quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Cotidiado das partes

O chão que o tempo treme/o teto que o tempo teme - 

o tremor do tempo
e alguma explicação
que distancie
os laços
dos nós
os outros
de nós
e o que tivemos de especial?
a ambição de normalidade
sextas e sábados vinho cinema parque cerveja quente apoiada na barriga cócegas transas café na cama beijos no pé do ouvido transes banhos quentes preguiça
lençol sob edredon
braço esquerdo sob o pescoço
braço direito sobre a cintura
para que não caíssemos de barriga dos sonhos
para que não caíssemos de cara na realidade
de que, logo, seria segunda outra vez
e os corpos cansados
que mal se perceberiam nas próximas noites
e os corpos cansados
um sobre o outro
peso mole
peso morto
amor que, estranhamente,
não abria em dias úteis
paixão morna de finais de semana
doeu
aceitar
separar
desencontrar
subtrair um de dois
mas fomos, acima de tudo, soma:
fomos concreto e qualquer coisa que pulse


Conto já pela metade do que te apanha depois bate -

A vontade, primeira, foi pular em seus braços. Nem sabia seu nome, só queria, de alguma forma, estar em você. Me aproximei e elogiei seus olhos. Você me olhou com eles estranhos. Me atravessou, com o eles, até o outro lado. Me vasculhou com os olhos. Antes estranhos, depois familiares, à procura de algo esquecido por ali. A sua não estranheza me fez estranhar: me olhou ao avesso e nem um susto, nem sinal de disritmia. Você teve - e isso eu vi porque vi, antes, em mim - a mesma vontade de pular em meus braços. Ainda que eu fosse duas vezes menor que o seu tamanho, você teve vontade de pegar impulso e pular em meus braços. Seus olhos estranhos, familiares e, agora, risonhos, me diziam que você queria, de alguma forma, estar em mim.
Eu tive certeza: não tem como errar com as coisas tão certas. E te carreguei comigo. Ou você me carregou contigo. A verdade é que não importa a ordem. O tanto que ventava nesses dias teve relevância: éramos um par de penas escrevendo nossa história no gramado da praça municipal.
A história do meio - o desenrolar - é feia e bonita. É tão real que nem difere do que imaginei - durante e depois. É tão real que posso tocar nela. Está guardada no vão entre os seios. Às vezes, acho que é de pelúcia. Em outras, sinto estar tocando num carpete sujo. É estranho quando digo em voz alta, mas eu fico, todo dia, me lembrando de esquecê-la.
Olhos, vez ou outra, se dissimulam. Os seus estranhos, familares, risonhos, paravam, de repente, de rir. Pareciam animais famintos, destes que te seguram pelos braços e te prendem pelo pescoço. Que me apertavam contra a parede, vasculhavam atrás de algum segredo oculto: eles queriam me tirar tudo, me despir toda, até que não restasse mais nada. Nada trazido da rua, nada que já fosse meu. E me atiravam ao chão.
A vontade, de repente, era de pular dos braços para qualquer lugar, qualquer precipício.
A vontade final, e afinal, um poeminha que se despede e que se dispensa:
a vontade era de ir embora
pegar o sol
o trânsito
a chuva lá fora
e ele dizendo:
você não consegue viver
sem mim,
para agora e pensa


Sou céu, sou seu -

O céu que a gente vê
é reflexo do céu

que há na gente.

O céu que a gente vê
é reflexo da imensidão
que a gente sente.

Amor do cerrado -

amor tem que ser
que nem ipê:
florescer
toda vez
que parecer morrer


Por onde seguir - 

o caminho claro para o amor é solidão
o caminho claro para o amor é escuro 

o caminho
é claro
para o amor:
escuro
aéreo
é passarinho
que não precisa
passar

um caminho
quando esbarra
em um outro
é claro-escuro
e solidão -
a dois

o caminho claro para o amor
é não cansar de caminhar
mesmo quando
os pés
precisarem
retornar ao chão


Na ponta da sua língua -

viver de palavras
sentí-las
mastigá-las
apertar
engolir
lamber
dançá-las
transar-me
transá-las
transcender-me
atravessá-las
viver
ser palavras
uma parte
de desejar-ser eternidade
que nos toca
mas que não pode
ser tocada


Quimera -

que a poesia nos complete onde a esperança falta

que a poesia nos empurre onde a realidade falha


Glossário e fragmentos -


suscinto:
nada sinto
só escrevo
(e minto)

amor:
a poesia que os olhos vêem,
o coração sente,
e a palavra desmente



poesia:
é aquilo
que nos abraça até
em lugares
que nem sabíamos
existir

sem poesia,
nada rima com alegria

feito num poema de amor,
te encontro
quando o verso
acabou

sinto muito,
só não sinto mais nada

saudade é que nem coração de mãe:
sempre cabe mais uma

Partes do cotidiano

Ipê-rmaneça -
ipê

ipê
ipê
a quantos olho
como olho
você?

ipê
ipê
ipê
meu coração-vermelho
salta do peito
quando
amarelo-você

ipê
ipê
ipê
quando eu crescer
quero ter
ao menos metade das cores
e metade das vidas
que você me faz ver


Das coisas mais belas, nada sobrou daquelas - 

das coisas que são
quando já não devem ser -


nas coisas mais lindas do mundo
ainda vejo você

O poema que escrevi sem amor -

tentei escrever um poema
que não falasse de amor:

não-amor
desamar
desarmar
o amor

o não-amor
é uma forma
assimétrica
de amar

o não-amor
é um amor
ausente

poemas
são feitos de amor
e gramática

poema
é uma forma
geométrica
de amar


Meio Gal, meio Tom - 

meu amor,
mansidão
de madrugada
vindo para a cama
se arrastando
por debaixo do lençol
pingando
na pia
torneira frouxa
ao longo dos dias
meu amor,
primavera
céu azul
domingo no parque
dormindo no parque
meio sonho
meio acordado
debaixo das árvores
das sombras
umidade
seu amor,
sertão
carente
faltoso
por destino,
raso
duro
e a isso,
condicionado
seu amor,
metrópole
canto dos pássaros-carros
e dos pássaros-vozes
seu amor foi aflito
amor-relógio
amor-pressa
esquecido
amor é um constante deixar-ir
e quem sabe volte...


Amor a qual me rendi -

seus olhos
e a forma como segurava o garfo
o sorriso
como corria inclinada para frente
os dedos do pé
quando caía exausta na cama
quando caiu de bunda na neve
como beijava minha nuca
como passava o guardanapo na boca, num movimento circular
quando apareceu na minha vida
verão de mil novecentos e nunca nos importaria o tempo
das vezes em que quase te perdi
a geografia
- a distância que, às vezes, nos atropela sem ver -
a geometria
- as quinas que a vida nos talha -
o tempo
- teimando em passar contra nossa vontade -
a vida
- que passa e fica -
era te ver
era só sentir
sua presença
seu cheiro
era só pensar
era nem pensar
um flutuar
em cores tranquilas
a céu aberto
na beira do mar
amor
que brota da terra
mas que parece suspenso no ar


Poema que completa e que não se entende -

a gente vem sendo
a gente vai sendo
a gente vencendo

- e toda a felicidade
na gente e no movimento
e no momento
áspera austera
aspiração de
eternidade


Integral ou desnaturado - 

você me disse assim:
- meu amor, não esquece o leite
pouco antes, sentados em silêncio, não sabíamos o que fazer estando um ao lado do outro
não sabíamos o que fazer sendo nós dois e mais aquela quietude
eu não entendia o que aquele silêncio nos dizia
e você não entendia o entender
desde muito tempo
desde muito antes
mais ou menos ali, naquele fragmento de tempo onde nos conhecemos e nos estranhamos
eu lembro de te dizer meio mal dito:
- parece cruel, mas sonho num dia, que nem filme, sair pra comprar algo e nunca mais voltar. Mas cigarro não, cigarro nunca...de repente um litro de leite. Sair para comprar leite e nunca mais voltar.
você me disse assim:
- meu amor, não esquece o leite

nunca mais ouvi nosso silêncio

nunca mais nem ouvi falar do nosso silêncio

Os discos e os disses

Pelo leite derramado -

quando esquecia teus olhos em cima dos meus, como se morássemos por entre as páginas de Chico

como se morássemos um no outro
como se morar fosse um estado eterno quando, na verdade, havendo eternidade, seria um jamais estado, mas sim uma condição imutável 
como se estivéssemos condicionados a isso
a procurar sempre morada
a procurar sempre abrigo
sempre ombro um no outro mas nunca amigo
sempre choro e ocasionalmente riso
muitos beijos
e mordidas
e arranhões
e poesias
ao pé do ouvido ao pé da cama
- me devora ou me ama
quando esquecia sua vida em cima da minha
quando esquecia
quando vida
quando minha
quando
ando
quando
caminha


Pelo corpo esparramado -

carta descartável ou
das maneiras inventadas para avisar um ente querido que a morte foi encomendada mais cedo ou
das rimas que inventamos para dar graça as desgraças da vida ou
de como é engraçado costurar desgraças só para dar à rima: graça

um dia, talvez, eu volte para casa,
mas hoje não
pus minhas tripas para fora,
e agora sou só coração


Caetano, não encha o que já esvaziou - 

não vou cair no seu papo
vou cair no seu colo
despencar na sua cama
quem sabe nessa hora
nessa exata hora
eu perdoe seus pés
e seus dedos tortos
e o cheiro de naftalina que vem do seu armário cheiro que não se esconde e nem se tranca já que a porta empenou
eu vou arrebentar a sua porta e entrar pela sala e entrar pelo banheiro onde te descobrirei pelo vapor quente e o som da sua voz cantando "nada mais de nós"
vou girar a maçaneta sem você se assustar sem você nem notar você vai demorar pra perceber e só perceberá quando eu estiver encharcada ensaboada esticada em você
e vou te beijar as costas antes que você termine a música
"vou me livrar de você"
vou te impedir que cante antes de te beijar a nuca
tem coração pontiagudo coração ponte viaduto tem coração que amansa que amassa e que perfura
é como no ditado
carne mole
em alma dura
tanto bate
até que cura


Poemanda -

delícia é viver nessa corda bamba

que separa o precipício da poesia
e a poesia do samba

pois a vida
pois é vida
pois é ia
pois ficou
a poesia
essa que me balançou


Me disseram ter sido o que tinha de ser -

você fala tanto dela você ri tanto pra ela
você a chama quando é escuro e madrugada e você rola pela cama e acorda suado de um pesadelo
você olha para o lado e se dá conta de que eu aqui não sou ela
você olha para o lado e se dá conta da ausência dela
olha para o lado e diz para si mesmo não dar conta de viver sem ela
você tenta olhar pra ela mas só vê a mim
e eu te leio
você olha pra mim mas só vê a ela
você abre a porta a geladeira uma garrafa de cerveja um livro a janela
você olha para baixo e os carros e os pedestres o som dos outros apartamentos e um silêncio o silêncio todo seu
você procura por ela
e se volta vez ou outra para dentro e me olha e eu pareço morta
e você nada
e você voa
e você some
e você nem nota
e não diz mais nada e acha que eu não percebo que enquanto passo um café você espera o gosto do açúcar dela
o doce dela
a cana
a canela dela
o corpo dela inteiro ou o pedaço que fosse
você não diz nada
mas eu ouço mas eu leio mas eu vejo tudo
tudo que você me dá é nada
e eu não choro
e eu não rio
e eu não nado
nesse rio nesse lago nesse apartamento nesse contentamento flutuo enquanto posso e depois me afogo
vez ou outra você me abraça
me esfrega feito fosse lâmpada e eu me acendo
feito fizesse mágica você faz um pedido
mas ela não aparece
e você perdido me encontra
me esfrega me acende me encolhe e me monta
me abraça e é quando abraço seu abraço sendo só nós dois e me desmonto
você finalmente dorme ali corpo quente apertado espremido
amo quando você esquece seu coração no meu

O céu o seu e o meu

a ideia é escrever sobre o céu
sobre o fim de tarde
porque é pôr-do-sol demarcação da hora em que o dia propriamente dito e nunca devidamente escutado morre
e a gente renasce
e a gente respira
e a gente se recorda de quando acordou de manhã e pensou que o dia poderia passar rápido hoje porque ainda é terça e no final de semana eu não tomei aquela cerveja que tanto esperei na semana passada
quer dizer até tomei umas cinco ou seis e mais uma garrafa de whisky que dividi com dois amigos na beira do rio
que rio?
é lago
queria que o dia passasse rápido
mas nessa hora em que o dia morre a gente renasce e a gente respira e a gente reage
eu penso eu lembro que me disseram que a vida passa rápido mas tão rápido que a gente pisca e quando viu
nem vê
eu assisto o céu misturar azul com rosa vermelho lilás amarelo laranja e nada disso me assusta porque mesmo não sendo muito natural mesmo não sendo muito da natureza é debaixo desse céu que me sinto infinito
e caso um dia eu vá embora e eu sei que eu vou
do que mais sentirei falta se me perguntarem é desse céu de brasília
desse céu brasilindo
brasilouco
desse céu quatro mares
que deságua rebenta ressaca
nessa bras-ilha
nesse céu tinta guache
aquarela
lápis de cor
tinta óleo
eu que nada entendo de pintura quero que essa tinta seja feita para pintar o rosto e tinta para pintar com o dedo porque quero pintar minha cara meu corpo meu qualquer jeito da cor desse céu
que é pra ver se renasço
que é pra ver se morro
morrendo cresce
pra virar logo montanha
pra encostar minha ponta logo lá em cima
pra nos confundirmos eu e ele
céu é ele
céu e eu


Algo de você feito em mim

é estranho pensar que talvez você tenha alguém e que talvez eu tenha também
é estranho pensar que fomos o alguém um do outro há um tempo atrás e que agora
e que agora mais nada
agora eu acho que você talvez pense, às vezes, quando não te sobra mais nada quando as paredes são totalmente brancas as tardes demasiadamente quentes e o ventilador repete um mesmo movimento e você se cansa do que está lendo ou escrevendo ou do projeto em que está trabalhando e pensa em mim
acho que sim, às vezes, você pensa em mim
quando não há nada melhor para fazer ou quando você sente um cheiro e com ele a saudade
saudade que talvez não seja a saudade em si, mas é esse o nome que damos as coisas que nos faltam
mesmo as que nos faltam sem fazer falta
às vezes, acho que também penso em você
e nem sempre percebo talvez isso aconteça quando algo aperta forte no peito e eu não saiba porque
talvez quando aconteça quando peço um café e imediatamente peço uma garrafa d'água mas só então lembro que esta eu pedia para você
eu tomo e sempre tomei café puro
às vezes, acho que penso como estou pensando agora, sem ter imaginado, sem ter previsto e tendo negado que às vezes penso como estou pensando e escrevendo agora para que as coisas fiquem mais claras
que tenham letras nessa saudade que não sinto
que tenham vírgulas e pontos nessa saudade que existe, mas não como tal
que tenham letras maiúsculas e parágrafos nessa falta que se acentua nas lacunas dos dias
que tenha cidade data e minha assinatura nesses alguéns
que fomos
que somos
um para o outro
para outros
esses alguéns
que se tornam ninguém
que preenchem esse ciclo das coisas
que são naturais nesse início meio e fim
essas coisas que não foram feitas para doer
mas que doem
e apertam
mesmo assim

E agora que sou Zé?

zé era zé, mas não era josé e também não era de sobrenome ninguém
zé era zé e ponto, porque assim são as coisas: são e ponto
zé era sem explicações, para ser e para dar
era de poucas palavras ou quase nenhuma 
o corpo de zé era mais de setenta por cento de água e o que sobrava, preencheu de silêncio
ele existia a partir de uma mesma existência dos sacos plásticos que rolam, tranquilamente, por vias de 100km/h
indiferente a pressa do mundo indiferente ao mundo, como um todo, muito disso por viver em outro
- esse menino é de outro planeta
primeira lembrança que tem de seu pai
- por que, zé? por que você é assim, menino?
primeira lembrança que tem de sua mãe
mas quando zé ensaiava abrir a boca e esboçava as primeiras palavras para explicar as tons de azul e branco e as ocasionais variações de vermelhos laranjas e amarelos que via lá bem atrás de seus olhos azuis da cor do céu, sua mãe já preparava um chá forte de camomila e alcançava a caixa de lexotan que nem sugeriu a irmã dela
- sua tia é médica da cabeça, zé, só engole esse trem menino

engole esse mundo, zé
e tome aqui um copo d'água
antes que ele te engula




segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Se eu quiser falar com Deus

te escrevo já depois de meio-dia, quando o sol bate tão forte que não sei se o que vejo é realmente o que há para ser visto ou alucinação 
te escrevo do meio da rua, num bloco de anotações que recebi via correio, de um laboratório farmacêutico 
o bloco não é pautado e as folhas foram muito mal cortadas e porcamente presas juntas em espiral
a palavra "espiral" me lembra o tempo que passei na catequese, já que o livro que usávamos se chamava "a espiral da vida" e eu ficava sem entender toda vez que acompanhava minha mãe na copiadora da faculdade, na época eu deveria ter uns oito anos, e eu não entendia porque toda vez que eu acompanhava ela na copiadora da faculdade o cara perguntava
- quer que coloque espiral?
e eu ficava sem entender porque aquele cara queria colocar a espiral da vida nos livros e me perguntava se os livros eram registros de fato da vida e que só retomavam o viver depois da espiral
como umas vidas na sala de espera só esperando um cara perguntar pra alguém se
- quer que coloque espiral?
para voltar a viver do jeito que eu e minha mãe vivíamos por exemplo
eu também não entendia porque o cara perguntava pra minha mãe quase sempre e só às vezes para as outras pessoas e eu ficava sem saber porque aquele cara podia perguntar isso e porque cabia a ele cuidar daquilo tudo
eu não sabia se aquele cara era Deus ou se Deus era minha mãe ou as pessoas que de vez em quando também podiam escolher colocar a espiral
e um dia eu perguntei pra minha mãe porque o céu ficava num canto tão sujo daquele bloco da faculdade e bem na frente de uma lanchonete que vendia o melhor enroladinho frito de salsicha e que cheirava mal
e minha mãe fez que riu só para não demonstrar para mim que não estava rindo, como ela sempre fazia, do jeito que escutei um dia meu pai dizer a ela
- não passe suas emoções para o garoto
e naquele dia, eu fiquei sem resposta e nunca mais perguntei
continuei achando aquele céu muito estranho e o fato de meu pai pedir a mamãe para não passar as emoções para mim deu ainda mais sentido a tudo
Deus era ela, claro, por isso ia na copiadora todo dia e por isso não podia me passar as emoções, porque Deus, eu descobri bem cedo, que cuidava e guardava a vida de todo mundo, e mamãe, que era Deus, não podia contar segredo dos outros
porque era feio, isso meu avô quem disse, quando, ainda mais novo, contei para a vovó que o vi passando a mão na bunda da Dona Maria
Dona Maria foi uma moça que trabalhou lá em casa e que a gente dizia que cuidava de mim, da casa e do almoço e que, por anos, fiquei sem entender porque deveria cuidar de mim, mas vivia rezando ajoelhada com o vovô sentado dando benção segurando nos ombros dela
depois da espiral as coisas ficaram mais claras na minha cabeça de menino, eu dizia nas aulas de catequese que o céu de verdade era lá em casa e por isso tanta gente vinha, de tempos em tempos, para eu dizer que cuidava de mim, da casa e fazia almoço
na verdade, para estarem logo sempre ajoelhadas com as mãos de vovô nos ombros quando a vovó saía para ir a loja de departamentos ou ao mercado
depois de mais idade e algumas Marias e Madalenas eu desisti de acreditar no céu
e agora não sei o que me leva a te escrever depois de meio-dia, no meio da rua, quando o sol bate tão forte que meus olhos ardem e a pele queima e a saudade bate e eu não me satisfaço e peço para bater de novo e não parar e eu te sinto próxima, mesmo sabendo que depois de terminar essa frase eu vou jogar essa folha no lixo
aliás, dane-se

o bloco de anotações inteiro

A sensação dela

que uma vez, depois de umas garrafas a mais de vinho, ela soltou o verbo e o sujeito e disse assim, que quando ela encostava nele, no sujeito ele, que ela soltou só para falar, verbalizar, que quando ela encostava nele, os dedos dos pés se contraíam e alguma coisa ia rastejando deles até a última ponta do mais longo fio de cabelo
cabelo meio vermelho meio dourado meio cor de sol, meio cor de nada, até porque ele, ele mesmo, se negava a dizer ou a deixar que alguém dissesse que alguma coisa, que alguma qualquer outra coisa no mundo, se assemelhava a ela
ele dizia assim
- nunca vi coisa tão bonita no mundo
e se prendia nela e se espremia nela e nela se enlaçava feito fosse bicho feito rastejasse feito fosse elástico e não tivesse ossos feito fosse só coração
e nisso, ele um metro e noventa e dois puxados da família do pai emaranhados em um metro e cinquenta e seis estranhos dela que era a mais baixa entre os irmãos, faziam ele parecer tão menor tão frágil tão carente e tão necessariamente dela que dava dó
dava dó porque parecia que quando ele precisava se soltar dela ou quando ela precisava se soltar dele - sim, o enlaçamento era recíproco - parecia que ele ia quebrar se partir ao meio ou em milhares de pedacinhos dele que já eram dela e pedacinhos-coração de quem pensa não precisar de nenhum outro órgão para se sentir vivo
era tão bonito aquele quadro, aquela fotografia colagem pintura, aqueles dois juntos largados na cama no meio da tarde, com o sol batendo nas pontas dos dedos dos pés contraídos dele e dela e os lençóis manchados de água oxigenada cor-terra e as costelas dele sobressalentes e as costelas dela quase arrebentando a pele e aquela cena que parecia calar o barulho das ondas a rebentar na beira do mar e que parecia, também, um quadro do Portinari, porque os dois eram tão terra e avermelhados sujos e cinzentos de sol e de poluição e por causa do sol que refratava na janela e pelo jeito que se deve olhar
um retrato esquálido de um sofrimento a se conjecturar
retrato de uma miséria porque amor é muito muito muito muito muito de um tanto que ainda poder ser mais e mais e mais, mas não é soberba e portanto não pode sobrar e nem desperdiçar, amor tem que ser todo gasto e amor deles vinha contadinho moeda e moeda para se alimentarem os dois até o fim
os dedos dos pés se contraíam, chegava a doer nas canelas de tanta força de tanto músculo que vinha sei lá de onde e ela que se segurava apertando os lábios com os dentes e apertando o que estivesse ao alcance com as mãos suadas e vezes ou outras sujas de areia ou cheirando a alecrim o corpo todo reagindo e a sensação e a certeza de que alguma coisa ia rastejando da ponta dos dedos dos pés até a última ponta do mais longo fio de cabelo
iam se arrastando, depois, os dias e a vontade de ficar junto e a vontade de ficar colado e a vontade de ficar por cima e por baixo e rolar pela orla da praia não se importando com a temperatura ou com a sujeira do asfalto e do calçadão não se importariam se bateriam de cara em alguém ou num coco abandonado, mas vontade de ir rolando dos prédios a beira-mar até a beira do mar onde se assustariam com a água gelada e o gosto de sal
e se salgariam e se enrolariam e se sujariam e se adocicariam e seriam doces todos os dias ah! como eram doces os dias desde que haviam se encontrado e se cruzado e cruzado quando, enfim, foi o momento dela de conhecer esse lado da vida que falavam tão bem ao tempo que falavam tão mal e falavam algo sobre ir ou não ao céu, mas que ela por si só gostou e viu estrelas e era dia de céu encoberto e havia também o teto mas mesmo assim ela viu estrelas e permaneceu as vendo por muito tempo tanto tempo que depois já nem se surpreendia mais e passou a notar que o céu era sempre o mesmo e que ela nem o notava mais
e continuavam se arrastando e a vontade de ficar grudado e a vontade de ficar separado um pouco e a vontade de ficar só um pouco e sair um para um lado e um para o outro e iam se arrastando e arrastando também a vontade de ficar e os anos
e ele disse
- não conheço muito bem o mundo
e descobriu que certas coisas perdem a beleza e que certas coisas só tem a beleza que queremos dar a elas e que certas coisas acabam e que outras não

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O que coletei dos dias

a cura dura durará - 

ser presença
onde a ausência
te emudeceu

abraço apertado na noite fria
abraço calado na cama vazia

silêncio
e pó

silêncio
e só

juntos justos
tão apertados
que é preciso
prender o ar
para caber
que é preciso
ficar sem ar
para soltar

ser colo
ser céu
e ser seu

ser chão
onde os pés
lhe faltarão

a cura
dura
durará

a carne
fraca
nos sustentará


do que é o amor - 

amor é
essa incontornável
vontade
que te beija a boca
emaranha no cabelo
pendura no pescoço
morde o coração
abraça a alma
e arranha-céu


sendo sem querer -

foi sem
querer
querendo
que te encontrei
na rua
meio-dia e meio
queimando de sol
não sei se dezembro
ou se janeiro
não sei se tempo
ou se alguma coisa
no vento
não sei se deveria
mas sei que deixei
que fosse sendo
sem nem saber
que assim
foi ser
querer
e querendo
que me encontrei
em você


cometas e sentimentos cometidos -

das coisas lidas, jamais vencidas, jamais esquecidas e que nos escapam pela boca até o borrão de letras, sentimentos e cometas no papel:

quando a gente
está tão junto
que não sabe
se-r-parado

borrão:
o não saber
se continuo
ou não
a não-escolha:
atire-se
ou encolha-se


o ser querer querendo da vida - 

ser humano
ser espaço
ser amor
ser-ti-mento
ser poesia
ser som
ser silêncio
certeza
nenhuma
ser feliz
e nada
mais


o quereres querendo -

assisto ao sol:
o alcanço
com um anzol
olho para a lua e
decido que será sua
o azul do céu
me cai
como um véu
a rima da dor
perde pra alegria
não quero ser poeta
quero ser poesia


brancazulado poente - 

o pôr-do-sol hoje
tá pra pôr-no-céu
e deixar por-lá


côncavo e convexo -

como cavo
com versos?


o desconhecido -

quem és tu?
tu que não conheço
tu que não vejo
tu que sequer imagino
tu que é tão sujeito quanto eu
tu que deveria ser você
mas que se esconde
por debaixo
de saias cultas
e regionalistas


da disforia eufórica -

a gente vem sendo felicidade
a gente vencendo tristeza


poesia urbana -

te reconheço na rua
te recomeço na cama


Metade crônica metade conto do incontável amor passado -

De antemão, alerto que não prevejo os amores futuros. Não sonho e nem me angustio com eles. Sobre o amor presente, é plural: os sopros da vida. Que invadem pelos mais diversos orifícios e me abandonam como suspiros. Eu li, em Freud, que para o mínimo entendimento, o presente tem que se fazer passado. Eu escrevo sobre o que me parece inteligível.. Escrevo sobre a menor partícula que apreendi do amor. Uma partícula que me é íntima, mas também estranha. Não a enxergo nitidamente, não me tem formato, mas a sinto e a imagino. Algo que, em mim, borbulha e outras vezes levita, quase sempre imperceptível. Esse é o meu amor passado, o que alcanço dele e que posso repassar por palavras.

Escrevo, logo não sei quão distante estou do que sinto.

Sabe...sabe o que é mais engraçado? É que, de alguma forma, a vida que eu escrevo é a minha vida. Mas fora do papel ela não é tão bonita. Nem tão parecida com a vida dos outros. E se eu não a escrevo, ninguém me assiste vivendo, chega e diz: ei, eu também sinto isso. E nem chora comigo. Ou sorri. Está todo mundo muito ocupado achando que é único no mundo. Mas no fundo somos todos a mesma pessoa. Só os sonhos que são diferentes...


Menos censura, mais sinceridade - 

Lembrar que cada homem, todo homem, é feito de porpurina e coágulos. De labirintos e flores. Que não há porque se perder, há sempre um caminho. Amar. E não desistir nunca. Se não for um mesmo amor para sempre, que sejam novos e outros. Mas amores. Nunca menores, nunca mais algo, ou menos outra coisa. Mas completamente amores. E se seu amor parecer errado, então é amor de verdade. Todo mundo tem medo de perder. Mas é todo mundo orgulhoso demais para fazer o que é preciso para manter qualquer coisa viva:

amar,
ainda que,
vez em quando,
doa.
Doar-se
para não
doer-se
tanto


dos rabiscos no caderno -

amor é a frase que continua pela beirada mesmo quando a linha do caderno já acabou
que se recomeça
que se reinventa
mesmo quando
(parece que)

já terminou

conselho que te dou de graça -

se ausente
de tudo que,
quando presente,
não te arrebente
o peito


e que depois cobro -

nada mais justo:
se é olho por olho
quero ainda mais apertado:
coração com coração

dos abraços que são sem ser -

Boa noite, desejei
desejando
a ela e a noite
Bom dia, disse ela,
pois já era dia.
Poesia, disse eu,

pois já era ela.

a conclusão -

Encontrou
despertou
abraçou
escorregou
beijou
entregou
recebeu
e dividiu:
amou
mas um se cansou.
Logo mais, 
o outro repetiu.
Se poesia tem,

que mal, bem?

o que fica é o que vai -

o vento leve traz
o que o
              t
                e
                   m
                       p
                          o
                                leva
tudo muda
o tempo
odot

e o que é tudo isso -

poesia:
é querer que os outros enxerguem
o que a gente sente
sem nem ver

terça-feira, 13 de agosto de 2013

A lição morta da vida

Pedro enrabou Marília mais de uma dúzia de vezes depois que ela deixou João, seu irmão. A imagem e o desejo por ela ficaram impregnados nele desde o domingo de Páscoa de 1972, quando viu, no quarto de empregada, a bunda nua, pálida, precoce, de Marília repetindo um movimento de ir e voltar - para nada longe - do colo de João. Que não imagina e nem nunca poderia imaginar.

Pedro disse a Marília que poderia ajudá-la com a mudança. Ele já tinha consultado João, que disse não se importar, já que ela não conhecia mais muita gente na cidade, seria muito gentil da parte dele ajudar. Ele poderia entrar e sair na casa do irmão o número de vezes necessárias para retirar tudo o que era dela. Pedro contava com um número três vezes maior de visitas até conseguir carregar consigo o que realmente desejava. Mas não conseguiu se conter, e quando foi entregar a primeira remessa de roupas e tralhas, fez manobras circenses para, enfim, segurar entre as mãos a bunda de Marília. A carregou pelos dois quartos do apartamento alugado, conheceu o banheiro social, o de serviço, a sala e a cozinha. Faltou a varanda e a área de serviço, mas entre tralhas e roupas - e entre o capricho de tirá-las e permanecer sem elas -, não tiveram tempo para um tour completo. João ligou sedento por uma cerveja, "no Bar do Sujinho, só porque Marília odiava que eu fosse lá. Odiava que eu frequentasse lugar de puta, odiava que eu não fosse odiado, mas o contrário, por outras mulheres. Eu quero beber e trepar até gozar o necessário pra cuspí-la de mim". João gritava para além do telefone. Nessa hora, Pedro ficou do tamanho de uma bola de gude, miúdo de tanta culpa, e Marília engasgou tentando conter suas risadas.

Pedro se vestiu mais que rápido, enquanto Marília permaneceu pelo chão, sem parecer estar sentindo desespero, nem medo, nem nada. Rindo, mas não tanto. Sem saber, exatamente, o que sentia, Marília continuou arreganhada no chão, enquanto Pedro desceu os sete andares pela escada e saiu acelerando o carro.

Ao encontrar João, sozinho, de olhos arregalados, numa das mesas, teve a certeza de que não conseguiria manter segredo. Estava arrependido. Queria morrer. Aliás, queria matar Marília, matar a memória da bunda dela, indo e voltando para seu irmão. Mais ainda, queria matar a lembrança de Marília inteira roçando em seu corpo, há dez minutos atrás. Em seu corpo ainda quente da presença, feita ausência, dela.

A tarde se fez noite, antes, fez da presença ausência, fez da companhia um castigo insuportável, dos minutos e dos chopps intermináveis. Pedro não disfarçava a agonia, mas João estava tão longe que não percebia. João estava tão em Marília que ele e Pedro dividiam a mesma sensação de corpo quente que se ausenta e se assusta com a brisa fria que invade pela janela.

Em algum momento da madrugada, quando os garçons já recolhiam os vidros de pimenta e os porta-guardanapos, João se cansou, quis deixar o carro pela rua e pediu a Pedro que o deixasse em casa. Ao descer do carro, os olhos de João se encheram de lágrimas.

Vou dormir e acordar sozinho. Não sei nem por quanto tempo. Sozinho e solitário e sem previsão. É...e será se não é esse o bem mais precioso do homem, meu irmão, a solidão?

E suas lágrimas se encheram de Marílias. Que do outro lado, estavam cheias do João e vazias de Pedros. Cheias destes mesmos frágeis amores e sedentas por novos aquecidos desamores. Trocaram um abraço de irmãos. E depois, João puxou Pedro para um outro, mais longo, mais forte. Um abraço tão forte que as palavras tão ebriamente sinceras e admiradas de João mal encontravam espaço para sair da boca e encontrar sons. Ele agradecia, de todo o coração, e pedia desculpas pelo estado em que se encontrava. Dizia, ainda, assim:

Nós só temos um ao outro. Vai ser sempre assim.

A culpa de Pedro fez com que ele olhasse muito mais as árvores e os postes naquela madrugada, enquanto percorria o caminho para seu apartamento. A culpa fez com que ele engolisse um choro que não valeria de nada. Engolir lágrimas que borram, ao invés de apagar. A culpa fez ele não pregar os olhos e pedir cinco vezes um expresso duplo no dia seguinte de trabalho. A culpa o fez pegar o restante das coisas de Marília de uma vez só. No entanto, dessa vez, o objeto de desejo não foi a bunda. Bastaram os olhos dela para que se revelasse, ali, uma paixão há anos velada.

Marília sofria, cronicamente, pelo desejo de algo maior. Os olhos bem mais além do que podem alcançar. João ela realmente quis. Pedro não, então foi mais fácil olhar por detrás e além dele. Ela fez isso, na verdade, desde o primeiro embaralhamento dos dois. As outras vezes, mais que dúzia, foram só porque sempre lhe agradaram as faíscas entre peles que diferem de temperatura.

Pedro, não sei como e nem porque, imaginou que dali viria algo a mais. E quando se deu conta de que isso não aconteceria, dormiu embriagado e sozinho por noites e mais noites. E ainda repetia, como se orasse pedindo por algum tipo de perdão:

E não é esse o bem mais precioso do homem, meu irmão, a solidão?

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Amores, passados passarão...

Sweetheart, what have you done to us?
I turned my back and you turned to dust.
What have you done?

A maneira como aconteceu não estava em meus planos. Ainda não está. Você esperava que eu fizesse o que? Me abaixasse e saísse rolando pelas ruas da cidade só para tentar desviar? Preste atenção no "tentar", porque essas coisas acontecem mais rápido do que a maneira que nossa imaginação tende a visualizar. A gente só tem ideia da rapidez bem depois, quando consegue até, mais ou menos, identificar o momento exato. Além disso, eu não pude prever. E nem teria como. Eu estava vagando como sempre vaguei.

Conheci
outra
pessoa
e ela me
reconheceu
quando nem eu
me reconhecia...

Pare de repetir. Não se torture me torturando. Eu não quis tornar as palavras mais duras do que devem ser. Nem quis dar a entender que foi uma escolha. Certas coisas a gente, simplesmente, não escolhe! Elas acontecem, como aconteceu entre eu e você e, antes, com outros. Eu não encontrei, e nem precisava de nenhuma outra maneira para te contar uma coisa dessas. Você esperava mesmo que eu te explicasse como esses encontros se dão? Não preciso me justificar, mas se os tempos fossem outros e eu ainda lesse Shakespeare para as aulas de teatro, eu saciaria essa sua necessidade de dramatizar as coisas e diria:

Apunhalou-me pelas costas
e disse:
é o amor, cheguei.


Pelas costas! Satisfeita? Na calada de uma noite ou de um dia, ou mesmo acuado pelo barulho dos trens lá no Baixo. Veio por entre sombras que eu não vi! Ah, se eu te contasse assim, desta maneira encenada, no momento seguinte, ou você estaria engolindo o choro e me chamando de todos os nomes ou se afogando em prantos e me pedindo para ficar. Agora você só fica aí parada me olhando, meio morta e meio desesperada. Não é uma corrida, mas se sua agonia é de não ter nos deixado antes - como seus olhos insistem em me dizer -, eu poderia ter te dado imaginários dez minutos de vantagem. Você também já vagava por aí, então não há culpa! Entenda, eu posso ficar. É minha livre escolha. Estamos falando do meu próprio direito de ir e vir e sobre o lugar onde isso te toca. Esse pequeno espaço, se duvidar, menor que um dedo, onde minha vida coincidiu e ainda coincide, com a sua. O que você quer? O que você espera de mim, do mundo?


Não estou esperando alguém chegar montado em um cavalo me dizendo palavras de amor. De um amor que eu ainda não sinto. Eu não preciso dramatizar. Pareço morta porque só percebi, agora, que tinha te matado antes. Não quero, nunca quis, que alguém me convença de que realmente existe eternidade. Não vou precisar, daqui para frente, de chuva de pétalas, nem de ser mimada com presentes caros. Eu só queria sentir como é ser prioridade na vida de alguém. E agora eu só quero ir embora. Agora, depois que senti isso até o fim - que não assisti chegar. Eu tapei meus olhos e agora desejei ter te impedido de abrir os seus. Eu só quero ir embora de você...digo, eu quero ir embora esperando que você se vá de mim também. Seu corpo parece enterrado no meu. Desacordado debaixo da minha pele. E agora?

E agora eu te desejo. Uns mesmos desejos comuns a nós dois. Mas nenhum desejo pequeno. Nada do que é esperado. Que saibamos amar. Apenas isso. Neste e nos próximos anos, nos próximos pedidos, promessas. Porque amar é como aprender a andar de bicicleta: às vezes precisamos deixar de lado por um tempo, mas ninguém desaprende e ninguém nunca esquece.

domingo, 11 de agosto de 2013

Se (eu) vim e se (alguém) virá

Quando fomos confusão:

Já era madrugada
quando dois corpos
gelados
fizeram 
calor,
do atrito da 
manta
com a pele
com as peles.
Do atrito
que dois corpos
causam
quando anseiam
por se tornar
um.
Um corpo só.
Em corpo
e alma.
Sem que haja calma:
o calor que
vem do atrito
é fruto
é folha
é em carne-viva.
Carne que revive
sem esperar
renasce
do pó
rebenta
que nem mar
regenera
em pele
em osso
em alma.
O calor
vem do atrito
afoito
fugaz
agressivo
que transborda
e remenda
o corpo
a alma
com coração
ou não.
O frio
some
quando
e qual
qualquer alma
descobrir
cobrir
redescobrir
recobrir
um corpo
além
do seu.


Quando fomos ausência:

Do passado, um apartamento quase completamente esvaziado, o último mês de aluguel a pagar, um velho álbum de fotos, um rolo de barbante esquecido em uma das gavetas da cozinha, a maçaneta enferrujada da porta da sala, a falta sua que fiz minha e um poema que subiu no muro:

Se provavelmente,
e se prováveis fossem,
todas
as coisas
que não são
e todas as outras
coisas
que se são
não se sabe,
não se sonharia tanto,
não se seria tanto.
E eu não enrolaria
tanto mais
para dizer
o que eu te digo
sem nem saber
(se quem diz sou eu
ou você)


Quando fizemos confusão:

Quando sinto
sua falta:
quando sentir 
a sua falta
te transforma
em presença,
eu me ausento.
Eu me desfaço.
Diluo.
Eu me despeço
do que,
ao meu redor,
gira.
Eu rodopio
enquanto tento
te encontrar
enquanto tento
te fugir.
Me encontrar
e fugir de ti.
Te encontrar
sem que esteja
mais aqui.
Necessidades
inúteis.
Eu me rendo:
mesmo quando se foi,
você nunca
saiu
de mim.


Quando fizemos ausência:

A vaga vazia na garagem.
A caixa amassada com farelos de cereal.
Cafeteira sem filtro.
Marcas de pneu circulando a esquina.
Duzentos e setenta e três dias riscados no calendário.
Porta incenso sem portá-lo.
Cama de lençóis brancos
frios
amarrrotados
e sozinhos.
Por que
lhe escrevo
sobre a ausência?
Porque ela quem lhe impede
de estar presente
aqui para ler.


Quando fomos interrogação:

Duas horas da madrugada
e o teu cheiro
e a tua respiração
e o teu calor
e o teu suor
e a tua
minha
falta
e a nossa
minha
saudade
vontade
de te tornar
realidade.
É quando olho
para o lado
para o espelho
para o retrato
para o fato
de que nunca te conheci
e de que
ainda assim
te abraço.
Não choro
te aceito,
imaginário,
e nem assim
te desfaço.
É quando olho
para o mundo
É quando tomo
conhecimento
de nossa
absoluta
solidão.
A partir daí
decido
se te crio
se te amo
ou se não.


Quando fomos ponto:

Saudade do seu cheiro.
Saudade do jeito
como dança.
Saudade até
de como você
me empurra
me deixa cair
e nunca me alcança.
Aliás,
esquece.
Te esqueço.
Amor:
embora sintamos
como,
não é coisa de criança


Quando fui esperança:

Eu quero um amor
bem assim:
que faça os outros
quererem
o amor
também
(tão bem).


Quando fui lembrança:

Sobre o amor,
aprendi duas coisas:
a amar muito
e a amar muito mais
quando muito já
parecer
pouco


Quando deixei ir:

Foi bom
e foi lindo
desejei eterno
e foi suave
então pesou
e revelou-se findo.
Finalmente,
te esqueci.
Antes tarde
do que nunca.
O precisar esquecer
é um relembrar
imediato.
Mas se antes arde,
depois nunca.