domingo, 20 de fevereiro de 2011

Semântica.

Acordou, olhou para os lados. Meio atordoado por não saber, assim tão cedo, diferenciar a realidade dos pesadelos. Os olhos pregados, as bochechas amassadas, a linha de saliva puxando seu rosto de volta para o travesseiro. Levantou, indiferente ao pé que pôs primeiro no chão. Sentiu a frieza da cerâmica subindo pelos calcanhares, frieza a qual também foi indiferente. Descobriu-se nú. Como havia estado no dia em que chegou ao mundo. Dia, aquele, em que foi abandonado. Contava, com certo heroísmo, que havia sido encontrado boiando no raso do mar. Para que não descobrissem, não logo, que havia nascido numa cidade quase interiorona, no meio, bem no meio, do país. Sem praia e sem heroísmo, levado pelo serviço social, para um lar - que mais parecia um inferno -, onde ficaria por mais três ou quatro anos. Até que seus olhos esverdeados chamassem atenção suficiente para que fosse, finalmente, levado por braços calorosos e amáveis. Muitos anos haviam passado, mas lá estava do mesmo jeito que veio. Nú e abandonado. Largado no mundo recém-descoberto. Feito um recém-nascido, levou uma palmada - desta vez da quina da mesa -, para ver se vivia. E vivia, meio que pelas beiras. Vida percebida pelo choro. Desta vez, sem escândalos e quase sufocamento. Choro sentido todo da pequena dimensão de uma lágrima, que escorreu discretamente pelo canto do olho esquerdo. Revivia, ali, a sensação que havia sentido antes. Mas que não se lembrava, a não ser pelas memórias construídas, as falsas memórias que criamos para dar razão e sentido as coisas. Memória que não lembrada, porém sentida, no vazio que batia em seu peito. Faziam anos desde aquele dia. Anos, também, desde o dia em que aqueles braços amáveis e calorosos, abraçaram uma outra vida, e se foram. Rumo à morte que, como de praxe, não assassina somente quem se vai. Vivia só, desde então. Como era de seu gosto e de sua natureza. Vivia aquela solidão, inerente aos homens. Disfarçável, mas nunca contornável. Fumava, desde os doze anos, como demonstração de revolta. Primeiro, fingindo querer esconder. Depois, no meio da sala de jantar, durante a ceia, assoprando a fumaça no rosto de todos, e rindo, sarcasticamente, daquilo tudo. Que não aceitava, por não ter o mesmo sangue, nem o mesmo nariz, nem a mesma força. Ao se levantar, cambalear, e bater a perna na quina da mesa, parou para acender um cigarro, teria sido cômico se não tivesse queimado parte dos lábios acendendo pelo filtro. Mal conseguia abrir os olhos, mal conseguia tentar reparar nas duas dores - a da perna ferida e a dos lábios ardendo. Já havia aberto mão da terceira - aquela eterna visitante no peito. Não havia como negar, era Domingo e seu estômago doía como se tivesse arrebentado. Sua cabeça doía como se tivesse arrebentado. Estar acordado doía como se nada nunca pudesse ser segurado. Era isso que pensava, desde que presenciou os últimos suspiros em um leito de hospital, o último afago na cabeça, o último calor e o eterno amor daqueles braços de repente tão frios e esvaziados. Pois um dia desejou ser, no outro já não queria mais. Pois um dia jurava pertencer, e no outro já não aguentava mais. E vivia oscilando entre a rebeldia e a gratidão. Entre o amor materno e a insatisfação de não saber de quem havia saído. Ali, pertencia, descobriu. Pouco depois de descobrir que tudo se vai. Como já sabia, mas ignorava. Doeu, como finas lâminas rasgando as costas e arrebentando a coluna. Antes, sabendo ser tão só. E subitamente percebendo sua solitude. Seu impulso depressivo de se querer assim. Pela pobre escolha de não se entregar. Eram muitos os cortes, que nunca viu crescer. Mas que deixou que o tomassem, e o tornassem repulsivo. Difícil se aceitar tão medíocre. Acendeu mais outro três cigarros para disfarçar o erro do filtro. Olhou para os lados, ainda com os olhos pregados. E, pelo canto, viu um corpo repousando, também nú, na mesma cama da qual havia saído. Soube-se acompanhado sem perceber. Não tinha olhos para nada mais. Vivia naquilo de achar que ordenava as rotações dos planetas. A vida nos revela para nós mesmos das maneiras mais humilhantes. Caçou uma roupa, uma entre todas dispostas ao chão. Beijou aquele corpo do qual não se lembrava, e nunca mais se lembraria. Percebeu que aquele apartamento, com dois quartos e paredes coloridas, com fotos e longas estantes, não era o mesmo em que morava. E se era, havia perdido a memória. Dormido e acordado sendo outro. Sem saber se era realidade ou pesadelo. Talvez sonho, com um olhar menos violentador, reparando no sono angelical refletido no rosto, nos lábios, nos cílios, daquele corpo. Sem saber se havia acordado, sem saber se havia se encontrado ou, mais outra vez, se perdido. Sem saber quem era, e se tudo aquilo que contou era verdade. Se contou aquilo tudo em um sonho, e nasceu de calorosos e amáveis braços que nunca o abandonaram. Sem saber se realmente conhecia a dor de uma morte, a palidez de um corpo cuja alma foi levada. Sem saber se era o que era. Quem era, sem saber. Na dúvida de que aquele corpo pudesse ser parte do corpo dele. Confuso, por não saber cuidar de nada, nem ninguém. E pensando que, aquele vazio, era, inesperadamente, uma alucinação. E aquilo tudo era dele: o corpo, a paz angelical, o sono, a confusão. Talvez se voltasse a dormir, talvez acordasse sabendo de tudo. Ou novamente sem saber de nada. Passavam das seis da tarde, e nunca havia dormido tanto. Se havia, não sabia, não se lembrava. E nada entendia. Vestiu a roupa e caminhou até a porta. Ouviu um barulho vindo do quarto. E, por impulso, rodou a chave, girou a maçaneta e saiu. Cambaleando, descendo as escadas. Dando de cara com a rua, que não era tão familiar. Caminhou, caminhou, caminhou. E viu umas mesas sob a sombra de umas árvores. E lá mesmo se firmou. Era calmo, um lugar neutro, longe daquilo tudo que já não sabia mais. Bebeu, bebeu, bebeu, e numa tentativa - falha -, nada de amor. Chegou a achar que amor não existia. Que o inventou quando embriagado. Só pegou a palavra emprestada. Mesma palavra que era usada para definir a soma de um desconforto estomacal à uma indisposição física. E naquela confusão semântica e sentimental, achou que fosse algo a mais. Amor é só indigestão. Pensou, sem saber porque pensava naquilo tudo.

2 comentários:

Danubya Medeiros. disse...

Muito bom o texto.Acho belo como você consegue agigantar o sentido das coisas, pela maneira como escreve sobre elas,como as conta e pelos detalhes que parecem dar vida ao que a gente lê.
Beijo!

Julianna Motter disse...

Muito, muito obrigada!