terça-feira, 13 de agosto de 2013

A lição morta da vida

Pedro enrabou Marília mais de uma dúzia de vezes depois que ela deixou João, seu irmão. A imagem e o desejo por ela ficaram impregnados nele desde o domingo de Páscoa de 1972, quando viu, no quarto de empregada, a bunda nua, pálida, precoce, de Marília repetindo um movimento de ir e voltar - para nada longe - do colo de João. Que não imagina e nem nunca poderia imaginar.

Pedro disse a Marília que poderia ajudá-la com a mudança. Ele já tinha consultado João, que disse não se importar, já que ela não conhecia mais muita gente na cidade, seria muito gentil da parte dele ajudar. Ele poderia entrar e sair na casa do irmão o número de vezes necessárias para retirar tudo o que era dela. Pedro contava com um número três vezes maior de visitas até conseguir carregar consigo o que realmente desejava. Mas não conseguiu se conter, e quando foi entregar a primeira remessa de roupas e tralhas, fez manobras circenses para, enfim, segurar entre as mãos a bunda de Marília. A carregou pelos dois quartos do apartamento alugado, conheceu o banheiro social, o de serviço, a sala e a cozinha. Faltou a varanda e a área de serviço, mas entre tralhas e roupas - e entre o capricho de tirá-las e permanecer sem elas -, não tiveram tempo para um tour completo. João ligou sedento por uma cerveja, "no Bar do Sujinho, só porque Marília odiava que eu fosse lá. Odiava que eu frequentasse lugar de puta, odiava que eu não fosse odiado, mas o contrário, por outras mulheres. Eu quero beber e trepar até gozar o necessário pra cuspí-la de mim". João gritava para além do telefone. Nessa hora, Pedro ficou do tamanho de uma bola de gude, miúdo de tanta culpa, e Marília engasgou tentando conter suas risadas.

Pedro se vestiu mais que rápido, enquanto Marília permaneceu pelo chão, sem parecer estar sentindo desespero, nem medo, nem nada. Rindo, mas não tanto. Sem saber, exatamente, o que sentia, Marília continuou arreganhada no chão, enquanto Pedro desceu os sete andares pela escada e saiu acelerando o carro.

Ao encontrar João, sozinho, de olhos arregalados, numa das mesas, teve a certeza de que não conseguiria manter segredo. Estava arrependido. Queria morrer. Aliás, queria matar Marília, matar a memória da bunda dela, indo e voltando para seu irmão. Mais ainda, queria matar a lembrança de Marília inteira roçando em seu corpo, há dez minutos atrás. Em seu corpo ainda quente da presença, feita ausência, dela.

A tarde se fez noite, antes, fez da presença ausência, fez da companhia um castigo insuportável, dos minutos e dos chopps intermináveis. Pedro não disfarçava a agonia, mas João estava tão longe que não percebia. João estava tão em Marília que ele e Pedro dividiam a mesma sensação de corpo quente que se ausenta e se assusta com a brisa fria que invade pela janela.

Em algum momento da madrugada, quando os garçons já recolhiam os vidros de pimenta e os porta-guardanapos, João se cansou, quis deixar o carro pela rua e pediu a Pedro que o deixasse em casa. Ao descer do carro, os olhos de João se encheram de lágrimas.

Vou dormir e acordar sozinho. Não sei nem por quanto tempo. Sozinho e solitário e sem previsão. É...e será se não é esse o bem mais precioso do homem, meu irmão, a solidão?

E suas lágrimas se encheram de Marílias. Que do outro lado, estavam cheias do João e vazias de Pedros. Cheias destes mesmos frágeis amores e sedentas por novos aquecidos desamores. Trocaram um abraço de irmãos. E depois, João puxou Pedro para um outro, mais longo, mais forte. Um abraço tão forte que as palavras tão ebriamente sinceras e admiradas de João mal encontravam espaço para sair da boca e encontrar sons. Ele agradecia, de todo o coração, e pedia desculpas pelo estado em que se encontrava. Dizia, ainda, assim:

Nós só temos um ao outro. Vai ser sempre assim.

A culpa de Pedro fez com que ele olhasse muito mais as árvores e os postes naquela madrugada, enquanto percorria o caminho para seu apartamento. A culpa fez com que ele engolisse um choro que não valeria de nada. Engolir lágrimas que borram, ao invés de apagar. A culpa fez ele não pregar os olhos e pedir cinco vezes um expresso duplo no dia seguinte de trabalho. A culpa o fez pegar o restante das coisas de Marília de uma vez só. No entanto, dessa vez, o objeto de desejo não foi a bunda. Bastaram os olhos dela para que se revelasse, ali, uma paixão há anos velada.

Marília sofria, cronicamente, pelo desejo de algo maior. Os olhos bem mais além do que podem alcançar. João ela realmente quis. Pedro não, então foi mais fácil olhar por detrás e além dele. Ela fez isso, na verdade, desde o primeiro embaralhamento dos dois. As outras vezes, mais que dúzia, foram só porque sempre lhe agradaram as faíscas entre peles que diferem de temperatura.

Pedro, não sei como e nem porque, imaginou que dali viria algo a mais. E quando se deu conta de que isso não aconteceria, dormiu embriagado e sozinho por noites e mais noites. E ainda repetia, como se orasse pedindo por algum tipo de perdão:

E não é esse o bem mais precioso do homem, meu irmão, a solidão?

Um comentário:

Anônimo disse...

Quero falar sobre coisas que eu não sei. Quando isso começou?
Lembro de algumas coisas ainda no final de 2008 ou já começo de 2009, mas as memórias se fixaram a partir da segunda metade de 2009.
Não sei por que quero te contar isso, poder parecer um pouco doente ou tolo, mas hoje eu entendi parte disso tudo. A famosa necessidade de entender, que ignorei durantes esses anos, hoje apareceu como uma resposta que eu não procurava.
Ao entrar no seu blog para ler o que eu tinha deixado atrasar por estar sem tempo, me emocionei e passei algum tempo lendo até coisas que eu já tinha lido. Mas só hoje eu parei pra pensar que foi o seu texto que me marcou até então eu sempre achei que era apaixonada por você, já tentei falar com você, mas não conseguia, era algo engraçado, sempre fui pra frente na vida, nunca tive muitas vergonhas e muito menos perdia chances de me jogar na vida.
Bom eu não tenho muitas habilidades para escrever, mas eu queria te contar que hoje eu descobri que eu gosto de poesia, ou conto, ou crônica, ou verso, prosa, gosto, nem sei a diferença na verdade. Eu cresci lendo quadrinhos e leio até hoje, não sabia e dizia que não gostava de poesia.
Quando me emocionei, lembrei de um dos primeiros textos que eu li, comecei a pensar que não tinha como não gostar de uma coisa que fiz durante anos, mas sempre ignorando, pois eu gostava de quadrinhos, e nessa de gostar de quadrinhos passei a gostar de você, era mais fácil gostar de você do que gostar de poesia e ficou assim.
Vários dos meus amigos sabem que eu sou doida com você e que eu gosto de quadrinhos, eu menti pra mim e pros meus amigos, eu nem sabia que era mentira e queria te falar a verdade. Eu gosto do que você escreve, mas não sabia como lidar com algo que eu nunca gostei e que nem mesmo tinha forma de quadrinhos era mais fácil falar que eu gostava da pessoa que escrevia, e você facilitou, sendo linda.
Sei que é um pouco confuso, mas a confusão entre gostar de você, não gostar de poesia e gostar de quadrinhos desapareceu hoje, quando lembrei que comecei a me interessar por você por causa do seu blog, sempre foi o que você escreveu. E agora eu posso finalmente dizer que quando eu achava que era apaixonada por você eu de fato era e sou apaixonada, mas pelo você que leio todos os dias durante todo esse tempo.
Desconheço como pessoa, tirando o acesso que tenho a partir de redes sociais e hoje me vi separando o meu gostar de você e o gostar do que você escreve e anseio para amanhã ou depois, me apaixonar de novo pelo todo que inventei, decifrei e já sinto falta