terça-feira, 2 de abril de 2013

Experimentação textual

A verdade é que mal posso enxergar minha mesa debaixo de tantos papéis: certidões, ossos, e ofícios. Acumulados durante meses - desde o momento em que perdi a capacidade de me concentrar. Como muitos, você também vai dizer que devo estar dormindo mal. Pouco, ou tarde – aliás, um estudo recente comprova que quanto mais tarde dormimos, mais chances de termos pesadelos. Mas isso não importa, até porque nada mudou no meu sono. Tomo um banho, e só de cueca, deito e me afundo.
Perdi a concentração. E mais que isso, perdi o interesse, e o fôlego.
Dizem que com certa idade a gente vai se tornando mais distraído, as informações se tornam mais desconexas, e o olhar mais avoado.
Eu não vi esses anos passarem.
Posso ter ficado tempo demais sentado à escrivaninha. Tempo demais com as persianas fechadas. As luzes ligadas o dia inteiro – mesmo com o sol batendo lá de fora.
Quando mais novo, eu tinha muito medo. Medo de que a vida não me reservasse nada anos à frente. Não confiava quando diziam que sacrificar madrugadas na rua e garrafas de vinho poderia me garantir algo quando eu “chegasse lá”. Não tinha ideia do que isso significava – e ainda não tenho. Mas resolvi me concentrar no meu espaço. Nunca maior que 3m². Eu me habituei a viver assim.
Durantes esses anos todos – os que não vi –, nunca deixei que nada se acumulasse. Nada, nem mesmo poeira – quando chega setembro, e a seca.
Não haviam maneiras de traçar o caminho exato, dessa maneira eu nunca me enganei. Mas o destino final? Sobre ele eu tinha certeza: era "lá" onde eu queria chegar.
Noites arrastadas em aeroportos. Engarrafamento na Marginal Tietê. Escala em Ezeiza. De Recife à Curitiba. Meio de semana com um bate-volta em Nova Iorque. O tempo todo em trânsito. Mas nunca subi no Cristo. Nem visitei o Pelourinho. Não sei o cheiro de um tacacá. Não sei dizer se as ruas de certas cidades são menos sujas que as de outras.
O tempo passou para ou por mim?
Eu li bons livros. Alguns dos melhores. Assisti os clássicos dos clássicos do cinema europeu. Ouvi falar de muitas coisas, que depois procurei saber mais. Outras muitas coisas interessantes fui eu quem disse. Citei Nietzsche de cor. Sartre. Sêneca. Interpretei Machado de Assis. Indaguei sobre o Betinho que cabe a cada um de nós. Aguardei, sem mistério, que Crepúsculo chegasse do cinema à televisão. Ainda me lembro o ciclo da água, que eu desenhei por anos com giz-de-cera. Aprendi a escolher uma manga bem madura. E a catar feijão.
É preciso saber de tudo - meu avô um dia disse -, nem que seja para uma única conversa e nunca mais. Ninguém sai do lugar sem saber onde está pisando, capisci?
Lá de cima ele deve se orgulhar. “Lá”: usado sempre para designar um lugar que, na verdade, é completamente abstrato.
Para designar um lugar que ninguém sabe onde fica.
E nem se existe...
Eu fui longe. E se o lá já é aqui, não entendi a recompensa. Pior, se o lá ainda não chegou, não tenho força, nem masoquismo, suficiente.
Emoldurei o verde das íris com o roxo mórbido destas olheiras.
O destino era claro, mas não impediu que me distraísse em alguns momentos. Fiz uns bons desvios. Mas todos sem muita entrega – o coração, às vezes, nas mãos de alguém, mas os olhos sempre no restante do caminho.
Dois casamentos. Não tive filhos. Ambas me deixaram assim que verificaram a permanência da minha incapacidade em me dedicar – de forma verdadeira e esforçada – a algo que não me levasse até “lá”.
Elas queriam o computador desligado, o telefone na gaveta por um final de semana, um café da manhã sem devorar todos os jornais.
Estive, então, sozinho na maior parte do tempo. Com isso não quero dizer que não fiz amizades. Nunca deixei me desapeguei à vista da cidade, apreciada de uma cadeira de bar. Nem de domingos de churrasco, partidas de futebol. Não me desfiz de todos os prazeres imediatos. Mas todos meus amigos, hoje, se voltam para bagunças próximas a esta que me restou.

Encarando essa pilha de acúmulos, não posso deixar de me perguntar: será se cheguei lá? Será que tudo é só isso aqui?

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