sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Fragmento IV - ou cartas para um corpo ausente

Eu sinto muito. E muito do que sinto é só falta. Como uma parte que me foi arrancada de súbito. Um membro que perdi num acidente - e ainda sinto se movimentar. E foi mais ou menos isso. Não digo qual membro me foi arrancado porque precisaria confirmar ter sido o coração. E dizer isso me daria urticária. Falar do coração, como algo passível de ações de outros, como algo passível de trocas - inclusive na posse dele -, é uma coisa cafona. Diria até desnecessária. Pulemos essa parte. Mas é mais ou menos isso, como um membro mutilado em um acidente - odeio essa palavra "mutilação", é tão dramática. Mas é, é mais ou menos isso, fui acidentado. Atropelado pela vida. Que parecia uma senhora paciente a me assistir brincar no jardim, a me ajudar catar as pitangas nos galhos mais altos, a me ajudar a amarrar o cardaço a cada novo tropeço. Um dia, que parecia como outro qualquer, nem a vi se levantar da cadeira de balanço e quando abri os olhos de novo, no jardim não estavam mais os pés...nada de jabuticaba, nem de amora, jaca, manga...nem mesmo as pitangas! Nenhum pé. Nada mais ali me dava, e nem daria, pé. A grama toda queimada. E um jardim todo feito de vazio. A velha senhora, a vida, acabava de me dar um tapa. E o que escutei, antes de cair me dizia, dentre outras coisas, que a vida não deve ser só feita de flores. Abri os olhos, e olhei aquilo tudo. Por horas, dias, meses. E eu não podia me mover, me via cada vez mais preso ao chão. As cores todas tinham se perdido. E a coisa mais estranha, é que logo depois de abrir os olhos, me pegaram pela mão. Aquela senhora e alguns dos meus tios. Me pegaram pelas mãos e me levaram para um lugar claro, mas que me fazia me sentir escuro. Entrei por uma porta, e todos em volta me olhavam e não me viam. E eu sentia por eles, cabisbaixos, a quem não reconhecia. Entrei pela porta aberta que dava para uma sala toda branca, mas sem sê-la, revestida de granito acinzentado do chão ao teto. Nela, haviam flores. Muitas flores, principalmente brancas e amarelas. Amarradas em círculos, espalhadas. Circulando um caixote de madeira. Madeira feia, avermelhada, que brilhava cheia de...como é? Cera? Era uma presença de extremo mau gosto. Mas haviam flores, ao contrário do que a senhora havia me dito. Me aproximaram do caixote e quando fui olhar, continha dentro dela, além de flores, uma presença ausente, que me foi deixada, pela vida.

E eu sinto muito, pela vida ter que atropelar, às vezes, dessa forma, para nos fazer perceber que nem tudo é feito de flores. Mas que flores são tudo. Dito e feito.

Um comentário:

Anônimo disse...

You're amazing *-*