quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O não-texto sobre o envelhecer

Tudo o que começo, começo pela manhã. Todas as histórias. Traço, entre as linhas, o desejo de que tudo se dê da mesma maneira que se dá um dia: com início, meio e fim. Eu sei que, na verdade, as coisas, ainda que não se queira, são assim: um começo, um desenvolvimento e uma ruptura. O desejo em si é o de poder saber em que momento o sol das coisas bate mais forte, quando haverá sombra e em que momento elas anoitecem. Eu quero ter uma previsão, já que o tempo, enquanto acontece, passa em seu próprio tempo. E não existem chances de enxergar, desde antes, o derradeiro minuto final.
Dessa vez, começo de noite, no meio da tarde, na hora do chá ou de um café, em plena madrugada, ou à parte dos períodos do dia. Começo, aqui e agora, uma história sem hora. Agora que já não existe. Pois é uma história sem tempo e que, sem avisar, eu já comecei.
Há tempo. Um tempo onde não cabem números e que se define por "muito", há muito tempo, quando ter energia elétrica era coisa raríssima e muitos dependiam apenas do seu próprio corpo para ter luz, ela vivia na beira do rio.
"Na beira do rio", até hoje ela conta assim, como se só houvesse um rio no Maranhão. Um rio no Brasil inteiro. Como se os Oceanos fossem, aliás, todos um rio só. Como se toda vida desaguasse nesse mesmo rio. E fala desse rio dela, desse rio que ela traz pra quem estiver a seu redor, e se ri, e se põe a rir e sorrir por horas, com a cabeça balançando circularmente, cabeça que vai lá longe, lá para aquele há muito tempo - que, de repente, ali para ela, parece logo ao lado.
Quando moça, ela conta que nadava pelada no rio. Contra a vontade de seus pais. Ela e uma de suas irmãs, a que dentre os seis, veio logo depois dela. Com nome de flor, mas pose de cactus. Magnólia, dos cabelos amarelados que nem algumas de suas irmãs-planta. Elas iam para o rio mesmo que o pai delas deixasse ordens claras para que não saracoteassem por aí. "Saracotear", é assim que ela diz, e se leva um tempo para entender, é o verbo que usa, e que usam todos daquele tempo, para definir o que duas moças fazem ao andar sozinhas pela cidade. Hoje, não poder saracoetar a faz rir, mas naquele tempo, conta, ficava vermelha de raiva. Fazia uma trança no cabelo e assim que seu pai saía de casa, pegava Magnólia pelo braço e lá iam para a beira do rio. Ela diz que cheiro melhor não existe, se existe, nunca sentiu. Cheiro da água cristalina, gelada. Tiravam suas vestes e ficavam nadando por horas, podiam passar dias ali. Depois ficavam um pouco debaixo do sol, se dividindo entre as árvores, se vestiam e voltavam para casa. Vez ou outra davam azar de chegarem depois do pai e enrolavam com alguma mentira. Apanhavam um pouco menos se conseguissem convencê-lo de que estavam em qualquer lugar, menos no rio.
Tutu, como era chamado, que nem a massa feita de farinha e feijão. Tutu, na verdade, havia sido batizado como Manoel, mas com o tempo, era só Tutu, um homem moreno, alto, barrigudo, dos olhos verdes e os cabelos brancos que nem nuvem. Conhecido pela cidade toda como Tutu, o homem dos barcos. Ele trabalhava nas balsas, na manutenção e na navegação. Também construía uns barquinhos, com os quais tirava fotos toda vez que terminava, posava sempre ao lado esquerdo deles, de calças e camisa branca. Falo das fotos porque ela, sempre que fala e ri do rio, alcança uma dessas fotos da bolsa e fica apontando. Diz assim, "vou te mostrar um homem que era osso, olha aqui papai". Ela não se lembra com que idade ele se foi, assim como já não lembra da sua própria idade, mas como decidi que essa seria uma história sem tempo, essas coisas não importam. Ela conta sobre uma outra família que ele tinha, mas muito rapidamente, por não saber quase nada, descobriram depois que ele já estava debaixo da terra. E termina dizendo que tem tanto irmão pelo mundo que nem sabe quanto. "Mais irmão do que o tanto de água que passava pelo rio!".
Sobre a mãe, ela fala um pouco menos, reforçando o papel que a mulher tinha naquele tempo - e não nego, se estende até hoje. O de uma personagem secundária, silenciosa, quase um fantasma. Dona Maria, que amarrava os cabelos das filhas em trança todo dia pela manhã, buscava um peixe no rio para a "mistura", descascava mandioca, que rezava o terço ao acordar, no meio da tarde e antes de dormir. Dona Maria que morreu na cadeira de balanço da casa da filha - a que ainda não dei nome - já aqui, na cidade grande. Morreu feito boiasse no rio. Feito molhasse de vida a brisa. Feito pudesse voltar se quisesse. Mas que se pôde, não quis.
O nome dela não é de flor. É Maria, como sua mãe e que, embora para ela tenha sido, não era flor para os outros. Digo, certamente para alguns, mas não todos, mais gente concordaria das pétalas que viviam transparentes, imaginárias, em volta da existência dela. Maria, mas que chamam de Tita. E ela não lembra o motivo. 
Tita era menina do rio, sempre vai ser, e mesmo tendo saído antes que crescesse ao ponto da água bater logo abaixo de seus seios, nunca se acostumou com os outros lugares em que viveu. Ainda via o mundo batendo forte com pernas e braços para que o rio batesse, ao menos, abaixo de seus lábios. Ainda via o mundo meio embaçado, da água que entrava nos olhos quando se cansava e afundava um pouco. Ainda procurava o cheiro do peixe fresco e o gosto da farinha. Ainda atrás do sol para se secar antes de voltar para casa. 
A história de Tita, uma história sem tempo, que se repete pelos apartamentos. Zona Sul ou Norte. Asa Sul ou Norte. Rio de Janeiro. São Paulo. Curitiba. Brasília. Uns rostos com histórias escritas. De umas Titas que não lembram se já tomaram banho hoje. Que esqueceram a chaleira no fogo. E que não lembram o dia, o mês, o ano. Titas que trocam o nome dos filhos com nomes de outras pessoas "daquele tempo" e que eles nem conhecem. Esquecem do nome dos filhos, se assustam quando eles chegam para visitar aos domingos, por esquecer até que eles já não são mais meninos.
Às vezes, até elas se esquecem que não são mais meninas a saracotear. E tiram a roupa, e saem desembestadas pela porta de seus apartamentos, atrás do rio.

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