sábado, 31 de julho de 2010

Devaneio.

A gente ia. A gente voltava. A gente ria. A gente ria. A gente ria. A gente foi. A gente esqueceu. Esse esquecimento me incomoda, como me incomodava a sua mania de falar sempre sussurrando, e de me deixar vagar solto por aí. Acho que, na verdade, tudo me incomoda um pouco. Se é sol demais, se é chuva forte, se a sombra me esfria, se você vem, se você deixa de vir. Acho que é isso: nada me satisfaz. Nada me deixa feliz - ou menos triste. Nada dura, tudo se esvai. Antes, ou depois, impossível uma estadia no meio-termo. Aliás, o que é ele afinal? Quando dois corpos se encostam, eles nem mesmo se encostam. Há um microscópico espaço entre eles. Não sei, você sabe...ando assim, tão confuso, tão aos prantos. Parece que tudo foi embora, mas eu e você, eu e você ainda estamos aqui. Eu acho.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Sono Profundo.

Andava pelo cinzento da noite, de língua acesa e cigarro afiado. Um par de botinas empoeiradas, solidão pendurada nas costas. Esbarrei-me nela enquanto confundia-me com os passos. Encontrei-a meio acidentada, atropelada, ainda com marcas de pneus - cantaram, como cantaram -, e roxos nas canelas pálidas. Tinha um quê de figura conhecida do passado, com seus cachos caídos nos ombros e seus olhos molhados. Pareceu-me muito com algo que eu havia deixado para trás, mas não pude entender o quê. Achei ter encontrado uma companhia para trocar uma idéia, mas mesmo estando efusivo, ela permanecia calada. Tentei resgatar nas pilhas da lembrança, mas seu rosto era-me estranho, com cheiro de carro novo, de livro a ser folheado, lido, picotado. Quando perguntei como estava, quase deixou escapar uma palavra, mas esta saiu dos olhos: lágrima. Logo soube, era aquilo mesmo que ela lembrava. Empresto-te o ombro, a cama, a coragem. Como pude não reconhecer...não foi a primeira vez em que, no desespero, eu esbarrava. Achei, então, tê-la encontrado por estar destinado a isso: a querer ser o herói de alguém de novo. Ainda que não julgasse-me capaz, e que estivesse esgotado. Quando encontrei-a foi quando reabri os olhos, como se acabasse de nascer, e estivesse vendo o mundo de novo, um novo - suponho, pois não lembrava-me da sensação de vê-lo pela primeira vez. Se eu nunca a tivesse visto, eu nunca teria acordado?

terça-feira, 27 de julho de 2010

Extenso.

Talvez sejam as horas, ou o maço vazio, ou a lâmpada intermitente do abajur. É, talvez sejam as horas mesmo. Estive a pensar - e até agora estou nisso. Estive a sentir - e como, e tanto, e como quis parar, mas não pude, e não quis, e não quero, que engano. Pilhas e pilhas aquecem esse quarto. Meus livros, relatórios, cartas - de amor e suicídio, de amor-suicida, dos dois que acabam, no fim, dando na mesma. Lá fora, disseram, está frio, e ainda é tarde. Consigo ver um feixe de luz, mas tenho dúvidas de que ainda faça - ou haja - sol. Não sei por quanto tempo estou aqui, não sei se estive aqui há dez minutos atrás - enquanto estava sentado nessa mesma cadeira. O que eu sei...sei que aqui você não esteve, não nesse lugar que acabei por construir. Há tristeza e há poeira e, ainda, a possibilidade de sentir alguma umidade no ar. Gotas, pequenas gotas que deixei cair, e que agora procuram uma forma de escapar, sublimar, sublinhar todas as palavras que escrevi nas paredes: volta, e logo, e quero, e sempre, e amo, e preciso, e...enlouqueci. E se há solução - salina ainda -, é a volta. Voltem as gotas para os olhos, o pulso para o coração: volta para mim.
(Perdão)

terça-feira, 20 de julho de 2010

Invisível.

Você é linda, linda, linda, linda...era isso que ela queria que eu dissesse. Era isso que eu bem queria dizer. Mas ao invés disso, mantinha-me calado, com o olhar vidrado no invisível - aos corações pobres e banais -, enquanto ela esperava e puxava os pêlos de meu cavanhaque. Enquanto ela descompreendia aquela minha quietude, e direcionava o olhar para o mesmo lugar em que se encontrava o meu. Bem, se ela enxergasse...se ela enxergasse aí seria certo. Tá vendo ali, minha pequena? É ali que está esse amor, todo nosso. Bem ali, sem que possamos tocar com a ponta de nossos dedos ou colocar em um retrato, levantando a saia com o vento, e se sujando nas poças d'água. Invísivel, quase, e portanto, tão delicado. Esse amor transparente que nos reflete do outro lado. Se ela conseguisse enxergar...ah, cuide bem dele, eu diria. Pois dói, e de um tanto que...você é linda, linda, linda, feche os olhos, talvez assim você entenda.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Casualidade.

Licença (vírgula) boa tarde (vírgula) será se você poderia me passar o açúcar (medo) Que olhos bonitos, que sorriso claro! Sei que pareço louco (pensamento alto) e sei que talvez eu seja, mas precisei vir até aqui. Açúcar (estranhamento) Eu pedi açúcar (espantamento) Não, deixe pra lá, quer dizer, já que você trouxe, por quê não? Ah, droga, esqueci, sou diabético, não queria te dar trabalho. Mas então, como eu estava dizendo, você é bem bela. Bem bela, e quando eu digo: bem, é porque é bem mesmo. Tipo de uma forma que nunca vi - e olha que nem sou míope. E é por isso, por isso precisei vir aqui. É, só para te dizer, para puxar conversa. Mas olha, não me entenda mal, por favor, não vim aqui para tentar te levar para a cama, quero dizer, não seria de todo ruim, né (tapa na cara) E não que eu não queira (tapa na cara) Não que eu não tenha pensado nisso (tapa na cara) E essa sua hostilidade (desentendimento) Só estou te elogiando, e querendo te trazer para perto. Desculpa pela sinceridade, do que mesmo estou falando? Eu sequer te conheço...eu não sei seu signo, seu endereço ou sua cor favorita. Mas isso também não importa. Eu só sei que quero passar a vida contigo.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Limpeza.

Acendo um cigarro, peço um café - talvez assim ganhe alguma seriedade. Abro um livro, talvez dois, cruzo as pernas, puxo as mangas da camisa - algodão egípcio, é claro. Encaro-a, insistentemente. E paradoxalmente, cumprimento-a com descaso. Sente-se aqui, às vezes digo, e puxo uma cadeira. Todas as folhas rabiscadas - quero que ela perceba minha intelectualidade. Empurro a fumaça - fracasso, é claro. Mas ela não se importa. Acompanha-me, mas pede um capuccino. Deixa que sua boca se envolva num bigode de espuma - provocação, é claro. Alcanço um guardanapo, antes que, por impulso, a ponta de meu indicador alcance seu rosto. Partilhamos de um silêncio constrangedor, e então ela decifra: queria que ela limpasse a boca na minha.

Monólogo.

Às vezes tem que puxar-se pela gola. Difícil manter-se em si mesmo, eu sei. E também dói um pouco. O quê, né, você deve estar se perguntando...sei lá, isso de limitar-se em dois...dois olhos, dois braços, dois corações. Quer dizer, um. Um e às vezes meio, no meu caso, já que de vez em quando você aparece. Nunca te disse, mas toda vez que nossos corpos se encostam, o meu arde um pouco, e fica avermelhado. É claro, já me queimei várias vezes, lembro-me, quando pequeno, com bolos, então não se preocupe. O único problema é que não és tão doce quanto. Sei lá, né, você sabe...você beija, chuta, abraça, empurra, chora, magoa, sofre, parte. Mas no final das contas só tem duas escolhas: ou se entrega, ou se entrega. Não sei nem o que me deu para estar te falando essas coisas banais. Acho que é a meia-idade chegando, e a solidão se entregando. Estive sempre acostumado a falar assim, sozinho, a falar comigo mesmo. Sei lá, sabe, vai ver é isso, solidão mesmo, daquela que te acompanha e te aninha até na hora de dormir. Solidão adestrada, que só não se finge de morta. Mas aí já seria pedir demais, né? Mas então, o que eu estava te falando: ou se entrega, ou se entrega. E isso é sério, para de achar que não sei de nada e de rir assim. Tudo bem, ou se entrega, ou abre a porta e sai, ou só fecha, depois de sair. Ou sei lá, as escolhas são várias, só te falei isso porque...a tal solidão, né...espera aí, é que...deixa eu te falar, eu quero que você se entregue, é isso, só isso. E eu...te amo, é isso, só. Sozinho. Por que você não me ama de volta?

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Digestão.

Seus lábios amargos, seu cheiro de rosas a murcharem no túmulo. Cheguei até você e disse que amava essa sua funebridade - e esse seu resto todo. Olhou-me de forma estranha, espantada. Feito eu fosse a última coisa viva ainda existente. Entendi, no mesmo momento, que eu vivia ali do lado de fora. Do lado de fora de você. Dentro, dentro eu já estava morto, junto com todo o resto de seu corpo - e espírito, e sentimento, e movimento, e tudo, absolutamente tudo. Cheguei e disse, e ao mesmo tempo beijei-te. Sua boca ardia, levando-me ao mesmo. Ardia-me todo, feito tivesse passado dez dias debaixo do sol - que continuava a queimar-me ainda à noite. Não sei, não, não sei o que foi. Talvez desejo, ou saudade, ou despedida, ou só vontade. Vontade de morder seu pescoço, suas orelhas, ver seus lábios cor-de-morte sangrarem, de arrancar seus olhos - e levá-los comigo. De alguma forma queria colocar-te para dentro. Engolir-te e debruçar meu corpo sobre o seu. Seu corpo frente ao meu já não bastava, nem suas pernas confundindo-se com as minhas, nem seu suor escorrendo no meu, nem minhas mãos cavando seu buraco. Nada naquele momento bastava. Nada saciava minha sede. Melhor, fome. Queria mastigar-te, pedaço por pedaço. Deglutir-te. Como se nunca fosse regurgitar-te. Como se não fosse-me indigesta, intragável, enjoativa. Como se você soubesse que eu amava-te exatamente o suficiente para isso.

domingo, 4 de julho de 2010

Poesis.

Manhã abandonada, silenciosa,
pegue emprestada essa vida cinzenta e fresca.
De muito mais mágoa que felicidade,
leve-a embora.
Abismo-me.
Acidente?
Caio em mim.
Sanidade enfim?

Dual.

- E vocês, como estão?
Juntos, ainda que nossas mãos não mais se encontrem e se encostem. Separados, mesmo com a certeza do para-sempre. E dotados da convicção de que dois corpos nunca ocuparão o mesmo lugar no espaço, ou no tempo, ou num coração.