terça-feira, 5 de abril de 2016

a sensação dela



que uma vez, depois de umas garrafas a mais de vinho, ela soltou o verbo e o sujeito e disse assim, que quando ela encostava nele, no sujeito ele, que ela soltou só para falar, verbalizar, que quando ela encostava nele, os dedos dos pés se contraíam e alguma coisa ia rastejando deles até a última ponta do mais longo fio de cabelo
cabelo meio vermelho meio dourado meio cor de sol, meio cor de nada, até porque ele, ele mesmo, se negava a dizer ou a deixar que alguém dissesse que alguma coisa, que alguma qualquer outra coisa no mundo, se assemelhava a ela
ele dizia assim
- nunca vi coisa tão bonita no mundo
e se prendia nela e se espremia nela e nela se enlaçava feito fosse bicho feito rastejasse feito fosse elástico e não tivesse ossos feito fosse só coração
e nisso, ele um metro e noventa e dois puxados da família do pai emaranhados em um metro e cinquenta e seis estranhos dela que era a mais baixa entre os irmãos, faziam ele parecer tão menor tão frágil tão carente e tão necessariamente dela que dava dó
dava dó porque parecia que quando ele precisava se soltar dela ou quando ela precisava se soltar dele - sim, o enlaçamento era recíproco - parecia que ele ia quebrar se partir ao meio ou em milhares de pedacinhos dele que já eram dela e pedacinhos-coração de quem pensa não precisar de nenhum outro órgão para se sentir vivo
era tão bonito aquele quadro, aquela fotografia colagem pintura, aqueles dois juntos largados na cama no meio da tarde, com o sol batendo nas pontas dos dedos dos pés contraídos dele e dela e os lençóis manchados de água oxigenada cor-terra e as costelas dele sobressalentes e as costelas dela quase arrebentando a pele e aquela cena que parecia calar o barulho das ondas a rebentar na beira do mar e que parecia, também, um quadro do Portinari, porque os dois eram tão terra e avermelhados sujos e cinzentos de sol e de poluição e por causa do sol que refratava na janela e pelo jeito que se deve olhar
um retrato esquálido de um sofrimento a se conjecturar
retrato de uma miséria porque amor é muito muito muito muito muito de um tanto que ainda poder ser mais e mais e mais, mas não é soberba e portanto não pode sobrar e nem desperdiçar, amor tem que ser todo gasto e amor deles vinha contadinho moeda e moeda para se alimentarem os dois até o fim
os dedos dos pés se contraíam, chegava a doer nas canelas de tanta força de tanto músculo que vinha sei lá de onde e ela que se segurava apertando os lábios com os dentes e apertando o que estivesse ao alcance com as mãos suadas e vezes ou outras sujas de areia ou cheirando a alecrim o corpo todo reagindo e a sensanção e a certeza de que alguma coisa ia rastejando da ponta dos dedos dos pés até a última ponta do mais longo fio de cabelo
iam se arrastando, depois, os dias e a vontade de ficar junto e a vontade de ficar colado e a vontade de ficar por cima e por baixo e rolar pela orla da praia não se importando com a temperatura ou com a sujeira do asfalto e do calçadão não se importariam se bateriam de cara em alguém ou num coco abandonado, mas vontade de ir rolando dos prédios a beira-mar até a beira do mar onde se assustariam com a água gelada e o gosto de sal 
e se salgariam e se enrolariam e se sujariam e se adocicariam e seriam doces todos os dias ah! como eram doces os dias desde que haviam se encontrado e se cruzado e cruzado quando, enfim, foi o momento dela de conhecer esse lado da vida que falavam tão bem ao tempo que falavam tão mal e falavam algo sobre ir ou não ao céu, mas que ela por si só gostou e viu estrelas e era dia de céu encoberto e havia também o teto mas mesmo assim ela viu estrelas e permaneceu as vendo por muito tempo tanto tempo que depois já nem se surpreendia mais e passou a notar que o céu era sempre o mesmo e que ela nem o notava mais
e continuavam se arrastando e a vontade de ficar grudado e a vontade de ficar separado um pouco e a vontade de ficar só um pouco e sair um para um lado e um para o outro e iam se arrastando e arrastando também a vontade de ficar e os anos
e ele disse
- não conheço muito bem o mundo

e descobriu que certas coisas perdem a beleza e que certas coisas só tem a beleza que queremos dar a elas e que certas coisas acabam e que outras não