quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Anis.

O cheiro de anis tomava os quatro cantos do quarto. Cada um dos cantos tomado por mudas e mais mudas de roupas sujas e amassadas. Cada uma das peças de roupa retomava um cheiro. Cheiros que não eram fortes como o de anis, tampouco tão doces, ou singulares. Eram cheiros de corpos. Da presença seguida de ausência. Da imprecisão do tempo de permanência. Da certeza do impermanente, do efêmero - posto que os próprios cheiros entregavam que nada havia se mantido muito tempo por lá. Era um quarto de porte pequeno, quatro quadros em uma parede, que se repetiam nas outras, sem que ninguém soubesse qual delas havia começado, e quais outras haviam repetido. Era branco, branco como deve ser a visão do sufocamento segundos antes de se tornar desmaio, batimentos antes de ser levado a morte. Algumas estantes e, nelas, uns bocados de livros. Literatura francesa do final do século XIX, auto-ajuda, James Joyce, almanaques, romantismo, Nietzsche. E poeira, uma nuvem de poeira, cobrindo dois ou três porta-retratos e, também, o começo de uma escrivaninha. Com folhas de papel abandonadas sobre ela, e uma ensurdecedora vista para o oceano posta na janela à sua frente. Vista posta, como uma farta mesa de jantar, como o sol, no final de um belo dia, abrindo caminho para a noite. Nos papéis sobre a mesa, uns rabiscos finos e trêmulos, manchados de café, com resquícios de cinzas, sopros mortíferos, restos de cigarros. O oceano, que banhava a entrada da casa - inundava a varanda, os vasos com orquídeas e samambaias -, que refrescava o ar - umidecia a madeira, as pedras, todo o piso. O oceano de céu azul, e gramado verde, imóvel no horizonte, sem ondas, só, sem areia, nem mar. E eu. Eu, como um ser pequeno, um ponto no meio do universo, flutuante. Uma pequena sujeira, faltando mão para limpar. O prefácio da depressão, da solidão, da ferida, dos punhos entreabertos pregados de sangue. Eu sendo o desespero. E nada mais. É que venho pensando. E são nesses pensamentos que as coisas se encaixam - ou se perdem de vez. Como, uma vez, eu te perdi. Nunca tendo te tido, não de forma concreta. Tive como uma figura abstrata, um fruto de minha imaginação doente. Você estando do outro lado do oceano, e eu com minha vista limitada à leve aparição de um rio paralelo ao jardim. A umidade, aqui, é de matar. O que nos segurava eram as palavras. Mas palavras não seguram nada, nem ninguém. E então você se foi. Sem nunca ter estado aqui. A não ser por visitas ocasionais e beijos descabidos de sanidade. Não há nada de tão doce que não se torne amargo. Repito, todos dias, todos amores, antes de acreditar. Foi o que me restou. De tudo que falamos e escrevemos, e confidenciamos. O que me restou foi a lembrança de um sabor, que se amargou, que me amargurou - e a você também. E apodrecemos. Gangrenamos, caímos, despedaçados. E eu não sei, antes, também, sem saber, que rumos a gente tomou. Mas aconteceu de serem opostos - mais opostos do que já eram nossos continentes secretos. Colocaram, agora, uma música para tocar. A sensação que tenho é a de estar desacompanhado. Mas estou sozinho, na companhia de outros, que pisam forte na madeira, de um lado para o outro, chamando meu nome. Eu não consigo os escutar. Nem a eles, nem aos pássaros que, lá fora, sei que cantam. Ela me puxa pelo pescoço. Mas ainda não te esqueci, e te sinto, ainda, presente no meu corpo - em cada buraco dele, principalmente, no que ficou no coração. Ela me puxa e me beija. E sinto cometer um crime, com ela, contigo, comigo, conosco. Porque eu não te esqueci, e ela tenta te ocupar em mim. Tenta te tirar dos buracos, mas só te enfia mais para dentro. O cheiro de anis, que invade o cômodo, o cheiro de suor, que invade meu corpo. Outro corpo invadindo este corpo que, ainda, é seu. Todos sabem quando é chegada a hora de se despedir. De encher as malas e esvaziar os olhos. É chegada a hora de te deixar ir. Existe sempre o tempo, circulando com o sangue. O tempo vai te levar, em um avião branco, sumindo céu afora. Quando eu estiver sentado no saguão do aeroporto, aquele mesmo no qual te esperei. Dessa vez, sem previsão - nem de volta, nem de chuva, nem de corações. Nenhum incômodo sentirei na minha barriga. Só o oco. Haverá, não o cheiro de anis, mas o seu perfume, como em um filme, e só eu poderei sentir, sendo só eu personagem da tragédia. E todos assistirão quando, de repente, meu tamanho se tornar metade, e eu me encolher na cadeira, me apoiando na estrutura de alumínio, sentindo o frio entrar pela ponta dos meus dedos, e a dor da partida tomando conta dos meus ossos. E você partindo do mundo que eu planejei para você, para nós. E esse mundo se desfazendo. E eu sem saber onde morar. O cheiro de anis, por enquanto, continua.

2 comentários:

Bárbara Gontijo disse...

O gostoso é poder sentir o gosto, o cheiro e a sensação... Além de construir toda uma cena na nossa cabeça...

Julianna Motter disse...

O gostoso é poder sabê-los sentidos, ao construí-los.