domingo, 27 de fevereiro de 2011

Amor Feliz.

Estava te devendo um amor feliz. Para você emoldurar e pendurar em alguma das paredes da sala. Não sei como começar um amor feliz. Era uma vez...não, era uma vez não serve. Um dia...não, a progressão de todos os dias depois daquele. Em uma vida...não, amor feliz é post mortem também. Haviam duas pessoas. Uma mais triste, outra mais ligeira. Aconteceu de um dia elas se encontrarem. E aconteceu de, depois daquele dia, elas se acontecerem. Uma aconteceu para a outra, como um câncer que tomou conta, e passou a circular no sangue, partindo do peito. Ao se acontecerem, se perceberam intimamente ligadas. Mais do que gêmeas, almas siamesas. Que, inconscientemente, estavam escritas nas estrelas. E mesmo o mundo se partindo ao meio, se encontrariam. Quando fosse conveniente para o destino. O destino delas era o mesmo, se encontrarem em um nó na espiral da vida. Aconteceu. E não houveram surpresas. Além dos buquês e caixas de chocolate, e pernas acariciadas sob a mesa. Quando se encontraram, passaram a viver juntas. Na dimensão física. Pois mal sabiam que já viviam uma com a outra antes mesmo de sussurrarem, envergonhadas, seus nomes. Viveram por anos, muitos deles, todos eles. O máximo de anos que seus pulmões puderam aguentar. Mesmo com a poluição, a nicotina, e a imprecisão com a qual o tórax se movimenta em tempos de paixão, duraram. Indo contra todas as leis dos homens, e dos deuses. Indo contra tudo, porque precisavam de um desafio para que se segurrassem um ao outro de forma assim, tão forte. Mesmo amor tão grande, a vida se mostrou presente roubando seus últimos suspiros. No leito de um hospital, paredes pintadas de branco, visão turva, e o sossegar dos batimentos cardíacos. Enfim em paz. Como quiseram dizer quando se perceberam juntos. De mãos dadas, forçando os últimos músculos para um pequeno espasmo de força, partiram em um mesmo trem. Um dia se foram. Com a chance de se despedirem com uma quase-lágrima escapando pelo canto dos olhos. Ficaram devendo um amor feliz para você. E uma coleção de contas no banco. Quando acordaram, seus corpos dispostos lado a lado. Uma lembrança pouco nítida da noite anterior. Quando se conheceram, em meio ao som e o neon da noite, mãos ocupadas dificultando o primeiro contato. Dentes amarelados, impossibilitando a compreensão de seus nomes. O extrato marcando um drink seguido do outro, e umas cervejas no meio, para dar a impressão de leveza. Dois estranhos seguindo para o quarto. Nada de feliz ou duradouro ou predestinado. Sem encontro de almas, um aliciamento de corpos. O desejo carnal tomando conta no anonimato dos beijos. Sem troca de telefones ou informações sinceras. Um gari que virou médico no primeiro sorriso. Uma vadia que virou santa no primeiro toque de lábios. Mas ninguém precisaria saber. As mãos entrando pelas calças e saindo do controle. A necessidade de um lugar mais calmo e discreto. Dois estranhos, um montado em cima do outro. Os dois montados na necessidade de não viver só. Mas nada além. Sem beijos ternos ou carícias em volta do umbigo. Ou um abraço para selar o pacto de silêncio. E de sangue, pois tinham pressa. E a pressa é inimiga da razão. E os lábios inchados uma hora estouram, uma falha na calçada. Um pequeno e contornável tropeço. Cada um virado para o seu lado. A única ligação entre eles sendo o lençol. Um sonho esperançoso de um amor feliz, também compartilhado. Um invadindo o sonho do outro, e os dois estranhando aquela situação. Em que aquele nada era só nada, mas no sonho as coisas tomando formas diferentes. No sonho os dois pagando o amor feliz que se deviam. Acontecendo um para o outro, como um câncer terminal. E tudo terminando com o despertar de um novo dia. Continuo te devendo um amor feliz. Mesmo nós todos sabendo que esse tipo de amor não existe. E não resiste fora dos sonhos. Os dois acordam e partem. Mas isso não quer dizer que foi triste. Pelo menos foi amor. E se não foi, melhor ainda.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Boneca.

Eu tenho dito meu Deus, como se acreditasse nisso - nisso de ter algo meu, e de existir algo bem maior do que tudo isso que eu possa tocar. Eu tenho dito meu Deus e é como se eu tivesse pedindo para que alguma coisa viesse até aqui me salvar. Eu sei que estou procurando uma fuga, mas não sei do que tanto corro. E ao mesmo tempo procuro motivos para ficar, mas não vejo correntes, nem laços, nem porta-retratos com sorrisos que eu não poderia largar. De repente é como se eu não tivessa nada. Como se eu nunca tivesse tido. Mas não há vazio. Algo em mim insiste em não querer dormir. Foi quando me descobri desperto. De um sono inesperado, um coma induzido. Pela falta do que fazer. Não sei se ócio, ou ópio, não sei o que estou pensando. Não estou achando minhas palavras, devo ter esquecido no bolso da calça que coloquei para lavar. Quando eu me sirvo uma xícara de café, e acendo um cigarro, e puxo como se sugasse a alma do fundo do corpo de alguém, sinto estar vivo. Mas antes não me sentia morto. Ou não sei como seria me sentir assim. Eu vim para falar de amor. Mas estão todos cansados, de falar, falar, falar e não sentir. Nós estamos todos ligados. Nós somos tão ligados que estamos todos perdidos. Eu querendo uma coisa. Ele querendo qualquer coisa. Você querendo querer. Ela querendo nada. A outra querendo ela. E todo mundo sem saber no que vai dar, se vai dar. No final, todos perdidos. Como se fosse da nossa natureza. Mais ainda, como se fosse da natureza humana. Querer escapar de todos os rumos, fingindo estar satisfeito com o encontro deles. E procurando desculpas, mais e mais, e mais uma, e mais outra, para escapar. Não há nada a se dizer quando se repara mais nas sardas das bochechas de alguém do que na intensidade do sol. Ninguém foi feito para ninguém, e a verdade é que não há verdade. Você me aparece, e eu te perco. Distraído com os pontinhos dando cor às linhas do seu rosto. Nada se firmou para que ficássemos juntos. Nenhum encontro de galáxias, divisão de oceanos, intervenção divina. O que eu achei foi puro acaso. Querendo acreditar em alguma coisa. Depositei tudo em você. Essa vontade desesperada de possuir alguma coisa. De ser possuído por algo que me sequestre os sentidos. De me enlouquecer por um bom motivo. De sentir. De acreditar que o peito não serve apenas para ecoar o barulho. Foi ensurdecedor ter te conhecido. Ao ponto de desnivelar meu equilíbrio. De me desequilibrar de forma, aparentemente, sadia. Doses lascivas são aquelas que levam a morte. Nenhum corpo para ser tateado à procura de rastros, nem respingos de sangue. Doses lascivas de algo terno e abstrato. Amar você é como tentar voltar a superfície por ar. Descobri com o tempo. Desnecessário o uso de relógios, o barulho perturbador dos ponteiros. Só a sensação de, a cada vez que entrasse no seu corpo, estar me afogando em um oceano de nada. Um singelo vazio caminhando com dois pés tamanho trinta e cinco, apoiado em um par de joelhos convidando para um passeio montanhoso pelo resto do corpo, uma caverna como porta de entrada, umidade e silêncio. Nada de paz, só vazio. E as feridas em seus braços, o sangue coagulado, a descrença viral na vida. A vontade de atar fogo em tudo à sua volta. O descaso contagioso, a desesperança. Pessoas assim nos sugam para as próprias bolhas, e nos espetam, para verem até que ponto chegamos. Eu não durei muito. Nem você, até ser tomada pelos próprios demônios, aquelas vozes das quais você tanto falava. Que passaram despercebidas pelos meus olhos, até você se afundar, em poços ainda mais fundos do que aqueles que já havia visitado. E começar a se bater contra as paredes, e puxar os seus - e os meus - cabelos, e a falar sobre um amor que nunca foi seu - eu fui, mas amor, nunca houve amor vindo de você. Eu quis te machucar no final, por todo aquele inferno que você havia construído com as próprias mãos. Aparentemente tão delicadas. Mãos e rosto de boneca. Uma bela boneca russsa, daquelas feitas de gesso, com cabelos avermelhados, olhos sem expressão, hipnóticos. Uma boneca que se desfez com o impacto ao chão. Mil e um pedaços. Sem cola, nenhuma gota de cola restante para te trazer de volta à vida. Aquela cola com a qual fomos todos minuciosamente construídos, para sermos belos enganos, e nos aceitar como somos, ou para sermos belos enganos, e nos entregar falsamente reparados para os outros. Não haviam formas de te reparar, não mais, depois de tantas tentativas, só te sobravam buracos, e furos, e mais buracos. Sem ninguém para caber neles.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Ligação.

Fiquei esperando você me ligar. Por dez minutos. Duas horas. Cinco anos. Uma década. Nunca tive a coragem de mudar meu número, nem de aparelho - com o medo de que o cosmos conspirasse contra nós. Fiquei esperando você aparecer, com uma absurda compreensão sobre a demora - pois os grandes astros, eu li, demoram anos, até centenas deles, para reaparecerem. Você demorou bem metade da minha vida para aparecer - calculei que, ao dobrar os trinta, eu já estaria preparado para me desfazer em pó. Não me lembro da feição daquele dia em que rompemos nosso contrato de amor eterno. Não sei dizer se fazia sol, ou se chovia uma chuva incessável e afiada. Nem se já estava a anoitecer, nem se eu havia tido sorte e ganhado alguns trocados com a raspadinha. Sei da sua feição apreensiva, ao colocar a bolsa perto da porta, ao notar uma fina fita de suor escorrer por seu pescoço, ao notar que eu estava notando tudo que acontecia em seu ondular corpo. Tinha uma escavação em progresso contornando os olhos, dois belos buracos que pareciam aumentar a cada titubear do relógio. Com o potencial de sugar tudo em volta. Dois olhos negros. Dois buracos negros. Você não pôde me poupar da dor enquanto, para você, tudo parecia estar sendo tão fácil. Tudo, suas mãos úmidas no meu trapézio, seu esmalte rubi desviando minha atenção, o barulho do seu salto na madeira, seus passos desesperados, sua exatidão em acender um cigarro logo seguido de outro. Meu desespero em me esconder na fumaça. Ou em me afastar dela. A imprecisão de meus pensamentos, e movimentos. A queda das cinzas fora do cinzeiro, diretamente no chão, que havíamos limpado - juntos - no dia anterior. A ciência - mútua - de que presenciávamos uma crise. A indecência - minha - de achar ser só mais uma. E seu olhar me fuzilando no desencontro de palavras. E, se bem me recordo, uma Piaf cantando sobre l'effet que tu me fais. Recordação que não sei se concreta ou criada, se existente ou se desejada. Mas a canção bem saberia falar de tudo - aquilo tudo que se prendeu na traquéia, que se afogou no pulmão, que se escondeu na ponta da língua, aquilo tudo que me sufocaria por anos, e mais anos, depois. Naquele dia, você saciou um dos meus desejos, o de poder falar tudo sem usar nenhuma palavra, de nenhuma língua. Bastou me olhar, e segurar nas mãos um maço de Marlboro Light - você que sempre fumou o vermelho, dizendo que só mudaria quando fosse mudar a si mesma -, para que eu soubesse. Você queria mudar e, parte daquela mudança, consistia em se mudar de mim. Naquele momento eu poderia jurar que o chão estava se abrindo, ainda que meus pés continuassem firmes, eu poderia jurar que estava no meio de uma queda, vendo, no fundo, nada. Não vendo. De repente, perdi todos os sentidos. E perdi a razão, no momento em que você se tornou ausente - ausente na forma de corpo, não posso negar que ainda te sinto. Comecei dizendo que esperei você me ligar. Preciso delinear os momentos, não só a forma perfeita e amendoada de seus olhos. Houveram momentos em que você exitou. Atendia minhas ligações de madrugada, respeitando meu bafo de whisky, escutando, risonha - aquele seu riso sem jeito, difícil de esquecer -, meus desabafos, meus discursos, meus meio-poemas com dois cubos de gelo, seguidos de náuseas. No dia seguinte você me ligava, querendo saber quantos remédios eu já havia tomado para dor de cabeça, a quantas andava minha úlcera e, depois de passar minutos reclamando sobre os dois reais que havia investido em uma xícara de café aguado, sutilmente me perguntava se eu havia dormido com alguém e, na sua voz eu sabia. Na sua voz eu sabia que não era só interesse, que era medo, e desejo, e ciúme, e dúvida. E eu sabia, e você mesma sabia que eu saberia, que você já não estava mais tão certa, que já devia ter até voltado para o filtro vermelho, e ter pensado várias vezes em aparecer na minha porta pedindo por açúcar - pois foi assim que nos conhecemos, e sempre nos gabávamos da graça clichê de nosso encontro. E, ao me perguntar, você temia a resposta e inventava uma outra ligação na espera, um cheiro estranho vindo do forno, uma visita inesperada de seus amigos metidos a artistas. E desligava, e eu ficava anos-luz escutando aquele barulho repetitivo das ligações cortadas. E ainda assim me sentia infinitamente ligado a você. Um dia, repetindo as doses masoquistas de saudade imediata, eu te liguei no mesmo estado em que ligava - trocando os pés, os sentimentos, e as palavras - e você me falou. Você me falou e eu não pude acreditar. Que havia me trocado por outro, até aí tudo bem. Mas que me amava, ainda e eternamente, de forma densa e insensata. Como gotas de petróleo despejadas no mar. Em seguida, eu caí para trás. E nossa ligação também, caiu, se rompeu. E eu esperei aquele barulho parar, não sei nem por quanto tempo, acompanhando, com ele, as batidas no meu peito. Na hora que o barulho parou, sei que eu parei de respirar. E fiquei esperando você me ligar. Por dez minutos. Duas horas. Cinco anos. Uma década. E, por enquanto, nada. Você nunca me atendeu de novo. Mesmo quando sóbrio e humilde, às duas da tarde de uma Quarta-feira. Mesmo com recados ansiosos, e pedidos desesperados. O tempo vem passando, desde então. Estou esperando você me ligar.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Semântica.

Acordou, olhou para os lados. Meio atordoado por não saber, assim tão cedo, diferenciar a realidade dos pesadelos. Os olhos pregados, as bochechas amassadas, a linha de saliva puxando seu rosto de volta para o travesseiro. Levantou, indiferente ao pé que pôs primeiro no chão. Sentiu a frieza da cerâmica subindo pelos calcanhares, frieza a qual também foi indiferente. Descobriu-se nú. Como havia estado no dia em que chegou ao mundo. Dia, aquele, em que foi abandonado. Contava, com certo heroísmo, que havia sido encontrado boiando no raso do mar. Para que não descobrissem, não logo, que havia nascido numa cidade quase interiorona, no meio, bem no meio, do país. Sem praia e sem heroísmo, levado pelo serviço social, para um lar - que mais parecia um inferno -, onde ficaria por mais três ou quatro anos. Até que seus olhos esverdeados chamassem atenção suficiente para que fosse, finalmente, levado por braços calorosos e amáveis. Muitos anos haviam passado, mas lá estava do mesmo jeito que veio. Nú e abandonado. Largado no mundo recém-descoberto. Feito um recém-nascido, levou uma palmada - desta vez da quina da mesa -, para ver se vivia. E vivia, meio que pelas beiras. Vida percebida pelo choro. Desta vez, sem escândalos e quase sufocamento. Choro sentido todo da pequena dimensão de uma lágrima, que escorreu discretamente pelo canto do olho esquerdo. Revivia, ali, a sensação que havia sentido antes. Mas que não se lembrava, a não ser pelas memórias construídas, as falsas memórias que criamos para dar razão e sentido as coisas. Memória que não lembrada, porém sentida, no vazio que batia em seu peito. Faziam anos desde aquele dia. Anos, também, desde o dia em que aqueles braços amáveis e calorosos, abraçaram uma outra vida, e se foram. Rumo à morte que, como de praxe, não assassina somente quem se vai. Vivia só, desde então. Como era de seu gosto e de sua natureza. Vivia aquela solidão, inerente aos homens. Disfarçável, mas nunca contornável. Fumava, desde os doze anos, como demonstração de revolta. Primeiro, fingindo querer esconder. Depois, no meio da sala de jantar, durante a ceia, assoprando a fumaça no rosto de todos, e rindo, sarcasticamente, daquilo tudo. Que não aceitava, por não ter o mesmo sangue, nem o mesmo nariz, nem a mesma força. Ao se levantar, cambalear, e bater a perna na quina da mesa, parou para acender um cigarro, teria sido cômico se não tivesse queimado parte dos lábios acendendo pelo filtro. Mal conseguia abrir os olhos, mal conseguia tentar reparar nas duas dores - a da perna ferida e a dos lábios ardendo. Já havia aberto mão da terceira - aquela eterna visitante no peito. Não havia como negar, era Domingo e seu estômago doía como se tivesse arrebentado. Sua cabeça doía como se tivesse arrebentado. Estar acordado doía como se nada nunca pudesse ser segurado. Era isso que pensava, desde que presenciou os últimos suspiros em um leito de hospital, o último afago na cabeça, o último calor e o eterno amor daqueles braços de repente tão frios e esvaziados. Pois um dia desejou ser, no outro já não queria mais. Pois um dia jurava pertencer, e no outro já não aguentava mais. E vivia oscilando entre a rebeldia e a gratidão. Entre o amor materno e a insatisfação de não saber de quem havia saído. Ali, pertencia, descobriu. Pouco depois de descobrir que tudo se vai. Como já sabia, mas ignorava. Doeu, como finas lâminas rasgando as costas e arrebentando a coluna. Antes, sabendo ser tão só. E subitamente percebendo sua solitude. Seu impulso depressivo de se querer assim. Pela pobre escolha de não se entregar. Eram muitos os cortes, que nunca viu crescer. Mas que deixou que o tomassem, e o tornassem repulsivo. Difícil se aceitar tão medíocre. Acendeu mais outro três cigarros para disfarçar o erro do filtro. Olhou para os lados, ainda com os olhos pregados. E, pelo canto, viu um corpo repousando, também nú, na mesma cama da qual havia saído. Soube-se acompanhado sem perceber. Não tinha olhos para nada mais. Vivia naquilo de achar que ordenava as rotações dos planetas. A vida nos revela para nós mesmos das maneiras mais humilhantes. Caçou uma roupa, uma entre todas dispostas ao chão. Beijou aquele corpo do qual não se lembrava, e nunca mais se lembraria. Percebeu que aquele apartamento, com dois quartos e paredes coloridas, com fotos e longas estantes, não era o mesmo em que morava. E se era, havia perdido a memória. Dormido e acordado sendo outro. Sem saber se era realidade ou pesadelo. Talvez sonho, com um olhar menos violentador, reparando no sono angelical refletido no rosto, nos lábios, nos cílios, daquele corpo. Sem saber se havia acordado, sem saber se havia se encontrado ou, mais outra vez, se perdido. Sem saber quem era, e se tudo aquilo que contou era verdade. Se contou aquilo tudo em um sonho, e nasceu de calorosos e amáveis braços que nunca o abandonaram. Sem saber se realmente conhecia a dor de uma morte, a palidez de um corpo cuja alma foi levada. Sem saber se era o que era. Quem era, sem saber. Na dúvida de que aquele corpo pudesse ser parte do corpo dele. Confuso, por não saber cuidar de nada, nem ninguém. E pensando que, aquele vazio, era, inesperadamente, uma alucinação. E aquilo tudo era dele: o corpo, a paz angelical, o sono, a confusão. Talvez se voltasse a dormir, talvez acordasse sabendo de tudo. Ou novamente sem saber de nada. Passavam das seis da tarde, e nunca havia dormido tanto. Se havia, não sabia, não se lembrava. E nada entendia. Vestiu a roupa e caminhou até a porta. Ouviu um barulho vindo do quarto. E, por impulso, rodou a chave, girou a maçaneta e saiu. Cambaleando, descendo as escadas. Dando de cara com a rua, que não era tão familiar. Caminhou, caminhou, caminhou. E viu umas mesas sob a sombra de umas árvores. E lá mesmo se firmou. Era calmo, um lugar neutro, longe daquilo tudo que já não sabia mais. Bebeu, bebeu, bebeu, e numa tentativa - falha -, nada de amor. Chegou a achar que amor não existia. Que o inventou quando embriagado. Só pegou a palavra emprestada. Mesma palavra que era usada para definir a soma de um desconforto estomacal à uma indisposição física. E naquela confusão semântica e sentimental, achou que fosse algo a mais. Amor é só indigestão. Pensou, sem saber porque pensava naquilo tudo.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Anis.

O cheiro de anis tomava os quatro cantos do quarto. Cada um dos cantos tomado por mudas e mais mudas de roupas sujas e amassadas. Cada uma das peças de roupa retomava um cheiro. Cheiros que não eram fortes como o de anis, tampouco tão doces, ou singulares. Eram cheiros de corpos. Da presença seguida de ausência. Da imprecisão do tempo de permanência. Da certeza do impermanente, do efêmero - posto que os próprios cheiros entregavam que nada havia se mantido muito tempo por lá. Era um quarto de porte pequeno, quatro quadros em uma parede, que se repetiam nas outras, sem que ninguém soubesse qual delas havia começado, e quais outras haviam repetido. Era branco, branco como deve ser a visão do sufocamento segundos antes de se tornar desmaio, batimentos antes de ser levado a morte. Algumas estantes e, nelas, uns bocados de livros. Literatura francesa do final do século XIX, auto-ajuda, James Joyce, almanaques, romantismo, Nietzsche. E poeira, uma nuvem de poeira, cobrindo dois ou três porta-retratos e, também, o começo de uma escrivaninha. Com folhas de papel abandonadas sobre ela, e uma ensurdecedora vista para o oceano posta na janela à sua frente. Vista posta, como uma farta mesa de jantar, como o sol, no final de um belo dia, abrindo caminho para a noite. Nos papéis sobre a mesa, uns rabiscos finos e trêmulos, manchados de café, com resquícios de cinzas, sopros mortíferos, restos de cigarros. O oceano, que banhava a entrada da casa - inundava a varanda, os vasos com orquídeas e samambaias -, que refrescava o ar - umidecia a madeira, as pedras, todo o piso. O oceano de céu azul, e gramado verde, imóvel no horizonte, sem ondas, só, sem areia, nem mar. E eu. Eu, como um ser pequeno, um ponto no meio do universo, flutuante. Uma pequena sujeira, faltando mão para limpar. O prefácio da depressão, da solidão, da ferida, dos punhos entreabertos pregados de sangue. Eu sendo o desespero. E nada mais. É que venho pensando. E são nesses pensamentos que as coisas se encaixam - ou se perdem de vez. Como, uma vez, eu te perdi. Nunca tendo te tido, não de forma concreta. Tive como uma figura abstrata, um fruto de minha imaginação doente. Você estando do outro lado do oceano, e eu com minha vista limitada à leve aparição de um rio paralelo ao jardim. A umidade, aqui, é de matar. O que nos segurava eram as palavras. Mas palavras não seguram nada, nem ninguém. E então você se foi. Sem nunca ter estado aqui. A não ser por visitas ocasionais e beijos descabidos de sanidade. Não há nada de tão doce que não se torne amargo. Repito, todos dias, todos amores, antes de acreditar. Foi o que me restou. De tudo que falamos e escrevemos, e confidenciamos. O que me restou foi a lembrança de um sabor, que se amargou, que me amargurou - e a você também. E apodrecemos. Gangrenamos, caímos, despedaçados. E eu não sei, antes, também, sem saber, que rumos a gente tomou. Mas aconteceu de serem opostos - mais opostos do que já eram nossos continentes secretos. Colocaram, agora, uma música para tocar. A sensação que tenho é a de estar desacompanhado. Mas estou sozinho, na companhia de outros, que pisam forte na madeira, de um lado para o outro, chamando meu nome. Eu não consigo os escutar. Nem a eles, nem aos pássaros que, lá fora, sei que cantam. Ela me puxa pelo pescoço. Mas ainda não te esqueci, e te sinto, ainda, presente no meu corpo - em cada buraco dele, principalmente, no que ficou no coração. Ela me puxa e me beija. E sinto cometer um crime, com ela, contigo, comigo, conosco. Porque eu não te esqueci, e ela tenta te ocupar em mim. Tenta te tirar dos buracos, mas só te enfia mais para dentro. O cheiro de anis, que invade o cômodo, o cheiro de suor, que invade meu corpo. Outro corpo invadindo este corpo que, ainda, é seu. Todos sabem quando é chegada a hora de se despedir. De encher as malas e esvaziar os olhos. É chegada a hora de te deixar ir. Existe sempre o tempo, circulando com o sangue. O tempo vai te levar, em um avião branco, sumindo céu afora. Quando eu estiver sentado no saguão do aeroporto, aquele mesmo no qual te esperei. Dessa vez, sem previsão - nem de volta, nem de chuva, nem de corações. Nenhum incômodo sentirei na minha barriga. Só o oco. Haverá, não o cheiro de anis, mas o seu perfume, como em um filme, e só eu poderei sentir, sendo só eu personagem da tragédia. E todos assistirão quando, de repente, meu tamanho se tornar metade, e eu me encolher na cadeira, me apoiando na estrutura de alumínio, sentindo o frio entrar pela ponta dos meus dedos, e a dor da partida tomando conta dos meus ossos. E você partindo do mundo que eu planejei para você, para nós. E esse mundo se desfazendo. E eu sem saber onde morar. O cheiro de anis, por enquanto, continua.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Fênix.

"A felicidade tem a ver com o que nos falta ou não na vida que nos calhou. Devo dizer-te que não me falta nada, ou quase nada".

Você irá embora, eu ficarei, tudo ficará. Tudo começou com um sorriso embriagado, uma troca de palavras tontas, e um beijo, seguido de outro, e mais outro, até que não pudéssemos mais parar. E fomos parar na cama. Não fazia calor, também não se tratava de um dia frio. Não iria chover, mas o céu exibia uma porção acolhedora de nuvens. Você usava uma saia rodada, os cabelos presos por uma fita, ensaiava algumas falas, porém as guardava para si mesma. Eu? Eu não importava, nem me importava. Estava focado nas dores de um outro amor que, há pouco, havia se tornado vazio. Você era a minha mais nova distração. Um porre para fazer arder as feridas do lado de dentro. As coisas tomam dimensões inesperadas, e nem tudo corre como planejado. De repente era eu apaixonado por você, e não o contrário. Eu sendo seu maior delírio, e você sendo meu maior erro. Porque eu poderia jurar que não havia nada de espetacular ou hipnotizante em você. Nem seus olhos, nem suas mãos, nem suas palavras. Naqueles dias em que me vi encurralado, não haviam noites. Nem noites. O dia era um prolongar sereno da inquietação do desconhecimento. Eu desconhecia o que quer que fosse que havia conseguido me tornar seu. E não o contrário. A luz do sol me cegava, junto a uma outra luz que saía de você. Um show de luzes disparadas do céu. Era lá mesmo onde você se encontrava. No inalcançável infinito perante meus olhos. Você irá embora, e nada eu poderei fazer a respeito. Estou aqui, parado no meio da rua, assistindo os carros passarem, tentando decifrar a história dentro de cada um deles. Atordoado com a minha. A minha história que tentei dividir contigo. Ciente da disparidade de vontades. O que eu preciso para conseguir uma bebida nesse lugar? Sentado, de frente ao balcão, encarando as garrafas de vidro, com a camisa suada por debaixo dos braços, o bafo quente de cansaço e cigarro. Eu não teria visto se não me contassem que eu estava acabado. Você aconteceu como um furacão, e sem que eu previsse, eu estava devastado. Nada de tão grandioso havia acontecido na minha vida até então. Nenhum outro clímax, ou êxtase, nenhum ápice de alegria, ou queda. Falam das flechas e dos cupidos, mas se esquecem da dor e da ferida. Das fibras da pele que se rompem, do desmaio. Porque parece mesmo um desmaio quando, em um segundo você é um, e em outro, você é de outro. Eu era de alguém, antes de você. Era, como um filhote treinado para seguir o dono, mesmo sem coleira. Que urinava e defecava nos lugares certos, que estava lá para dar amor sem fim, para levar bronca sem começo. Esse amor anterior foi embora, como vão todos os outros. Como logo você irá. Carregando suas tralhas no caminhão de mudança, olhando para trás para ver se não esqueceu de nada - ainda assim, se esquecendo de mim -, seguindo para um novo apartamento, frio, branco, vazio, com cheiro de mofo, sem nenhum outro corpo - por um bom tempo, espero. E eu ficarei neste mesmo bar, a tentar ignorar nossa separação, a tentar não me lembrar de você a cada vez que um segundo passa - porque tudo me leva a você -, a tentar aceitar e seguir em frente, sem me mover. Sem nenhum movimento. Porque, quem sabe, uma hora, você não volta, e me diz que foi só um susto, que eu posso voltar para a superfície, e respirar. É como se alguém estivesse apertando meu pescoço com os polegares, batendo minha cabeça na parede, com a intenção de me desacordar, até que, tempos depois, eu renasça, como uma fênix, direto das cinzas, como se nada tivesse acontecido e, tudo tivera sido, somente, um pesadelo.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O Porto.

Um.
Pensei em você. No dia em que atravessamos de mãos dadas o Eixão, durante a madrugada, tremendo de frio, descobertos pelos faróis, pelos pneus acelerados. Pensei em você, o resgate de um afogado no oceano da memória. Um pensamento dos tempos em que sonhávamos e, ainda, acreditávamos. Seu perfume persiste no lençol. E ainda sinto a sua barba fazendo cócegas no meu queixo. Dizem que está chegando o fim do mundo. Estou preparada, há tempos, desde o fim de tudo. Era verão, quando desfilávamos nossos corpos pelas calçadas e, pouco depois, dividíamos o calor de nossas mãos. Era claro, e sereno. E você era bonito, com seus olhos amendoados me fitando, com suas mãos, e coração, me segurando. Mas eu queria ir embora. Todas as vezes. Sempre que disse que te amava e que aquilo duraria para sempre. Eu sempre quis ir embora. E nunca foi meu desejo te encontrar. Eu guardo tantos segredos, e a verdade é que você nunca me conheceu. Então eu nunca fui sua. Não sei porquê ainda me escreve, se eu nunca te dei uma resposta. Nem nunca darei. Você sente a minha falta, mas ela é só sua. E espero que guarde com carinho, todas as vezes em que te aninhei, e que te chamei para perto, e tentei te ensinar palavras do meu espanhol falho, e dividimos a cama, e o primeiro cigarro do dia. Doeu me apoiar em você de tal forma, de tal forma que seu peso passou a existir somente somado ao meu. Começou com um desencontro. Eu procurava por uma fuga, você só queria um amor eterno. Eu vivia para o mundo, para os outros, você só queria se sentar o sofá, enconstar seu corpo no meu, e assistir televisão.
Dois.
Andei pensando em você, de forma a nunca te tirar da cabeça - muito menos do coração. Lembrei daquela viagem que fizemos para o litoral, daquele fim de tarde que passamos à beira-mar, seu cabelo se confundindo com a areia, e sua cabeça se deitando no meu ombro como deitava o sol. Andei pensando em você, como o céu encoberto de nuvens, em dias de verão. Um pensamento preso no breve decorrer daqueles dias, em que amávamos sem limites. Sua presença persiste nos cômodos, ao ar-livre, em todos os cantos, e quinas. Eu ainda sinto seu corpo dando sentido ao meu. Dizem que este é o ápice da loucura. Tenho, há tempos, estado louco, desde o começo de tudo. Era triste, quando eu caminhava sozinho por debaixo de sol um incendiário e, pouco depois, uma brisa veio contigo. Era o que nada nunca havia sido. E você era uma visão do impossível, com seus traços perfeitos e inconsequentes. Com sua vontade de escapar, pelos menores buracos. De escapar de tudo, para sempre. Eu queria que você não tivesse um coração tão inquieto. E não tivesse sua sede de tudo. E que tivesse ficado. Eu esperei por vidas até te encontrar. Eu guardei tanto amor, e a verdade é que você nunca aceitou. Você foi feita para ser minha. Não sei porquê não me responde, tentando desafiar o destino. Não sei porquê ainda te escrevo, só aumentando minha pressa. Eu sinto sua falta e, é nela, que perco a razão. Não sei se guarda as minhas cartas, mas espero que sim. Nelas, está tudo reescrito, em uma tentativa de nos reconstruir. No final, todo mundo só quer ser amado. Mas você era diferente...
Três.
Um par é a junção de duas peças que se encaixam. De duas peças que se encaixam perfeitamente. Quando não há o encaixe perfeito, não há par. Quando não é par, é dor. Da dor vem o romance - um corpo dolorido e encharcado de sangue, procura por outro corpo na mesma condição. Um par - ou a síndrome da procura pelo encaixe - quando desfeito, consiste em dois corpos abandonados. Cada corpo vai atrás de um outro, que sirva na cama ou no coração. À princípio, há um desencontro. Pois o desencaixe das partes é justamente a abertura viral do desejo, da impressão de saciedade na procura. O ímpar é o atraente, a disposição do contraste entre a água e o vinho, entre um ferido e um sobrevivente intacto. Do desencontro, nasce a probabilidade. Em que dois corpos se encontram calculando. O número de vezes que encontrarão defeitos, que beijarão as cicatrizes, que amarão os erros, que discutirão na porta do cinema, que transarão com raiva, que pedirão perdão, que partirão, e voltarão, até que a partida seja para sempre, o desencaixe seja inconsolável. O ímpar é o mais belo engano, o par é o mais doce erro. No final, todo mundo só quer ser amado. Mas as formas de encaixe são diferentes...
Um.
Não vi a necessidade de prolongar seu engano, de financiar seu estrago. Se parti, foi porque teria sido pior ter ficado. Se te parti, foi porque você gostou de ser enganado. Não fui sincera, também não menti. Apenas fiquei lá, sem falar nada. Enquanto você circulava à minha volta com seu corpo malemolente, e me beijava a nunca, e dizia que deveríamos ser o que éramos para sempre. Não fomos nada. Não para mim. Nada que eu tenha visto, percebido, ou sentido.
Dois.
Nunca entendi o seu silêncio. Nunca te questionei de onde ele vinha. Achei melhor me manter distante, apesar de presente. Não entendia suas, súbitas, vontades de se exilar pelos cantos. Preferi te assistir de longe, e imaginar cada um dos seus pensamentos - que, às vezes, eram tão misteriosos que me davam medo. Às vezes eu poderia apostar que você acabaria pulando da janela, a qualquer momento. Ou que me abandonaria. Eu teria acertado apostando na segunda.
Três.
Existe a partida, que demarca o encontro. Existe o choro, que demarca a perda. Existe o amor, que traça caminhos pela areia. Caminhos que se apagam na visita da mais breve maré. É possível perder o amor de vista, como é possível desaprender o caminho de volta. Quando amor se vai, fica a confusão, o atordoamento de não saber para onde ir, de não saber se deve ficar.
Um.
Eu consigo te ver, outra vez entrando no mar. Molhando os cabelos e, logo, desconcertado por ter quase se afogado com uma onda. Eu consigo te ver, como se estivesse comigo agora. Abrindo uma garrafa de vinho e me dizendo cariño, não sei como te dizer. Não era porquê não sabia falar as tais palavras. Era por não entender aquela língua. Você sabia amar e dizer, e demonstrar, melhor do que qualquer outro. Você falava a língua dos anjos, eu me limitava a um espanhol fodido.
Dois.
Eu te imaginei, agora. Sentada perto do mar, tomando uma cerveja, imersa na profundez do seu próprio oceano. Fiquei me perguntando se a maré estava cheia por lá. Se você estaria precisando de alguém para inundar. Eu deveria ter me mostrado seu porto-seguro. Mas era tão difícil encontrar as palavras certas.
Três.
Não há nada a ser dito, pois o querer não se concretiza com o falar. Não que não se queira escutar. Até porque, amor, se confundido com o silêncio, se confunde o próprio corpo. E o corpo, quando solitário, não sabe em qual porto se firmar.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Finito.

Sofremos, como é de costume a todos os amantes. Sobrevivemos, como era de se esperar. Houve uma despedida, seguida de um choro, depois um silêncio, depois outras bocas e, de novo, nossos beijos. Porque era difícil ir, assim tão rápido. E fingir que nunca houvera acontecido nada. Nem nós, nem nada. Quando nos tornamos sós, surgiu uma saudade, uma indecisão. Depois, bem depois, uma indiferença. Foi quando passamos a frequentar os mesmos lugares, mas delimitar muito bem nossos próprios espaços. Se havia um aceno, era um dia de sorte. Se escapava um sorriso, era morte. Porque ainda desejávamos, e o alongamento dos lábios excitava os impulsos. De novo, os beijos. E tudo voltava. Mas logo partíamos, outra vez. Para nossas casas, sofrendo sob nossos próprios tetos. Sozinhos, porque era tão difícil se esquecer. Não me recordo de nenhum outro momento em que eu tenha sido tão profundamente triste. Ou ferido. Com carne-viva e o medo de qualquer toque. Não houve um abandono, nem uma quebra, somente um acordo. Não aguentávamos mais negar que tudo era pequeno demais para nós, e que não haviam formas de sobreviver ao mundo. Não me recordo do seu rosto no momento em que sussurramos o adeus. Mas tenho a certeza de que ficou vazio. No momento em que eu saí de você. Tudo esvaziou, tornou-se oco. Em mim, e em você. Empacotamos tudo, e eu mudei para um lado da cidade, e você para outro. Por um tempo, não nos esbarrávamos, era arriscado. Mal saíamos de casa. Mas acontece da cidade ser pequena, e houve um reencontro, seguido de muitos outros. E seguíamos para o meu quarto, e relembrávamos a textura de nossas peles, e partíamos. Porque, por mais que tentássemos, sabiamos que não pertencíamos mais. Nem ao amor que restava, nem aos braços que se encontravam. Eu me encontrava sozinho, na maior parte das noites. Quando eu não estava acompanhado por outro par de coxas, ou outro cálice de vinho. Eu nunca me encontrava sozinho, não do lado de fora, não quando dentro de alguém. Dentro de mim, bolas de feno rolavam, e a melodia triste do amor vadio tocava. Eu vejo uma noite escura, uma escada de ferro apontando para os trilhos, o barulho veloz do trem, um par de amores caminhando de mãos dadas, um pingo de chuva caindo do céu. O frio, e um gorro esquentando minha cabeça. O coração congelado, uma lágrima caindo do céu dos meus olhos. O céu refletido, escuro e anuviado. A lembrança dos seus cílios, da sua boca, de cada um dos seus traços. A sua raiva me dizendo que te levaria embora. Você indo. A eternidade escapando como fumaça. Um cigarro temendo apagar. O fim de uma era. Um aborto. Nós dois em um lugar desconhecido, nos encontrando depois de anos. Ou até mesmo agora. Ou antes. Um amor abortado, morrendo antes de nascer, escapando pela virilha. Sem dar luz. Sem nenhum de nós dar a luz. E a noite persistindo, escura. E sua lembrança na minha. Sem previsão de sol. Noite eterna. Com previsão de falta. Uma falta irracional. Que doeria em todos. Pois ninguém aguentaria nos ver assim. Antes, sendo tão sorridente e joviais. Depois, não sendo, se arrastando. E nossa história se esvaindo, sendo um amor como qualquer outro: finito.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Pétalas do Amor.

Enchi um copo de vidro com café, queimei a ponta dos dedos, assoprei com força, a fumaça subiu. É Segunda-feira, com cheiro de Domingo, e de chuva. No céu, restam resquícios de um sol de Sábado. É Segunda-feira, e o Domingo passou atropelado. Hibernei pelas últimas horas. Um sono iquieto, irritadiço. Mas sonhei, como fazem os imundos e os medíocres. Sonhei um sonho que, na verdade, era só mais um. Um sonho com você. No qual você ia embora, se misturava com as cores das paredes de um corredor imenso. Se misturava, e ia embora. Sem que restassem rastros, ou lembranças. Acordei abraçado por gotas de um suor frio, um choro solitário libertado pelos poros. Foi há muito tempo atrás a última vez em que toquei em uma folha de papel. Mal me lembrava da textura. Ou da agonia de ser encarado por um infinito em branco. Foi há muito tempo atrás que escrevia poemas de amor, e punha meu peito frente aos canhões, e pulava de pontes, e enfrentava o mundo, e era forte, e grande, e completo. Os anos passam rápido, dizem. E, agora, eu concordo. Aconteceu do tempo passar supersônico, e hoje sermos outros, sem sequer percebermos. O rumo que tomei foi frio e escuro. À procura de qualquer sinal de calor ou toque. E existiu a perdição, pelas curvas. Dos corpos morenos de verão. Dos olhos desejosos de carinho. Dos lábios carnudos. Explosão, uma explosão de cores, pêlos, saliva, cheiros, secreções, anseios, desejos. Cheiro de corpo, de contato, de sangue, de estrago. E doses lascivas de paixões passageiras, de transas indiferentes, de beijos salgados de lágrimas, de agulhas, e perfurações. E morte, e convulsão, e desejo, e overdose. Estou sobrevivendo. Não lamento sua partida, foi quando me encontrei inteiro. Mas tenho umas confissões a fazer. As pétalas do amor nascem e caem. Envolto no odor restante de vodka e perfume e fumaça, tentei resgatar. E imerso em pensamentos e resgaste eu já não mais sabia o que era memória ou imaginação. Se as coxas que toquei e arranhei ainda eram as suas ou de uma outra que passou por minha frente de repente e mais de repente ainda estávamos deitados no banco de trás de um carro de alguém que eu sequer conhecia jurando juras de um amor imaginário e cobiçado. Porque hoje em dia dá vontade de ser amado de novo. Se é que um dia fui, porque suas palavras no final não eram mais do que nada, um grande teatro e eu deveria ter te aplaudido de pé. Falo como quem ainda estivesse com a ferida aberta e não soubesse como estancar o sangue, e esse sangue que sangra já não é mais puro, mesclado com qualquer coisa, qualquer coisa que entrasse pelos canos ou pela boca ou por qualquer buraco e se não existisse algum eu inventava, só para que alguma coisa entrasse e diminuísse o peso e eu flutuasse. O maior sonho do homem é voar. E eu voei com as mais belas asas por cima de tudo e de todos por cima de mim e de você e eu tento me lembrar, mas é vaga a lembrança. Feito um trauma eu não te lembro mais, e ninguém toca nessa parte que pertenceu a você. Um tal de coração ninguém toca nem se aproxima ninguém chega perto, todos fogem. Porque minha reação é violenta e ninguém entra tanto assim. E quanto eu digo que já te esqueci todos acreditam porque eu disfarço também lambendo outras costas e chupando mais uma e mais outra parte e me arrebentando fraturando ossos ferindo os tendões envelhecendo e me desgastando, à procura. De mim porque eu me perdi, de mim mesmo. Assustei ao ter me encontrado porque eu antes era um herói e agora sou fúnebre esquelético. Era outro corpo comigo. Não era você que um dia foi. Foi meu corpo e depois fantasma lembrança saudade falta. Sentir sua falta é sentir que não sou mais o mesmo nem sei mais quem fui. Quem foi foi você pela porta da sala para nunca mais. E eu me entrego à mais sutil possibilidade de ser grande de novo. E eu aumento de tamanho dentro de outros corpos. E me gostam e me gozam e me curtem e me amam e eu encolho. E tudo acontece novamente, em um outro corpo, uma outra madrugada, um outro espaço, uns outros beijos, e afagos e desejos. E tudo vai acontecendo e eu mal consigo acompanhar. Acendo um cigarro e uma chama em alguém e em mim que ninguém apaga, porque a fome é de você. Deito, respiro, bebo, fumo, transo, suspiro, gemo, fodo, tudo fode, tudo acaba. Você não volta e eu vivo esperando. Não consigo mais esperar, nem respirar. Nem qualquer coisa. O céu parece estar pegando fogo. As folhas das árvores se movimentam brutalmente. Uma sombra invade a janela. Não tenho aguentado viver assim e fujo, da luz, qualquer luz. Fujo e me escondo nos buracos. Eu não entendo o que essa folha está querendo me dizer, toda rabiscada. Eu querendo te dizer tanta coisa, com minha voz rouca, de tanto fumar e gritar e soluçar. Está acabando meu fôlego e a tinta da caneta. Você nunca lerá isso, eu nunca deixaria. Confissei feito um pagão, e você não tem nada de santo. Eu não tenho nada de nada e vamos acabar logo com isso. Eu só quero amar enlouquecidamente de novo, e poder olhar em outros olhos e dizer que são meus, porque quero e não porque se entregaram. Sua presença vive me assombrando. É dela que eu fujo. Eu não quero fugir mais, você precisa me deixar ir. Eu não te quero mais e nem você quer a mim. Não me deixe preso nem sozinho nem aqui. Não aguento te enxergar em tudo nem em todos, em todo corpo que eu toco o toque é seu. Por favor, se vá. De verdade ou então me deixe ir. Não quero mais amar um amor que virou loucura. Eu quero amar um amor que seja meu. Eu preciso que você vá eu preciso me entregar para alguém. Não me prenda.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Amar Amor.

Era tarde da noite, beirando a madrugada, quando uma esperança - louva-Deus, que seja -, entrou pela janela do escritório. Nunca recebi visita de nenhum outro ser que não fosse você. Nem pernilongos, nem amantes, nem espíritos. Eu teria me assustado, se não estivesse com os olhos vidrados em uma foto antiga. Na qual estávamos nós dois, neste mesmo cômodo, cortando figuras de revistas, para que você fizesse o que chamaria, mais à frente, de obra-prima. Enfim, só notei a presença do intruso quando ele se prendeu aos fios de meu cabelo, que logo logo eu alisaria com a ponta dos dedos. Não hove susto, ou espanto, ou o impuso de tirá-lo de lá. Ficou, por um minuto ou dois. Antes de voar até a lâmpada e ficar por lá, por mais dez minutos ou vinte. Eu sabia que iria morrer se continuasse rodando em volta da luz. Ele, provavelmente, também. Não sei se esse tipo de bicho sabe ou sente as coisas. Foi mais ou menos assim que aconteceu conosco. Eu estava na mesma situação, caminhando pela sombra, sozinho, vidrado em alguma memória, pensativo, e sozinho, de novo. Quando entrei, de surpresa. E havia um homem sentado à mesa, encarando os próprios problemas ou fugindo deles. O homem que estava com você. E você, era a lâmpada, a única companhia. Toda a luz e, de repente, eu estava girando à sua volta. E você sabia que esse seria o mais claro caminho para minha morte. E eu não sei se sabia, ou sentia, essas coisas. Mas eu orbitei à sua volta, por dez ou vinte anos. Que se passaram, suavemente, sem que nenhum de nós notasse. Você era o encanto da luz, impossível de não ser hipnotizado. Eu era a esperança, e você me alimentava. Tinha seu par de olhos que só faltavam brilhar no escuro - de tão claros e chamativos que eram. Seu par de lábios, cor de fruta ou de vida. Seu par de pernas, agitadas. Seu par, que era eu. Que fui, por muito tempo. Mas perdemos o compasso da música, e os passos da dança. Quando nos perdemos, ficou tudo mais claro. Um clarão que me cegou, e o que lembro de ter vindo depois, foi o acordar de um desmaio. Foi quando eu voltei ao mesmo cenário, e eu era o homem abandonado, com a lâmpada acesa, e a visita de um louva-Deus. Nunca louvei ninguém, que não a mim mesmo. Pois eu era o homem, e você, minha mulher. E naquele tempo, esteve tudo bem. Porque eu te tinha, então tudo era calmo, e sincero, e bonito. Digo mais, era perfeito. Porque eu te tinha e, à partir disso, o mundo era outro. Pois éramos só eu e você. E nada mais importava. Não haviam motivos para nada mais importar. Desde que fôssemos, amantes, e confidentes, e enamorados. Desde que fôssemos um par. Como eu soube que meu visitante iria morrer com a força da luz, você soube que eu iria morrer com a sua força sobre mim. Mas ele foi mais ambicioso, atravessou a janela e foi desvendar outros mundos. Talvez até mais iluminados. Não digo que me arrependo. Pois te prometi que nunca iria mentir. Não enquanto eu ainda estivesse ao seu lado. Pois ainda estou, ao menos na minha imaginação. Eu não teria escapado de sua força, nem que você mesma me alertasse. Pois houveram alertas, e eu me mantive surdo. O momento do clarão foi o momento da morte, na qual você se foi, e a vida foi junto. Pois restou uma esperança faminta. Sem você para alimentar. Esperança de que aquele mundo sincronizado fosse perfeito e eterno. Como soubemos ser por tanto, mas tanto, tempo. A insaciedade mata, como mata, ainda mais, a saudade. Tenho morrido pelos cantos. Como é de praxe para um aspirante à poeta. O louva-Deus se foi, foi também a esperança. Que seria eu, no caso. Mas me mantive na espera. Depois da sua partida, eternamente espero. Ainda que me arrastando pelos becos, à procura de alguém que me clareie como, um dia, você fez. Ele foi desvendar o mundo, disso eu sinto inveja. Pois há tanta coisa que eu queria ter visto antes de ter te encontrado. Porque ainda havia, em mim, uma outra concepção do que é belo. Que hoje, se resume a você. Você aconteceu naquele momento, e eu não me arriscaria a escapar. Você era minha última chance, minha última esperança - visto que depositei tudo de mim em você. Eu ainda consigo te sentir, aquecendo meu par de asas. Que pouco voavam perante todo o seu céu. Tudo na vida, pelo menos na minha, é seu. Eu sinto sua falta. Como também sinto frio, quando encaro a realidade de sua partida. Eu era pequeno demais para você, ainda que me julgasse tão grande. Penso que nunca queria ter crescido, para não ter me empodrecido. O mundo é extremamente cruel - falo como se você nunca tivesse vivido. Com ele, me espanto mais do que com qualquer ser. Estou me sentindo só, mais só do que antes, quando não me restava nenhuma companhia. Eu preciso te olhar sorrindo na foto, para te sentir sorrindo de mim. Era tudo tão mais precioso quando não inundado em lágrimas. Você chorou, antes de ir. O tipo de choro que fica gravado. Dele não me esqueço, como não te esqueci. Mal sei como terminar essa carta, mal sei como consegui. Cheguei tão longe, que mal me vejo, sentado ali sozinho, fumando um cigarro, um último suspiro, um atraso. Eu faria de tudo, agora, para que você tivesse ficado. Eu não tinha forças, era tão pequeno, e você tão grande. Amar um amor assim, tão grande, às vezes diminui a gente.

Xis.

I.
E hoje, hoje que não é amanhã. E que não será tão cedo. Embora ainda seja cedo o hoje. E que amanhã já será tarde. Não vou te deixar ir. Por mais que queira, e eu saiba, e você repita, e isso me doa. Não quero que se passem as horas. E o sol acorde. E eu me levante. E você se vá.
II.
Eu tenho que ir, é como se houvesse chegado a hora. E acabou nosso tempo. E foi tudo um sonho. Que vivemos com todo o cuidado. Mas acordamos do sono. Os fios se romperam, os laços também. Preciso me afastar de você. Precisamos estar longe. Tente me fazer ficar. Tente me impedir. Eu quero ir, mas não sei. Eu quero que você vá comigo, mas não dá. Eu vou.
I.
Estou sofrendo, passam os dias e eu já não te vejo mais. Já não me vejo mais. Você se foi e me levou contigo. Virei um corpo, que não sabe mais nem dizer se está vivo. Dizem que estou ficando louco. Digo que você me levou à loucura. Desde o primeiro momento e, desde então, eu permaneci. Continuo a te esperar. Sei que você não volta, mas eu me engano. Preciso disso. Não sei o que fazer. Não sei se te espero calmo, ou se te procuro desesperado. O que você me diria? Por onde tens andando? Quem tens amado?
II.
Não sei onde estou. Sei, mas não posso te dizer. Eu não quero que você me encontre. Eu quero que você me sinta, me fareje, e apareça. Como apareceu da primeira vez, um cometa descendo do céu. Coisas como essas acontecem a cada milênio. Está difícil esperar. Antes a vida vai me levar embora. Se é que já não me levou. A vida me levou de você. Estou existindo. Uma flor quase murcha no meio do deserto. Você deveria ter me salvado.
I.
Era um transtorno, e me recuso quando dizem que de bipolaridade. Estávamos transtornados porque nosso amor não cabia nos metros e centímetros de nossos corpos, ainda que somados. Nosso amor merecia o mundo, ou até o universo. Tenho te esperado, mas o tempo corre. Tenho medo de ser arrastado. Tenho te procurado pelas ruas, feito um cão faminto em busca de carne. Sua carne faz falta na minha. Não me toco, não me aceito. Meu corpo me recusa, em busca do seu.
II.
Não sei se você já está ficando grisalho, mas meu rosto já se encheu de rugas. Por muito tempo, chorei muito. Ainda choro, quando me lembro. Eu não te esqueço. Tive que ir, ainda não sei para onde. Estou tentando encontrar meu lugar. Não tenho pertencido a ninguém, desde que me emancipei de você. Diria que sinto sua falta, mas tudo que eu sinto é dor.
I.
Eu deveria ter te puxado pelos cabelos, ter prendido seus braços na cama, ter grudado seus lábios aos meus. Pois era sim que pertencíamos: juntos. Nem tudo está perdido. Mas agora eu sou um nada. E não sei por onde ando, se respiro, se eu como, quem eu como. Perdi o tato, a visão, todos os sentidos. Sofro que nem uma cria desmamada. Não tenho mãe, pai, nem destino. Abandonei tudo, ou fui abandonado. Desde que você se foi, estou sendo o que posso, estando aqui, parado.
II.
Ontem conheci um homem, que me lembrou de você. Tem sido assim, te vejo em todos os lugares, todos os seres, inclusive os inanimados. Fomos para a cama, não houve nada de especial. Só um choro finalizando o ato. Fim da ópera, sem aplausos. Eu fugi. Foi de você ou de mim?
I.
Até hoje não entendo porquê você se foi. Procuro respostas. Ainda assim não me movo. Tomei uma decisão, vou desafiar o mundo. Você se exilou de mim, agora me resta te procurar em todo o resto. Tenho me envolvido com tudo que machuca. Escrever é de uma dor enorme, e eu grito. Tenho escrito para colocar para fora. Estou te exorcizando de mim. Mentira, isso seria tentativa de suicídio.
II.
Eu quero voltar, mas me mantenho firme. Você nunca me aceitaria de volta. Você nunca correu atrás. Mal sei se ainda se lembra do meu rosto, e de como ele soltava alguns sorrisos. Meus dentes, agora, ficam guardados por detrás de um par de lábios finos e sem cor. Tenho sido beijada, e mais parece um atropelamento.
I.
Quantos anos se passaram desde que você encheu suas malas e me deixou vazio? Abandonei os relógios. Estou vivendo com outra mulher. Somos dois fantasmas. Ela ainda sofre por um outro homem. Eu ainda sofro pelo meu único amor. O único momento em que estamos juntos é durante o sono, porque nos encontramos em um mesmo planeta, o dos sonhos.
II.
Estou voltando para a cidade, queria te encontrar. Mas não sei se mudou de endereço. Bem provável que tenha mudado de mim. Vou passar na frente do seu prédio, e se ainda houver alguma luz acesa, talvez eu toque o interfone. Você não me procurou, mas isso não me impede. Se o amor que eu tenho seja mesmo só meu, com ele eu faço o que quiser, até te obrigar a aceitá-lo.
I.
Larguei a tal mulher. Ou ela me largou. Não sei. Também enchi algumas malas, e deixei que ela ficasse naquele mesmo apartamento em que você me deixou. Passei muito tempo sendo sufocado pelas mesmas paredes. Nunca mudei a pintura, nem sequer um móvel de lugar. Estou pensando em viajar, talvez Veneza, talvez algum lugar aonde eu te encontre. Nunca te perdi. Aqui de dentro, você nunca saiu.
II.
Passei em frente ao prédio. As luzes estavam todas apagadas, mas eu vi que as cortinas não eram as mesmas. É uma outra pessoa vivendo lá. Ou outras duas. Alguma história que nunca chegará aos pés da nossa. Nossa história se perdeu, eu te perdi, você me perdeu. A gente se partiu, eu parti, e nunca mais voltei.
I.
Eu somente te encontrei porque tudo me levava a você. As gôndolas, boiando nas ruelas banhadas de água. Água que sobe não sei quantos centímetros por ano. Não consigo me ver morrendo afogado aqui. Mas me afogo, ainda, em lágrimas, e em garrafas de vinho tinto. Porque me lembram da cor do sangue, dos seus lábios jovens, do amor. Continua doendo.
II.
A cidade continua a mesma, e sinto saudades suas. Voltei a fumar, acho que pelo frio. Ou porque sei que você se orgulharia de poder dividir seus maços comigo. Haviam sempre aqueles momentos de fumaça e melancolia. Ou fumaça e sossego. Ou eu e você nos fazendo companhia. Preciso viver, e te esquecer. Não consigo.
I.
Eu deixaria você voltar. Para me partir. E não partir sozinha. Que levasse um pedaço maior. Que esse pedaço estivesse vivo, contigo. Tenho vivido de você. Eu tento, elas tentam, me abraçam, me beijam, mas eu não quero te esquecer.
II.
Cansei de te procurar, não sobrou nenhum rastro. Ninguém sabe que rumo você tomou. Ou se você ainda está vivo. Sua morte seria uma espécie de cura. Sem esperas ou procuras. Se você se foi, tudo acaba. Até mesmo eu. Está na hora de voltar para a Itália. Sempre sonhei em estar contigo lá. Mas estive sozinha em todo tempo que vivi naquele país. Eu te vejo vivo em todos lugares. É chegada a hora de você morrer em mim também.
I.
Rodei do Sul ao Norte. Tudo tão bonito, como as coisas deveriam ser. Mas eu encarei de um modo triste, não tirei fotos, ocupei a mente, está na hora de te deixar ir. Estou voltando para o Brasil. Alguma coisa deve me esperar por lá. Você não esperou tempo o suficiente para que eu te encontrasse. Você não quis, você se foi. Eu preciso aceitar que você me matou em si. E que eu preciso recomeçar a viver em mim.
X.
Quando o fim, chega ao fim, não há recomeço.