quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A lição vida que a morte ajuda a trazer

Marília me lembra Irene. Alguém a quem se espera ver sorrir. Alguém cujo sorriso é esperado, ansiosamente, leve o tempo que for. Marília também me lembra que há quem nasça para morrer e quem nasça para matar. Ela é a voz que nega a existência de um dia da caça e um outro do caçador.

Ela levanta em um horário diferente todo dia. Em geral, depois das dez. É assim desde criança. Acostumada a dormir já quando a madrugada se arrasta, e a acordar somente quando seu corpo lhe pede. Por isso, estudou no período da tarde durante toda a sua formação escolar.

Quando acorda, fica grunhindo que nem um animalzinho indefeso. Rola de um lado para o outro da cama de casal vazia. Estica as pernas, os braços e sorri.  Marília é o sorriso único que nunca se encerra sendo só um, desencadeia em outros, nos outros. A cama box de casal vazia, com colchão de molas e seis travesseiros - as almofadas são decorativas, ela tira e guarda no armário toda noite, para dormir -, é retrato de sua condição atual, "viúva". Ela odeia esse termo, porque nunca gostou da cor preta. Marília sempre gostou de tons terra e dos tons mais claros das cores. Não deixa que a chamem de viúva pois, imediatamente, já se imagina num vestido preto, de scarpin também preto, juntamente com um chapéu ainda mais escuro, de bordas rendadas.

"Ele nem imagina", ela exclama de vez em quando. Pois ainda lhe perguntam, mesmo com todas as negativas, se entrou, alguma vez, em contato com ele. Parece que associam a morte de seu último marido com um renascimento de João em sua vida. Ela, em sua intimidade, tem a certeza de que João gasta horas, mesmo depois de tantos anos, imaginando que rumo ela tomou. Ela percebeu isso em todos os livros que ele publicou - não deixou de comprar, ler e rabiscar nenhum. Até mesmo nos últimos, já mais emancipados da figura dela.

Marília não se preocupa em pensar em João. Mas por não se preocupar, se assusta toda manhã, depois de grunhir e se esticar, quando lembra dos barulhos emitidos pelos primeiros movimentos matinais do corpo dele. "Desculpa, meu amor, mas foi assim a vida toda", ela lembrava dele se desculpando quando os estalos a acordavam. "João parecia ter nascido já todo quebrado. Parecia ter vindo ao mundo em partes e, por isso, precisava se reencaixar todo dia. Eu nunca sabia com que tipo de João encontraria ao me levantar e caminhar até a sala". Foi tudo o que falou dele para Antônio, seu falecido. Antônio se deu por satisfeito e nunca mais perguntou nada. "João" se tornou um termo de cor preta para Marília, portanto nunca mais fora, por ela, mencionado.

Ela não toma café desde aquela manhã de Natal em que deixou a casa de João - digo assim, pois nunca sentiu a casa como sua. Mas todo dia, faça sol, faça chuva, ou faça coisa alguma, Marília ainda lembra do cheiro que vinha da cozinha americana e dominava os três quartos, dois banheiros, sala de estar, sala de jantar, área de serviço, jardim, quintal, duas vagas na garagem e a sombra das mangueiras daquela casa. Toda manhã acorda com o cheiro do café de Onôzinha impregnado nos seus poucos pêlos do nariz. Quase viaja no tempo, mas antes de sentir saudades, senta na beirada da cama e coloca os dois pés no chão, como João disse que seu avô lhe dizia.

Caminha até o banheiro, onde gasta metade da manhã passando todos os cremes anti-idade que pôde encontrar em suas viagens pelo mundo. Ela relembra que com João as viagens nunca passaram do litoral nordestino ou do interior paulista. Relembra também que o conheceu recém-chegado de um mochilão pela América do Sul. Os ombros largos e a barba avermelhada secundários por detrás de seus olhos azulados e cheios de sonhos e sono. A voz rouca de tanto fumar, contando como precisou enrolar no portunhol para conseguir começar a trocar poemas por comida.

Marília se apaixonou por aquele João. Que depois do dia em que se conheceram, não aquietava até, no meio da noite, pular a janela de seu quarto na residência de estudantes. Que não aquietava até se enfiar em sua cama, molhando os lençóis de um suor febril. Que toda noite rasgava sua calcinha enquanto lhe mordiscava dos pés a cabeça. João que lhe lambia do corpo a alma.

Namoraram e se enrolaram e se enroscaram assim por quase cinco anos. Depois que se formaram, em 1975, foram morar juntos numa quitinete no Centro. As coisas a serem feitas dentro e fora de casa foram substituindo as horas de amor pelas horas de sono. Foi pela procura de um equilíbrio que, em 1978, levaram Onô para trabalhar com eles. De início, Marília foi mais onça que mulher. Logo constatou, mais uma vez, que João era completamente dela. João foi sendo assim até o o fim dos dois - depois continuou sendo sem que ela soubesse com certeza -, mas era o João completamente de Marília sendo um outro João do mundo. Menos preocupado com os sonhos e mais angustiado com o acúmulo de contas ao fim de cada mês. Um João que chegava cada vez mais com menos flores e poemas. João que sempre trazia, consigo, seu próprio peso e algum outro e, vez ou outra, alguns kilogramas de alegria.

Quando entrou na casa, no dia primeiro de janeiro de 1981, Marília constatou, imediatamente, que não pertencia ao João a quem dava as mãos naquele momento. Suas mãos permaneciam na busca por aquele João que pulava janelas para fazê-la gozar - fosse de amor ou alegria, ou da fusão que ela, naquele momento, já quase se esquecia. 

Marília queria morrer de amor e matar. Queria viver de amor do nascer ao pôr - do sol ou dos amores. Esgotar o amor e se esgotar nele.

Em Antônio não encontrou o que buscava. E nem matou a sede que lhe matava. Mas soube amar aquele homem que não mudaria tanto mais com os anos. Que nunca se tornaria monótono ou tedioso, isso porque nunca iria se mostrar para ela como sendo o contrário. Não deixaria de pular as janelas atrás dela. Não a carregaria no colo, nem nas costas. Não lhe tiraria a concentração da ordem dos cremes anti-idade anos e anos depois.

2 comentários:

Julianna Motter disse...

julianna nao sei se pelo fato de marilia vir costela sombra de joao ficou menor contudo bom conhece la beijos tia velha sonia

Giselle disse...

A parte Capitu que nunca vejo por ai!
O legal e que quando li a "versao Joao" tinha uma Marilia!Agora tenho outra Marilia e outro Joao.