segunda-feira, 29 de abril de 2013

Ao dormir, tudo passa...

Eu não me engano - sossegue, logo mais vem o sono...
Eu não me aguento - feche os olhos, assim você vai dormir...
É que tem algo aqui dentro - não me surpreende que não seja vazio...
É que estou olhando você - quando deveria estar já de olhos fechados...
E estou sentindo um vazio - mas e o que havia aí dentro?

Já não lembro mais.

Quarta-feira e você chega do trabalho (põe as chaves sob a mesa). Atravessa o corredor sem emitir um som (próprio, aqui não contam as solas e nem o piso de madeira). Entra no banheiro (onde permanece por cerca de dez minutos). A casa já invadida pelo seu cheiro (até mais cedo, o de mofo, que domina quando todas as janelas são fechadas). Eu estou sentada assistindo televisão (nada que preste neste horário). Ao sair do banheiro, você passa no quarto (para tirar as meias e os sapatos). O suor dos seus pés faz um barulho engraçado ao passear pelo piso (mas não rio). Você se senta ao meu lado (em um sofá com quatro lugares). Permanecemos em completo silêncio desde que cruza a porta até o fim do jornal das sete (oceano). Sua barriga ronca (trilha sonora para a intimidade).
- Temos algo pronto para jantar?
Você vai até a cozinha e abre a geladeira (eu espio, logo atrás). Abre todas as vasilhas (tirando tudo do lugar).
- Macarrão ou sanduíche?
Eu digo que tanto faz (mas o dia estava bom para uma sopa). Entre colocar a água na panela e esperá-la ferver você me conta como foi seu dia (bom, nada demais). Mas esquece de perguntar como foi o meu (bom, nada demais). Abre um vinho (antioxidante, você sempre diz). Quando pronto, nos sentamos à mesa (na sala, para acompanhar a televisão).
- Ficou bom.
- Acho que errei no sal.
Enquanto lavo a louça, você avisa que vai tomar banho (e me beija na testa). Quando sai, vou eu (nos cruzamos, sem beijo). Observo meu corpo nu (ficando de frente e de costas para o espelho). Passo a mão por umas pintas que nunca vi (preciso passar mais protetor solar). Entro e saio do chuveiro (levo uns trinta minutos). Arrependo ao ver meus dedos todos enrugados (devo tomar banhos gelados, recordo). Entro no quarto (você já dorme). Deixo a toalha na cama (você acorda). Encara meu corpo nu (indifente). Eu rio (você nem nota). Escolho o branco com desenhos de nuvens (é o que você mais gosta). Quando deito, você já voltou a dormir (desligo a luz). Acendo o abajur para ler mais um pouco (Lolita, do Nabokov). O barulho das folhas te faz resmungar (as viro com mais cuidado). Não consigo dormir (mexo e remexo na cama). Você resmunga (não resiste e acorda). E briga comigo (depois me segura entre seus braços). Eu disparo a chorar (você não entende). E fica me olhando (eu também não entendo). Tem uma foto nossa na sua cabeceira (olho para ela). Eu no seu colo, numa noite de Natal (sorríamos muito, sorrisos bem grandes). Choro ainda mais alto (pareço um bebê). Você me pergunta o que houve (eu não sei). E eu digo (você não entende). Eu peço desculpas (você aceita, mesmo sem entender).
- Dorme, que tudo passa (você diz).
E eu te olho (e está tudo vazio). E volto a olhar a foto (vejo que havia algo ali).
- Se não dormir, as dores não passam?
(você não me pergunta que dores).
E volta a dormir (as dores de quando a gente não percebe que não está mais ali - ausência).

Um comentário:

Anônimo disse...

Oh meu deus... chorei.