segunda-feira, 11 de junho de 2012

Compostos.

O barulho da furadeira me agoniava em formas e graus que eu não poderia descrever. Ele sempre aparecia com a intenção de consertar algo. Fosse a porta emperrada do armário, um quadro a ser pendurado, os fios soltos na sala, a lâmpada queimada, a lâmpada prestes a queimar. Ele sentia a necessidade de agir e, principalmente, de interferir naquele espaço. Era como se ficasse livre da ausência quando ocupado com uma tarefa qualquer. Como se sua cabeça se esvaziasse, retomando o prazer nos movimentos involuntários do coração. Suas visitas só nunca aconteciam nas manhãs de Domingo, quando pegava dois ônibus e caminhava uma distância de mais ou menos três quilômetros até a Catedral para assistir a missa. Saía de casa às cinco, e de vez em quando eu o encontrava quando estava voltando da rua. A paisagem toda coberta de névoa e as luzes quase todas apagadas, mas ele de pé, com um frágil rosário azul nas mãos, abrindo e fechando o portão com todo o cuidado. O portão servia de entrada para as duas casas. A primeira, agora só dele. A segunda, agora minha - pelo quinto ano de aluguel - e antigo ateliê de sua esposa. Era encostada nessa parede que ela descansava depois de costurar a manhã inteira - ele se orgulhava em recolocá-la ali com suas lembranças. Mas aos Domingos, especialmente pelas manhãs, ele se vestia de preto. Mesmo que não fosse a cor real de suas roupas. Ele simplesmente se enchia, como a madrugada, de névoa, e se recolhia, com sua tristeza, para dentro de casa. De onde raramente saía, esperando pela Segunda-feira. De onde sequer um ruído se ouvia durante o dia inteiro. O barulho da furadeira, e o de seus passos tímidos e cansados, formavam uma sinfonia de incômodos em mim. Sei lá se despertavam uma vontade fazer algo quando, justamente, nada poderia ser feito. Eu podia me sentar com ele para assistir o movimento da rua, e trocar uma ou duas opiniões sobre a vizinhança, poderia chamá-lo para provar da sopa, para escutar um disco, trocar um abraço na véspera do Natal, e eram coisas que eu fazia, mas não com a intenção de aliviar algo nele, ou de tentar distraí-lo. Eu apenas fazia porque estávamos os dois ali, sós. Eu confesso, recebia muitas visitas. Mas continuava estando sozinha ali a maior parte do tempo. E por mais que houvesse um pequeno espaço entre as paredes de nossas casas, estávamos tristes, ou alegres, ou nostálgicos, ou irritados, ou em outro mundo, lado a lado. Nada nunca foi dito à respeito. Nem sobre o pão fresco que ele oferecia em algumas manhãs, nem sobre as vezes em que precisei socorrê-lo ou somente quis abraçá-lo por estar, mesmo que do jeito dele, sempre ali. Existem laços inesperados, quase imediatos, e imprescindíveis. No dia em que foi internado, eu pensei que, enfim, poderia ler um livro sabendo que não me assustaria tão cedo com o barulho da furadeira em ação, ou do martelo, ou do cortador de grama. Nos dias seguintes a agonia foi a maior até então. Todos os dias pareciam Domingos e nenhum ruído se projetava em volta. Somente o barulho dos carros na rua e das vozes que passavam aceleradas. Eu voltava da rua, e ele não estava ali, andando de um lado para o outro como quem não quisesse nada. Tentando disfarçar a sua forma tão particular de se importar com alguém cujas ligações fugiam do óbvio. Não era um sangue em comum, nem idade, nem carreira, nem nada que pudesse ser tão facilmente compreendido. Era por ser aquilo o que estava acostumado a fazer: se importar com os outros. Quando foi embora de vez, os espaços pareciam cada vez maiores, e as flores do jardim foram todas, aos poucos, morrendo. Nunca me senti tão só. Mesmo quando chegaram novas pessoas para habitar a casa, a solidão nunca pareceu tão brutal. Lembro de quando ele quis que eu gravasse informações sobre cada flor. Pouco antes de ir para no hospital. Eu não quis escutar. Estava apressada para qualquer compromisso vazio. Sentada, perto da janela, posso ver o que sobrou das flores, o que restou da horta. Do que é feito um jardim? Do que é feita a solidão?