não é por ser solitário que sou triste. E vice-versa. Não é pela solidão que eu consideraria me atirar do primeiro penhasco. O que levaria a isso é uma série de outras muitas coisas. A solidão é bela porque sabe ser serena. Há beleza dentro dela. E beleza que emana dela. A arte é, muitas vezes, fruto da solidão de alguém. E que, a partir do momento em que é concebida, passa a ser parte da solidão de outros também.


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