domingo, 27 de fevereiro de 2011

Amor Feliz.

Estava te devendo um amor feliz. Para você emoldurar e pendurar em alguma das paredes da sala. Não sei como começar um amor feliz. Era uma vez...não, era uma vez não serve. Um dia...não, a progressão de todos os dias depois daquele. Em uma vida...não, amor feliz é post mortem também. Haviam duas pessoas. Uma mais triste, outra mais ligeira. Aconteceu de um dia elas se encontrarem. E aconteceu de, depois daquele dia, elas se acontecerem. Uma aconteceu para a outra, como um câncer que tomou conta, e passou a circular no sangue, partindo do peito. Ao se acontecerem, se perceberam intimamente ligadas. Mais do que gêmeas, almas siamesas. Que, inconscientemente, estavam escritas nas estrelas. E mesmo o mundo se partindo ao meio, se encontrariam. Quando fosse conveniente para o destino. O destino delas era o mesmo, se encontrarem em um nó na espiral da vida. Aconteceu. E não houveram surpresas. Além dos buquês e caixas de chocolate, e pernas acariciadas sob a mesa. Quando se encontraram, passaram a viver juntas. Na dimensão física. Pois mal sabiam que já viviam uma com a outra antes mesmo de sussurrarem, envergonhadas, seus nomes. Viveram por anos, muitos deles, todos eles. O máximo de anos que seus pulmões puderam aguentar. Mesmo com a poluição, a nicotina, e a imprecisão com a qual o tórax se movimenta em tempos de paixão, duraram. Indo contra todas as leis dos homens, e dos deuses. Indo contra tudo, porque precisavam de um desafio para que se segurrassem um ao outro de forma assim, tão forte. Mesmo amor tão grande, a vida se mostrou presente roubando seus últimos suspiros. No leito de um hospital, paredes pintadas de branco, visão turva, e o sossegar dos batimentos cardíacos. Enfim em paz. Como quiseram dizer quando se perceberam juntos. De mãos dadas, forçando os últimos músculos para um pequeno espasmo de força, partiram em um mesmo trem. Um dia se foram. Com a chance de se despedirem com uma quase-lágrima escapando pelo canto dos olhos. Ficaram devendo um amor feliz para você. E uma coleção de contas no banco. Quando acordaram, seus corpos dispostos lado a lado. Uma lembrança pouco nítida da noite anterior. Quando se conheceram, em meio ao som e o neon da noite, mãos ocupadas dificultando o primeiro contato. Dentes amarelados, impossibilitando a compreensão de seus nomes. O extrato marcando um drink seguido do outro, e umas cervejas no meio, para dar a impressão de leveza. Dois estranhos seguindo para o quarto. Nada de feliz ou duradouro ou predestinado. Sem encontro de almas, um aliciamento de corpos. O desejo carnal tomando conta no anonimato dos beijos. Sem troca de telefones ou informações sinceras. Um gari que virou médico no primeiro sorriso. Uma vadia que virou santa no primeiro toque de lábios. Mas ninguém precisaria saber. As mãos entrando pelas calças e saindo do controle. A necessidade de um lugar mais calmo e discreto. Dois estranhos, um montado em cima do outro. Os dois montados na necessidade de não viver só. Mas nada além. Sem beijos ternos ou carícias em volta do umbigo. Ou um abraço para selar o pacto de silêncio. E de sangue, pois tinham pressa. E a pressa é inimiga da razão. E os lábios inchados uma hora estouram, uma falha na calçada. Um pequeno e contornável tropeço. Cada um virado para o seu lado. A única ligação entre eles sendo o lençol. Um sonho esperançoso de um amor feliz, também compartilhado. Um invadindo o sonho do outro, e os dois estranhando aquela situação. Em que aquele nada era só nada, mas no sonho as coisas tomando formas diferentes. No sonho os dois pagando o amor feliz que se deviam. Acontecendo um para o outro, como um câncer terminal. E tudo terminando com o despertar de um novo dia. Continuo te devendo um amor feliz. Mesmo nós todos sabendo que esse tipo de amor não existe. E não resiste fora dos sonhos. Os dois acordam e partem. Mas isso não quer dizer que foi triste. Pelo menos foi amor. E se não foi, melhor ainda.

2 comentários:

Danubya Medeiros. disse...

Você bem usa,e bem abusa do direito de dizer as coisas heim...Maravilhoso texto,todo ele,o que vc escreveu e o que deu margem a refletir.Será mesmo que Amor Feliz só nos sonhos existe,e dando-lhe a realidade de dois seres imperfeitos ele morre asfixiado,ou por inanição? Talvez somente vivendo, se arriscando e se arranhando, para ao menos tentar descobrir que mesmo se não for regra,que seja o amor feliz, a mais bem vinda exceção de todas.
Adorei,
Beijo!

Diego Nathan disse...

Tanta lucidez - beleza de texto