quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Irônica crônica sobre o tempo

Postada, originalmente, no Entre-vistas.

Maria todo dia acorda, olha para o relógio digital na cabeceira da cama, que sempre se diz entre 07h00 e 07h30, e liga o abajur. O quarto amanhece sempre anoitecido já que, de segunda a segunda, à noite, quando o relógio digital se diz entre 07h00 e 07h30, ela fecha as persianas, cujas frestas são tão pequenas que qualquer dia pode se tornar noite no mais simples do movimento – “só puxá-las da direita para a esquerda”, ela grita, em geral da sala, quando coincide de alguém passar pelo corredor por volta desse horário e ela estar com os ossos duros demais para se levantar da poltrona.
Depois de ligar o abajur, se senta com os pés para a fora – suas pernas curtas não permitem que os encoste no chão -, do lado esquerdo da cama de casal. O lado direito vive há dez anos vazio, e depois de sentada de seu lado, Maria olha para ele e constata, mais uma vez, as fronhas perfeitamente passadas de dois dos quatro travesseiros dispostos, igualmente, na cama. Se assusta, mas se lembra que já passou do susto, e então ajeita os cabelos, já quase todos brancos, passa a mão pelo algodão da camisola, e coloca o relógio de pulso, no qual checa, outra vez, as horas. Entre 07h00 e 07h30.
Tira uma roupa do armário. Todo dia uma camisa estampada de flores – Maria ama flores, especialmente as gérberas - e uma saia, geralmente em tons de cinza, que alcança os joelhos. Alcança um sutiã e uma calcinha – chama de “calçola” e ri, como Maria ri das coisas que só saídas dela tem graça – e entra no banheiro. Depois que tira a camisola e já está entrando no box do chuveiro, volta para a bancada – onde deixa seus colares, escapulário e o relógio de pulso – e olha, mais uma vez, as horas. Pouco passou de entre 07h00 e 07h30, mas ela olha e leva um susto, e diz só para ela: nossa, já são mais de (um horário entre esses dois)?
Abre o chuveiro, bem pouco, a água cai quente no seu corpo desenhado pelo tempo, o sol, e a gravidade. Aí se lembra que não gosta de banhos quentes – quem ocupava o, agora, vazio da cama é que gostava que ela lhe preparasse um banho quente -, e se lembra ter se confundido – pelo sono, é claro - e sai do chuveiro para chamá-lo. Se enrola na toalha e vai descalça até o corredor e grita: Zeca? Zeca? Zeca, homem? E se chateia, e faz aquele barulho típico de chateação com a boca e volta para o quarto, é quando olha a cama e vê metade dela intacta, a metade dos travesseiros com a fronha passada, e se lembra que esqueceu que ninguém mais ocupava aquele banho quente há dez anos.
Se assusta, mas se lembra que já passou do susto, e ajeita o cabelo já meio molhado, e se senta do seu lado da cama, o esquerdo, sem encostar os pés no chão, pelas pernas curtas, e então olha para o relógio digital e vê que já passam bem das 07h30, e vê as persianas fechadas, no escuro do quarto, o corpo quase todo molhado, lembra que esqueceu de se secar depois que saiu do banho, e se seca. Pega outra camisola de algodão no armário, olha as camisetas estampadas de flores e se lembra dos jardins da infância. Faz barulho de nostalgia com a boca e retorna ao banheiro, coloca a camiseta estampada de flores e a saia que vai até o joelho no cesto de roupa suja, pega o relógio de pulso e pensa em como já está tarde. Coloca ele na cabeceira, junto com os colares e o escapulário. E se deita para dormir.

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