segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O Porto.

Um.
Pensei em você. No dia em que atravessamos de mãos dadas o Eixão, durante a madrugada, tremendo de frio, descobertos pelos faróis, pelos pneus acelerados. Pensei em você, o resgate de um afogado no oceano da memória. Um pensamento dos tempos em que sonhávamos e, ainda, acreditávamos. Seu perfume persiste no lençol. E ainda sinto a sua barba fazendo cócegas no meu queixo. Dizem que está chegando o fim do mundo. Estou preparada, há tempos, desde o fim de tudo. Era verão, quando desfilávamos nossos corpos pelas calçadas e, pouco depois, dividíamos o calor de nossas mãos. Era claro, e sereno. E você era bonito, com seus olhos amendoados me fitando, com suas mãos, e coração, me segurando. Mas eu queria ir embora. Todas as vezes. Sempre que disse que te amava e que aquilo duraria para sempre. Eu sempre quis ir embora. E nunca foi meu desejo te encontrar. Eu guardo tantos segredos, e a verdade é que você nunca me conheceu. Então eu nunca fui sua. Não sei porquê ainda me escreve, se eu nunca te dei uma resposta. Nem nunca darei. Você sente a minha falta, mas ela é só sua. E espero que guarde com carinho, todas as vezes em que te aninhei, e que te chamei para perto, e tentei te ensinar palavras do meu espanhol falho, e dividimos a cama, e o primeiro cigarro do dia. Doeu me apoiar em você de tal forma, de tal forma que seu peso passou a existir somente somado ao meu. Começou com um desencontro. Eu procurava por uma fuga, você só queria um amor eterno. Eu vivia para o mundo, para os outros, você só queria se sentar o sofá, enconstar seu corpo no meu, e assistir televisão.
Dois.
Andei pensando em você, de forma a nunca te tirar da cabeça - muito menos do coração. Lembrei daquela viagem que fizemos para o litoral, daquele fim de tarde que passamos à beira-mar, seu cabelo se confundindo com a areia, e sua cabeça se deitando no meu ombro como deitava o sol. Andei pensando em você, como o céu encoberto de nuvens, em dias de verão. Um pensamento preso no breve decorrer daqueles dias, em que amávamos sem limites. Sua presença persiste nos cômodos, ao ar-livre, em todos os cantos, e quinas. Eu ainda sinto seu corpo dando sentido ao meu. Dizem que este é o ápice da loucura. Tenho, há tempos, estado louco, desde o começo de tudo. Era triste, quando eu caminhava sozinho por debaixo de sol um incendiário e, pouco depois, uma brisa veio contigo. Era o que nada nunca havia sido. E você era uma visão do impossível, com seus traços perfeitos e inconsequentes. Com sua vontade de escapar, pelos menores buracos. De escapar de tudo, para sempre. Eu queria que você não tivesse um coração tão inquieto. E não tivesse sua sede de tudo. E que tivesse ficado. Eu esperei por vidas até te encontrar. Eu guardei tanto amor, e a verdade é que você nunca aceitou. Você foi feita para ser minha. Não sei porquê não me responde, tentando desafiar o destino. Não sei porquê ainda te escrevo, só aumentando minha pressa. Eu sinto sua falta e, é nela, que perco a razão. Não sei se guarda as minhas cartas, mas espero que sim. Nelas, está tudo reescrito, em uma tentativa de nos reconstruir. No final, todo mundo só quer ser amado. Mas você era diferente...
Três.
Um par é a junção de duas peças que se encaixam. De duas peças que se encaixam perfeitamente. Quando não há o encaixe perfeito, não há par. Quando não é par, é dor. Da dor vem o romance - um corpo dolorido e encharcado de sangue, procura por outro corpo na mesma condição. Um par - ou a síndrome da procura pelo encaixe - quando desfeito, consiste em dois corpos abandonados. Cada corpo vai atrás de um outro, que sirva na cama ou no coração. À princípio, há um desencontro. Pois o desencaixe das partes é justamente a abertura viral do desejo, da impressão de saciedade na procura. O ímpar é o atraente, a disposição do contraste entre a água e o vinho, entre um ferido e um sobrevivente intacto. Do desencontro, nasce a probabilidade. Em que dois corpos se encontram calculando. O número de vezes que encontrarão defeitos, que beijarão as cicatrizes, que amarão os erros, que discutirão na porta do cinema, que transarão com raiva, que pedirão perdão, que partirão, e voltarão, até que a partida seja para sempre, o desencaixe seja inconsolável. O ímpar é o mais belo engano, o par é o mais doce erro. No final, todo mundo só quer ser amado. Mas as formas de encaixe são diferentes...
Um.
Não vi a necessidade de prolongar seu engano, de financiar seu estrago. Se parti, foi porque teria sido pior ter ficado. Se te parti, foi porque você gostou de ser enganado. Não fui sincera, também não menti. Apenas fiquei lá, sem falar nada. Enquanto você circulava à minha volta com seu corpo malemolente, e me beijava a nunca, e dizia que deveríamos ser o que éramos para sempre. Não fomos nada. Não para mim. Nada que eu tenha visto, percebido, ou sentido.
Dois.
Nunca entendi o seu silêncio. Nunca te questionei de onde ele vinha. Achei melhor me manter distante, apesar de presente. Não entendia suas, súbitas, vontades de se exilar pelos cantos. Preferi te assistir de longe, e imaginar cada um dos seus pensamentos - que, às vezes, eram tão misteriosos que me davam medo. Às vezes eu poderia apostar que você acabaria pulando da janela, a qualquer momento. Ou que me abandonaria. Eu teria acertado apostando na segunda.
Três.
Existe a partida, que demarca o encontro. Existe o choro, que demarca a perda. Existe o amor, que traça caminhos pela areia. Caminhos que se apagam na visita da mais breve maré. É possível perder o amor de vista, como é possível desaprender o caminho de volta. Quando amor se vai, fica a confusão, o atordoamento de não saber para onde ir, de não saber se deve ficar.
Um.
Eu consigo te ver, outra vez entrando no mar. Molhando os cabelos e, logo, desconcertado por ter quase se afogado com uma onda. Eu consigo te ver, como se estivesse comigo agora. Abrindo uma garrafa de vinho e me dizendo cariño, não sei como te dizer. Não era porquê não sabia falar as tais palavras. Era por não entender aquela língua. Você sabia amar e dizer, e demonstrar, melhor do que qualquer outro. Você falava a língua dos anjos, eu me limitava a um espanhol fodido.
Dois.
Eu te imaginei, agora. Sentada perto do mar, tomando uma cerveja, imersa na profundez do seu próprio oceano. Fiquei me perguntando se a maré estava cheia por lá. Se você estaria precisando de alguém para inundar. Eu deveria ter me mostrado seu porto-seguro. Mas era tão difícil encontrar as palavras certas.
Três.
Não há nada a ser dito, pois o querer não se concretiza com o falar. Não que não se queira escutar. Até porque, amor, se confundido com o silêncio, se confunde o próprio corpo. E o corpo, quando solitário, não sabe em qual porto se firmar.

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