segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Ligação.

Fiquei esperando você me ligar. Por dez minutos. Duas horas. Cinco anos. Uma década. Nunca tive a coragem de mudar meu número, nem de aparelho - com o medo de que o cosmos conspirasse contra nós. Fiquei esperando você aparecer, com uma absurda compreensão sobre a demora - pois os grandes astros, eu li, demoram anos, até centenas deles, para reaparecerem. Você demorou bem metade da minha vida para aparecer - calculei que, ao dobrar os trinta, eu já estaria preparado para me desfazer em pó. Não me lembro da feição daquele dia em que rompemos nosso contrato de amor eterno. Não sei dizer se fazia sol, ou se chovia uma chuva incessável e afiada. Nem se já estava a anoitecer, nem se eu havia tido sorte e ganhado alguns trocados com a raspadinha. Sei da sua feição apreensiva, ao colocar a bolsa perto da porta, ao notar uma fina fita de suor escorrer por seu pescoço, ao notar que eu estava notando tudo que acontecia em seu ondular corpo. Tinha uma escavação em progresso contornando os olhos, dois belos buracos que pareciam aumentar a cada titubear do relógio. Com o potencial de sugar tudo em volta. Dois olhos negros. Dois buracos negros. Você não pôde me poupar da dor enquanto, para você, tudo parecia estar sendo tão fácil. Tudo, suas mãos úmidas no meu trapézio, seu esmalte rubi desviando minha atenção, o barulho do seu salto na madeira, seus passos desesperados, sua exatidão em acender um cigarro logo seguido de outro. Meu desespero em me esconder na fumaça. Ou em me afastar dela. A imprecisão de meus pensamentos, e movimentos. A queda das cinzas fora do cinzeiro, diretamente no chão, que havíamos limpado - juntos - no dia anterior. A ciência - mútua - de que presenciávamos uma crise. A indecência - minha - de achar ser só mais uma. E seu olhar me fuzilando no desencontro de palavras. E, se bem me recordo, uma Piaf cantando sobre l'effet que tu me fais. Recordação que não sei se concreta ou criada, se existente ou se desejada. Mas a canção bem saberia falar de tudo - aquilo tudo que se prendeu na traquéia, que se afogou no pulmão, que se escondeu na ponta da língua, aquilo tudo que me sufocaria por anos, e mais anos, depois. Naquele dia, você saciou um dos meus desejos, o de poder falar tudo sem usar nenhuma palavra, de nenhuma língua. Bastou me olhar, e segurar nas mãos um maço de Marlboro Light - você que sempre fumou o vermelho, dizendo que só mudaria quando fosse mudar a si mesma -, para que eu soubesse. Você queria mudar e, parte daquela mudança, consistia em se mudar de mim. Naquele momento eu poderia jurar que o chão estava se abrindo, ainda que meus pés continuassem firmes, eu poderia jurar que estava no meio de uma queda, vendo, no fundo, nada. Não vendo. De repente, perdi todos os sentidos. E perdi a razão, no momento em que você se tornou ausente - ausente na forma de corpo, não posso negar que ainda te sinto. Comecei dizendo que esperei você me ligar. Preciso delinear os momentos, não só a forma perfeita e amendoada de seus olhos. Houveram momentos em que você exitou. Atendia minhas ligações de madrugada, respeitando meu bafo de whisky, escutando, risonha - aquele seu riso sem jeito, difícil de esquecer -, meus desabafos, meus discursos, meus meio-poemas com dois cubos de gelo, seguidos de náuseas. No dia seguinte você me ligava, querendo saber quantos remédios eu já havia tomado para dor de cabeça, a quantas andava minha úlcera e, depois de passar minutos reclamando sobre os dois reais que havia investido em uma xícara de café aguado, sutilmente me perguntava se eu havia dormido com alguém e, na sua voz eu sabia. Na sua voz eu sabia que não era só interesse, que era medo, e desejo, e ciúme, e dúvida. E eu sabia, e você mesma sabia que eu saberia, que você já não estava mais tão certa, que já devia ter até voltado para o filtro vermelho, e ter pensado várias vezes em aparecer na minha porta pedindo por açúcar - pois foi assim que nos conhecemos, e sempre nos gabávamos da graça clichê de nosso encontro. E, ao me perguntar, você temia a resposta e inventava uma outra ligação na espera, um cheiro estranho vindo do forno, uma visita inesperada de seus amigos metidos a artistas. E desligava, e eu ficava anos-luz escutando aquele barulho repetitivo das ligações cortadas. E ainda assim me sentia infinitamente ligado a você. Um dia, repetindo as doses masoquistas de saudade imediata, eu te liguei no mesmo estado em que ligava - trocando os pés, os sentimentos, e as palavras - e você me falou. Você me falou e eu não pude acreditar. Que havia me trocado por outro, até aí tudo bem. Mas que me amava, ainda e eternamente, de forma densa e insensata. Como gotas de petróleo despejadas no mar. Em seguida, eu caí para trás. E nossa ligação também, caiu, se rompeu. E eu esperei aquele barulho parar, não sei nem por quanto tempo, acompanhando, com ele, as batidas no meu peito. Na hora que o barulho parou, sei que eu parei de respirar. E fiquei esperando você me ligar. Por dez minutos. Duas horas. Cinco anos. Uma década. E, por enquanto, nada. Você nunca me atendeu de novo. Mesmo quando sóbrio e humilde, às duas da tarde de uma Quarta-feira. Mesmo com recados ansiosos, e pedidos desesperados. O tempo vem passando, desde então. Estou esperando você me ligar.

6 comentários:

Anônimo disse...

Você me tira o ar.
sem mais

Diego Nathan disse...

Perdi seu telefone. Depois me passa que eu ligo.

Danubya Medeiros. disse...

Depois de ler, difícil é encontrar, palavra que caiba num elogio só.
Nossa maravilhoso,os olhos só querem ler cada linha, nem dá tempo de piscar.
É ótimo vir aqui.
Beijo!

Julianna Motter disse...

Primeiro: Tirar o ar? Bom ou ruim?
Segundo: Vou pensar se passo...
Terceiro: Muito obrigada! Espero que continue sendo ótimo vir aqui e que, por isso, você continue vindo.
Um beijo!

Anônimo disse...

hahaha é bom! tem como não ser? só se seu nome fosse asma...mas não é :)muito bom,muito bom...

Anônimo disse...

Adorei seus textos! passarei a visitar aqui com uma certa frequência. parabéns!