terça-feira, 26 de novembro de 2013

Coletâna de fragmentos I - As mulheres

Fragmento I - Marília -

Eu preciso rescrever Marília. De todas as mulheres do mundo, é justamente ela a quem preciso rescrever. E não por acaso. Só ela era ela e só ela seria quem só ela poderia saber. Sabe coisa do além? Pois é, ela ia além disso. Marília tinha aquelas bundas-mãe, aquele tipo de bunda-coração. Olhando a bunda despida, virando a cabeça pra baixo, se via um coração grande, ch
eio, polpudo. Sem contar como era incrível, também, a capacidade que tinha de sempre comportar mais um. Bunda-coração-de-mãe. Cabia sempre mais um. Sob ou sobre ela. Tipo de bunda que atravessa, é travessa e travesseiro.

Eu preciso rescrevê-la porque da primeira vez que a escrevi não consegui relatar com precisão a graça que só Marília tinha. Que só Marília tem. Que só Marília terá. Eu a deixei um pouco para trás. É que ela me atrasa o tempo.

(Marília, meu benzinho, se estiver me lendo agora, saiba que quando te vê, meu relógio biológico toca de um em um segundo o despertador).

Eu a deixei um pouco apagada, como se a escolha das palavras valesse mais que Marília em si.

(Marília, minha nega, se estiver me lendo agora, saiba que, para mim, brilha mais que céu de bêbado quando passa das 19h e ligam os postes de luz).


Ela era assim: para mim, coisa que só ela podia, pôde e poderia ser. E como? Ah, parecia aquela canção de amor saudoso com gosto de caramelo de doce de leite que toca, de repente, na rádio do carro, aliviando a insatisfação de estar preso por 3h em um engarrafamento, em um dia de chuva torrencial. Não sei o significado exato que isso tem. Mas Marília era assim para mim, significativamente sem significado. Dessa forma, ela me vinha: temporal que cai sem avisar no meio de uma tarde de segunda-feira e muda toda a sua semana. Ela me deixava sem reação, e sem saber se fugia, se me escondia ou se ficava: me molhava. Eu me encharcava todo dela. Era estranho, que eu olhava Marília e, por isso, olhava mar e ia.

Olhava Marília. Olhava mar e lia, imagine. Imagine que era feito pudesse ler o que as ondas escrevem na praia. Ondas sim contam histórias, e por isso, livros são apenas bobagens. O mar, o mar todo, cada movimento dele é uma frase. E eu olhava Marília e sabia. Sabia dos afogados e que, logo logo, me afogaria. Marília era aceitar nadar por horas para depois morrer na praia.

Ou não era nada disso. Mas uma coisa eu sei, aquela bunda...aquela bunda-coração dela desbundou meu coração.


Fragmento II - das outras mulheres -

Ela me olha. E não sei por qual motivo me olha tanto. Mas me olha. Toda vez que me vê, fica de longe me olhando. Que passem horas, não se importa. Quiçá dias. Se por exemplo, nos encontramos no café que fica logo ali na esquina, ela me acompanha desde o começo, desgrudando o olhar vez ou outra para tomar um gole de seu cappuccino ou tentar se concentrar em umparágrafo do livro que, supostamente, lê. Digo cappuccino assim com tanta certeza porque ela tem cara de quem toma cappuccino, sabe? Eu nunca perguntei, mas ela tem bem cara dessas. Com leite sem lactose, ou de soja. A xícara é sempre muito grande, e não seria um expresso duplo, nem longo, talvez chocolate quente, mas tem cara de quem já superou essa fase, de quem já deixou o chocolate em pó pela canela, e que usa lingeries bordadas, bordô – não consigo visualizar essa cor, mas pelo som, certeza que é essa.

Fica a me olhar com seus cabelos avermelhados caídos nos ombros e não sei nem seu nome. Ela me penetra devagar e é, ao mesmo tempo, um silêncio estranho e uma voz macia cantarolando no pé do ouvido. Só a ouvi falar uma única vez, quando esqueceu seu livro e me levantei correndo para ir atrás e avisá-la: a voz quase não saiu, mas agradeceu timidamente. “Gratidão”, ela disse como quem mastigasse e engolisse cada uma das letras bem rápido para não ter que dividir com ninguém. Era Virginia Woolf, mas eu teria apostado em Jane Austen. “Gratidão”, a única palavra que ouvi dela me desce que nem nuvem quando repito em voz alta. Ela me olha como se fosse leve o suficiente para me atravessar. Não sei o que vê em mim, mas ninguém nunca me olhou assim.

Fragmento III - são muitas as mulheres -

Ela chegou e virou tudo de cabeça para baixo. Quando eu era pequeno, me lembro, uma das coisas que mais gostava era de plantar bananeira. Vivia com calos nas mãos, de vez em quando caía e batia de costas. Mas era uma das minhas coisas favoritas, logo em seguida aos jogos de memória – que disputava com vovô - porque acreditava estar mais próximo do céu. Em dias de céu florido de nuvens, se acertasse o ângulo, meus pés sujos de lama podiam encostar em umas, com muito esforço eu conseguia até segui-las na mesma direção que o vento. Quase sempre escorregava, ou perdia a força nos braços e caía de costas no chão. Às vezes até de cara.

Mas é basicamente isso, ela veio. Em tempos onde nada nunca vinha. Veio e virou tudo de cabeça para baixo e eu tive fôlego para ficar plantado em bananeira, sem nem arriscar cair. Era uma coisa que só ela. Ela era uma coisa que só. Dessas coisas que você pensa que poderiam existir sozinhas, sem mais nada. Não que fosse completa, não era, mas seus vazios, suas ausências, suas rachaduras que lhe davam a leveza tão própria. Ela chegou, sem mais nem menos – como eu disse, ela tinha condições de existir por si só, então quando ela veio a luz do mundo ao redor se apagou por um instante para que somente ela viesse a mim e somente eu a recebesse e somente isso e mais nada, mais nada. Chegou e virou tudo de cabeça para baixo, e a vida daquela forma era muito mais bonita. Muito mais leve, eu pisava nas nuvens com ela e me ardia de sol.

E o mundo assim, com ela, fazia muito mais sentido, porque era muito melhor ter o céu debaixo dos pés. E se sentir infinito. Porque não existia linha do horizonte, horizonte ali era tudo. Fora do alcance dos olhos. Tudo imensidão. Era muito melhor ter o céu debaixo dos pés e nunca mais precisar olhar para cima – só de vez em quando, que de vez em quando eu sentia falta de todo o concreto e da fumaça e dos ônibus lotados e do cheiro de pastel frito com caldo de cana na rodoviária. E de ver as nuvens escorrendo pela cabeça.

Fragmento IV - são muitas, mas tantas, as mulheres -

Eu quero escrever, pai, sobre uma mulher que mudou o mundo, pai. Se não o mundo inteiro, ao menos o meu. Ela inverteu a rotação. Ou parou, indefinidamente. Essa mulher…você sabe, né, pai, espero que você saiba que cada um de nós é um astro um mundo melhor um planeta. Todo um universo! Ela veio assim, sim, todas elas vêm. Mulheres não brotam da terra, nem caem das árvores, eu não sou tolo e ainda as assisto porque não é possível, pai, isso que elas fazem, elas espalham sei lá o que é isso que mulheres têm, mas elas espalham por aí, por esses mundos astros universos, que fazem os dias de sol hipnotizantes e os dias de chuva de sol para serem hipnotizantes da mesma forma. E a melhor parte, pai, é que de vez em quando alguns homens têm a sorte de que uma venha para eles. E ela veio, como veio, veio vindo, assim de fininho, mas arrombando a porta sem nem descascar o esmalte de um dos dedos, sem nem pingar uma gota de suor. Sim, pai, não voltei. Parei, juro, pai, parei com o pó. Não, nunca mais, nem desodorante, pai. Cerveja sim, mas como sem cerveja? Como ser,-veja? Como ser sem ela? Ah, eu já não sei, porque ela se instalou em mim e nem fazia frio, ela se escondeu debaixo da minha pele e de vez em quando levanta meus pelos em calafrio. Ela gosta de silêncio. Eu juro, já faz mais de ano, pai, e nem deus sabe o tanto que suei. Se juro pela minha mãe? Mas ela já tá morta, pai, não acho que vá morrer de novo. Se bem que sei lá, a vida toda é tanta morte que a morte não deve acabar por ser vida não, só cerveja e buzina da alegria, pai, eu juro. Mas nada disso te interessa, eu estava falando dela e você vem e me interrompe e não é alucinação, deus quisesse que fosse e eu não me arderia tanto. Amor arde, pai. Queima o peito. No Carnaval, pai, buzina de alegria só no Carnaval. Sim, e a cerveja. Você pode abrir as gavetas e verificar, não vai encontrar nada, nem pó nem pedra nem nada. Eu sei, pai, você já me disse que quem se mete com essas coisas para de se aproveitar dos melhores prazeres do mundo: nem come e nem fode. E você pode ver, eu tenho comido e me fodido muito. Chega estou mole. Chega estou seco. Mas a vida toda é Carnaval, serpentina som alto cerveja praia sol pele dourada suor gozo gozada essa vida é muito gozada, pai. Você me disse para ser feliz, estou sendo. E tem felicidade maior que pular Carnaval todo dia, pai? Chega estou seco. Chega estou mole. A felicidade, uma hora, cansa. Além disso, perdi uns 10kg. É que lá em casa, desde que ela chegou, não tem mais nem panela. Minha fome só se mata no corpo dela.

Fragmento V - eram muitas as mulheres -

Nós não éramos. Eu era, ela também. Seríamos juntos desde que assim: eu e ela, ou ela e eu. Mas nunca nós. Até tentamos, mas os ossos perto da virilha dela me espetavam a barriga. E ela achava que eu roncava demais. Mas ainda assim, nada me deixava da mesma forma que ela. Que chegava e partia em menos tempo que uma piscada. E nada me deixava como ela – falo da forma como meu corpo ficava. Ele respondia como se tivesse nascido pronto para recebê-la. Como se só ela o pudesse despertar do cansaço da exaustão e do sono da vida quando tudo que ele mais queria era um instantinho de morte. Mas ela me espetava com os ossos a barriga. E achava minha respiração alta demais, mesmo acordado.

A gente tentou. Um pouco mais do que normalmente tentariam. Porque ela gostava muito da minha voz e do meu cheiro. E das palavras que eu escolhia para dizer coisas que ninguém escolheria dizer. Ela me achava meio louco, e eu achava totalmente, mas dessa forma que era bom, que daí a gente nunca se perdia. A gente gostava de sair. A gente gostava muito de assistir a cidade e abordar estranhos para dizer coisas que ninguém diria. A gente gostava de sentar em restaurantes para assistir as pessoas e escrever a história delas em guardanapos.

Ela me achava meio louco e eu era totalmente, mas por ela. Seus ossos me espetavam a barriga, mas era ainda pior, já que seus olhos me espetavam o coração. Eu lembro de uma noite quando saímos, eu e ela, era junho. Festa junina. Nós dois vestidos com o mesmo xadrez, usando umas botas maiores que nossas pernas e uns cintos de fivelas bem chamativas. A gente se divertia com nada e isso era, basicamente, tudo. A gente passou pela barraca de doces, e ela pulou para trás, e abriu bem a boca num grito tão agudo que me abaixei para escapar do tiro. Ela se aproximou do balcão e apontou. Voltou com uma maçã-do-amor, maior que seu rosto, espetada num palito, envernizada de açúcar nas mãos e um sorriso maior que toda a Austrália. E disse assim:

- Eu adoro isso! Como é mesmo o nome? Disso aqui, desse amor duro de maçã?

E eu nunca me esqueci, porque depois que ela falou, sem pensar, se riu que quase se borrou na vida. Quase se desfez em riso. E chega roncou. E seus ossos todos quase explodiram do tanto que ela não se cabia de risada. E foi mesmo engraçado, especialmente a cara que ela fez depois que se escutou. E ela ria que quase se caía e eu a segurei. Seus ossos da virilha me espetando a barriga. E ela maçã avermelhada brilhante se morrendo se vivendo de tanto rir. E de repente vi, que era exatamente aquilo ali que nós éramos, um avesso do que eu e ela éramos. Ela maçã e eu palito.

Era um amor duro de maçã.

Um comentário:

daelvalderrama disse...

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