quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A lição morte que a vida ajuda a trazer

Acorda no mesmo horário todos os dias. Faça sol, faça chuva. Ou ainda que não tenha que fazer coisa alguma, ainda que tenha programadas somente as horas ociosas de recesso ou feriado, nunca levanta depois das cinco e meia. Senta-se na beira da cama, virado para o espelho, e bebe o copo d'água que, toda noite, coloca para dormir ao seu lado, sobre um exemplar do Almanaque Abril de 1981.

Em 1980, trabalhou na revisão de texto do Almanaque de 1981, dedicou uma porção desumana de horas do seu ano nisso. Em ler, reler, ler, reler, revisar para, por fim, ter seu nome composto e seu único sobrenome impressos em Arial Black número oito. A importância de ler-se ali é, para ele, inefável, indizível. Através dos olhos alheios, passa invisível, imperceptível, quase como uma brisa fria em quarenta graus de Rio de Janeiro, no mês de fevereiro, em plena orla de Ipanema. Digamos, cruamente, que sua existência só passou a fazer sentido para si mesmo, quando se viu impresso ali. Uma dessas realizações pessoais que não podem ser transmitidas verbalmente.

Depois que esvazia o copo, calça as duas chinelas de uma mesma vez. Seu avô, quando era pequeno, lhe disse que nada nunca superaria o levantar com os dois pés nos chão. Terminou acrescentando que "isso de sorte não existe, é coisa de quem tem dinheiro pra pagar para ver e inventar quando o que é visto pelos olhos já não basta mais".

Levanta os braços e se espreguiça, por puro prazer. Logo se alonga com mais disciplina. Nesses minutos, seus ossos e suas cartilagens e seus pinos nos joelhos: todos se manifestam presentes e ressoam pela casa de acústica muito boa.

"A acústica daqui é muito boa", foi a resposta que Marília deu quando ele comprou a casa para os dois em segredo e a levou para conhecer. "Quero construir uma vida aqui contigo", disse ele roxo de tanta timidez, de tanto amor, de tanto desejo - de corpo e futuro. E ela disse assim:

"É,
João,
a acústica
daqui é
muito
boa".

João repete, até hoje, essa frase dessa forma que retratei aqui. Como se as palavras derretessem. Como se cada uma das palavras necessitasse de uma pausa própria. Como se falassem. Como se batessem na velocidade de um coração na véspera de morrer.

"Até hoje" porque a casa foi adquirida em 1981, Marília entrou nela, pela primeira vez, no dia primeiro de janeiro. A casa foi adquirida juntando o salário mensal que João recebia na redação, mais as horas extras da revisão do Almanaque, mais um financiamento na Caixa, mais as economias que a mãe dele havia deixado ao falecer. A casa, com três quartos, dois banheiros, sala de estar, sala de jantar, cozinha americana, área de serviço, jardim, quintal, duas vagas na garagem e mangueiras fazendo sombra, custou a bagatela da vida e todos os prazeres da carne de João. Marília pisou pela última vez naquele piso de madeira laminada no dia vinte e cinco de dezembro daquele mesmo ano. Aproximadamente às dez horas, na manhã de Natal em que completariam dez anos juntos. João, por toda sua inocência e romantismo, levou um ano para deixar de esperá-la na poltrona em frente a porta.

Quando se conheceram, Pedro, irmão de João, disse bem assim:

"Cuidadoquefogodemaisqueima!!!"

E João nunca se esqueceu dessa frase, mesmo depois de quarenta anos. A frase corre, acelera, pula e escorrega lhe dando uma azia que nem reza forte cura. Fica presente por dois ou três dias. E ele ainda a atiça com garrafas de café. Reclama das restrições com que vivem os "solitários". Ou se faz muita comida, bebida, e se joga fora. Ou se faz muito pouco, sem poder repetir ou desejar um pouco mais. Domínio da preguiça sobre o homem. João sempre pensa demais sobre tudo. Se diz assim "solitário", mas não se incomoda ao atribuir a si mesmo essa característica. Acha até bom e, nos encontros de família, ri quando menciona isso em voz alta. Diz que dá sorte com as mulheres. Mas nunca mais amou ninguém. Nenhuma outra depois de Marília. Aquela ali partiu seu coração. Desfez o homem robusto, charmoso, sarcástico, risonho que João era. Ficou um resquício dele, um João mais barbudo, magricelo, grisalho, introspectivo, descrente e, até, sombrio.

Mas ele, ao menos, tirou dos farrapos de seu coração, palavras para bons livros. Publicou mais de vinte. Os de auto-ajuda venderam menos, foram seus primeiros. Publicações alternativas, que nas noites de lançamento, faziam com que ele trocasse autógrafos e exemplares por uns bons tecos de cocaína e umas ou outras trepadas. Nem todas boas, mas sempre viscerais. João só sabia ser se fosse por inteiro. Doava-se em tudo. Família, amigos, trabalho, Marília e aquelas que o faziam lembrar dela.

Depois que repete, quase como oração:

"É,
João,
a acústica
daqui é
muito
boa".

Ele percebe já ter se alongado o suficiente e caminha até o banheiro do corredor, onde se sente mais confortável, e urina em jatos pequenos, levando cerca de dez minutos para esvaziar completamente. João, como todos que envelhecem sãos, consegue diferenciar os prazeres dos desgostos que a idade traz consigo. Urinar por tanto tempo, para ele, é um prazer. Pois morre de medo de, logo, não ter mais controle sobre seu direito de ir e vir urinário. Desde criança, falava a quem fosse assim:

"No dia que não tiver mais controle sobre meu próprio mijo, podem me matar!".

João aprecia as coisas simples da vida. Aprecia até demais. Lava as mãos com sabonete líquido de lavanda, recomendação de Pedro, seu irmão como já mencionado e que, provavelmente, cheira esse cheiro de lavanda molhada desde que nasceu.

Nada mais de muito relevante sobre a ida diária de João ao banheiro. Ele repete os mesmos passos de uma dança lenta e febril. Dia sim, dia não, lava os poucos cinzentos fios de cabelo. Depois escolhe uma roupa que, a cada dia, parece a mesma, e senta-se para o café. Pão francês que Dona Onô deixa todo dia na porta da casa, manteiga com redução de sal e canecas de café puro com canela que dão taquicardia só de contar.

Dona Onô limpou a casa de "Seu João" por muitos anos. Até que ele decidiu que a entediava demais e a mandou embora. Chegou para trabalhar com ele ainda quando menina, beirando seus treze anos. Ficou de 1978, quando João e Marília ainda moravam em uma quitinete no Centro, até 1998. Assistiu João sendo santo, sendo crucificado e João sendo menino sem beira de saia para se esconder. Como arrumou um outro trabalho na mesma rua da casa, continua deixando três pães frescos todos os dias. E acredito, mesmo se trabalhasse do outro lado da cidade, daria o jeito que fosse para que os pães estivessem sempre ali abraçados ao jornal quando João abrisse a porta para ver o nascer do sol. Dona Onô aprendeu com João como acontecia a transição de menina para mulher. Não, não sexualmente, pois Dona Onô, antes de ser Dona, quando era só Onô, já era para ele como uma filha. João a ensinou a falar melhor, pagou seus anos no supletivo e lhe dava roupas sempre que era aniversário e Natal. Hoje Dona Onô nem trabalha mais limpando casa, passando e cozinhando, é gerente da Lanchonete do Bairro, casada e mãe de três filhos. A família vem visitar João uma vez por mês. Nesses dias, ele se sente como se seu nome estivesse impresso em um número tal de Almanaques que desse a soma dos anos de cada um dos membros daquela família.

Depois do café-da-manhã, ele tira um cochilo na mesma poltrona em que esperava Marília, mas agora não sabe o que espera. Não sabe se há mais o que esperar. Tem muito medo da morte, que é sua única certeza. Depois de quase uma hora, acorda e folheia o jornal. Até cochilar outra vez, mais ou menos no caderno de Esportes, que nunca foi seu forte. Recebe uma ligação de Pedro e depois sai para almoçar. Quando não tem nenhuma consulta, volta para casa e se senta a escrivaninha. Está trabalhando em mais um livro, de ficção, campo onde conseguiu seu reconhecimento. Narra histórias de Marílias, essas mulheres que em suas obras, vez em quando, são também homens. Que são esses amores que dilaceram desde o momento em que se concretizam. E essa "concretização", ele argumenta, não acontece perceptível aos olhos, é uma combinação entre os astros e alguns sádicos das dimensões espirituais, ele diz "sei lá, amor é coisa que nos apunhala pelas costas". Quando conta para alguém que é escritor, nunca escapa da:

"Escreve sobre o que?"

João com sua voz serena repete sempre a mesma resposta:

"Sobre o amor, ou qualquer uma dessas coisas que te mata para te ensinar a viver".

5 comentários:

Anônimo disse...

Isso me fez bem.

Julianna Motter disse...

marca de super superacao me _ vi e a muitos ainda continentes urinarios orgulhosamente parabenizo - a . sonia beijos .

Bárbara Gontijo disse...

Gostei muito.
Me deu uma certa melancolia aqui no fundo, essa vida que segue, essa vida cheia de morte, de queda e avante, queda e avante.
No mais, nada como boas escolhas de palavras e saber que não estamos sozinhos nas reflexões do mundo.

Bárbara Gontijo disse...

Ah, outra coisa, contraditória, até: me deu uma
melancolia, um 'puta merda, e as Marílias que nunca se esquecem, e essas vidas que continuam como algo que simplesmente vai passando'; mas ao mesmo tempo, me deu aquele "queria ter vivido isso" que você já me comentou. Vontade de viver algo que me mate um pouco.

Anônimo disse...

essas crõnicas malditas quando bem escritas representam o cotidiano amargo que temos que engolir a seco sem saliva e descendo quente como lava,até escorrer num canto dos olhos uma lágrima doída,domingueira e sentida.André Francisco Gil.